quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Um ano bom


     Retorno  para  casa  na  noite  deste  último  dia  do  ano de 2015. Daqui a pouco começará uma queima de fogos de artifício nas margens do Tâmisa, junto às Casas do Parlamento. Quando der meia-noite, irei até a sacada do apartamento onde moro e darei uma olhada para aqueles lados.
     Já  estou  com  a  cabeça  em  2016  e  no  Brasil,  para onde viajarei no dia 3. Desejo reencontrá-lo, para realmente celebrar o Ano Novo com nosso futebol, nosso almoço num bom restaurante e nossas pequenas aventuras por São Paulo. Levarei ainda uma surpresa para você.
     Este foi, para mim, um ano sem grandes perturbações, tendo eu vivido muitas horas felizes. Nos poucos e breves momentos em que estivemos juntos, pudemos conversar, nos divertir, simplesmente fruir a alegria de estarmos juntos depois de longos intervalos.
     Que em 2016 meu menino continue se desenvolvendo como um rapazinho inteligente e de bom coração. E que comece a despertar sua consciência para os problemas do nosso país e da nossa sociedade, afastando-se do reacionarismo da classe mediana de São Paulo. Principalmente, que possamos estar mais próximos e nos reencontrar com mais frequência.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Natal sozinho e distante

     Jamais  havia  tido  um  Natal  tão  solitário,  ficando assim sozinho em casa enquanto lá fora faz frio, venta e cai uma chuvinha fina. É a primeira vez que passo o fim de ano longe de todos. Mesmo quando morei nos Estados Unidos e passei um Natal por lá, viajei para a região de Nova York, onde morava meu tio Wilson. E lá participamos das celebrações natalinas com uma família ítalo-americana de amigos dele.
     De todo modo, tenho feito muitas coisas. Pela manhã saí para correr, li umas 50 páginas de uma biografia de Tennessee Williams e finalizei a escrita de um conto em que vinha trabalhando durante esta semana. Também cozinhei o almoço em casa. Daqui a pouco irei levar minha bicicleta para um conserto e também comprar uma mala para minha viagem ao Brasil no dia 3. 
     Sinto sua falta. Telefonei-lhe na noite de ontem, mas não consegui falar com você. Certamente estará bem. Quando nos encontrarmos, em janeiro, vou levar-lhe uma surpresa.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Um conto de Natal

     Não  pude  ir  para  o  Brasil  a  fim  de  passar  este Natal e o dia de Ano Novo junto com minha família e meus amigos. Depois de todos estes anos longe, é a primeira vez que isso acontece. Muito especialmente, estou triste por não poder vê-lo nestes dias, como acontece todo ano. A noite de hoje será triste, fria e solitária.
     Mas  penso  agora  num  Natal  que  passamos  juntos  e rio sozinho. Era 2009 e foi a última vez que você veio passar uma breve temporada comigo. Fomos para a casa de minha mãe, em Divinópolis, onde ficamos cerca de dez dias. Você estava feliz, brincando muito, jogando futebol com os meninos da vizinhança e passeando na chuva.
     No  Natal  propriamente,  no  auge  dos  seus  quatro anos, nos preparamos com ansiedade para a vinda do Papai Noel. Na noite do dia 24 de dezembro, antes de você dormir, eu lhe disse para colocar na janela, do lado de fora, alguns biscoitinhos e um copo de água para nosso visitante noturno. Então fui colocá-lo para dormir, e ficamos especulando sobre que presentes lhe seriam trazidos.
     Quando  você  dormiu,  fui  até  a  janela,  joguei  fora mais da metade da água do copo e esfarelei um pouco dos biscoitos, retirando-os de lá. Coloquei, então, seus presentes ao pé da janela. Na manhã seguinte, dia de Natal, quando você acordou, pedi-lhe que fosse até o lado de fora para ver se o Papai Noel havia vindo e se ele havia lhe deixado algum presente. Então você pulou da cama e correu para verificar o que se passara no meio da noite. Fiquei no quarto, esperando para ver qual seria sua reação. Foi quando ouvi seu grito animado e os passos apressados de sua corrida de volta até o quarto, para o deleite de minha mãe e minhas irmãs:
     - Papai! Ele comeu tudo!!!
     Seus presentes quase nem foram percebidos.
     De vez em quando, ao lembrar essa história, algumas pessoas costumam ficar escandalizadas pelo fato de eu haver mentido a meu filho, fazendo-o acreditar na existência do Papai Noel. Ora, nem parece que todos nós estamos expostos todos os dias a grandes e descaradas mentiras por parte de políticos, jornalistas, vendedores e até de pessoas próximas em quem confiamos. A mentira sobre Papai Noel foi algo inocente que fez parte de um período de sua vida quando era realmente o tempo de acreditar nele. Abominável é privar a criança da imaginação e do sonho.
     Hoje,  aos  dez  anos  e  às  vésperas  da  adolescência, você não crê mais em Papai Noel. Mas sei que, como eu, lembra-se com carinho da noite em que ele comeu todos os biscoitinhos e bebeu o copo d'água que deixamos na janela do quarto.

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Escalafobético

     Está no dicionário:

     escalafobético:  aquele  que  se  comporta  de  maneira excêntrica, esquisita, extravagante; que demonstra falta de jeito, de aprumo, de elegância; desengonçado, desconjuntado, maljeitoso.

     Pensei  hoje  na  estranha  palavra  ao  receber  uma mensagem de meu amigo Doc, propondo um almoço comigo para janeiro, quando eu estiver em São Paulo. Gosto de encontrá-lo, pois ele é sempre surpreendente e divertido. Lembro-me de uma vez em que Doc, depois de passar muitos dias quebrando a cabeça em contas escalafobéticas, surgiu brandindo um grosso caderno e dizendo, exaltado, que havia conseguido provar matematicamente a existência de Deus e que se tornaria famoso por isso. 
     Pedi  então  para  analisar  seu  revolucionário  modelo matemático. Abri o caderno com sua infindável sequência de fórmulas e números, não entendendo bulhufas do que estava rabiscado ali. Mas dei o veredito definitivo, falando com seriedade: "Doc, infelizmente preciso lhe dizer que há uma falha no seu modelo". Com olhar incrédulo, ele exclamou: "Não é possível!" E pegou o caderno de volta, levando-o para casa, a fim de rever sua aritmética divina.
     Uma  semana  depois,  Doc  bate  à  minha  porta. Quando abro, ele me abraça, emocionado, e me agradece efusivamente, pois eu havia evitado que ele se expusesse ao ridículo perante o mundo. Afinal, havia de fato uma falha em suas contas, que precisariam ser refeitas.
     Os  anos  correram,  e  ele  nunca  mais  falou  em  seu modelo matemático que provaria a existência de Deus, embora tenha passado uma outra fase tentando criar o moto-contínuo, o que os maiores cientistas da história afirmaram ser impossível. Mas isso não impediu nosso moderno alquimista de dedicar-se por algum anos à realização da máquina de movimento perpétuo que se movimentaria para sempre com a energia gerada por seu próprio movimento.
     Com  toda  a  sua  maluquice,  Doc  é  uma  das  pessoas mais inteligentes, mais honestas e mais generosas que já encontrei por este mundo. E a história mostra que são indivíduos como ele que costumam criar algo realmente grandioso, inovador e duradouro. Ele me faz lembrar estes versos de Walt Whitman, na tradução de Geir Campos:

     Que passe para trás quem se achava na frente,
     que passe para a frente quem estava atrás,
     que os doidos, apaixonados, sujeitos mal-comportados,
     encaminhem novas proposições,
     que sejam postas de lado as proposições antigas,
     que um homem busque o prazer em toda parte
     exceto nele próprio,
     que uma mulher busque a felicidade
     em toda parte, exceto nela própria.

sábado, 19 de dezembro de 2015

Viagens


     Em  virtude  de  problemas  burocráticos  e  profissionais que estou enfrentando, não poderei ir ao Brasil para passar este Natal e o dia de Ano Novo. No entanto, somente hoje pude saber que no comecinho de janeiro isso será possível. Embora seja triste ficar este período do ano longe de você, de minha família e de meus amigos, estou feliz por poder reencontrá-los alguns dias mais tarde, já no ano que vem.
     Por falar em viagens, nos últimos anos tenho empreendido muitas delas, às vezes a trabalho, às vezes por interesse próprio, em períodos de férias ou de recesso no ano letivo. Através delas tenho encontrado pessoas e lugares com os quais tenho aprendido muito e vivido muitos bons momentos. Por todos os países por onde passo, sempre lhe mando um cartão-postal, muitas vezes manifestando o meu desejo de que você estivesse ali comigo ou imaginando o que você diria diante da cena ou da experiência que estou vivendo naquele momento. De todo modo, desejo no mínimo compartilhar com você aquela parte do mundo e as lições de partir. E como tenho partido no decorrer da vida!
     Espero  que,  como  eu,  você  possa  vir  a  ter  muitas oportunidades de viajar, ver o mundo e vivenciar experiências felizes em culturas diferentes da nossa. Melhor ainda será se tivermos a oportunidade de fazer isso juntos.
     Vou  agora  começar  a  preparar  as  malas para mais uma partida feliz para o seu abraço e algum tempo, ainda que curto, junto de você.

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

As listras de um tigre

     Estou  lendo  aqui  O  Oitavo  Dia,  excelente  romance de Thornton Wilder escrito no final dos anos 1960, cuja ação gira em torno de um suposto assassinato ocorrido numa cidadezinha no interior dos Estados Unidos. Há pouco estremeci diante de uma passagem que, numa tradução rápida, seria mais ou menos assim: "É isso a vida? As crianças que crescem são deformadas por pais que, de várias maneiras, foram eles mesmos deformados pela cegueira, a ignorância e as paixões de seus próprios pais? E os erros mesmos de uma pessoa empobrecem e mutilam seus filhos? Eis aí o interminável encadeamento das gerações."
     Trata-se  de  uma  reflexão  perturbadora.  Sei  que  o próprio Wilder for "deformado" por um pai exigente e muito controlador. No meu caso, por mais que procure me diferenciar de meu próprio pai, de quem sou um crítico feroz e às vezes até injusto, muitas vezes me pego repetindo sua cegueira, sua ignorância e suas paixões. E talvez hoje eu esteja inconscientemente empobrecendo meu próprio filho e mutilando-o com minhas exigências e meu destempero. Embora ache que lhe dou espaço para ser você mesmo, viver sua infância e fazer suas escolhas, até mesmo pela distância em que estou, sei que minha personalidade forte e meu temperamento impulsivo, meu tom de voz incisivo e minha tendência a tomar a frente em tudo o que faço podem estar bloqueando algum campo de ação ou de desenvolvimento de sua personalidade. Mas como poderia ser diferente? Não se pode mudar as listras de um tigre.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Rabelo


      Já  estamos  respirando  o  Natal  por  todos  os  lados. Como parte das comemorações de despedida do ano, meus alunos me convidaram para uma noite numa churrascaria brasileira. Fui e, bem à maneira inglesa, após alguns discursos me exaltando, já que gostam de mim e de meu trabalho, deram-me um presente. Ao abri-lo, tive uma surpresa: uma camisa da seleção de futebol da Inglaterra personalizada, com um "Rabelo" gravado nas costas. Fiquei muito feliz e também discursei em agradecimento, elogiando o engajamento de meus alunos em seus compromissos acadêmicos e prometendo usar muitas vezes a camisa inglesa em meus jogos de futebol, aqui e no Brasil. E lhes disse que, quando reencontrar meu filho, vamos jogar juntos e tirar uma foto com nossos Rabelos gravados nas costas, pois lhe dei, há dois anos, uma camisa do Arsenal com nosso nome de família escrito na parte de trás. Será um fim de semana especial, longe da Inglaterra, mas com ela presente, agradecendo-a por haver me acolhido ao longo de todos estes anos e renovado a minha vida.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Uma carta e sua reza

     Neste  começo  de  semana,  logo  depois  do  café  da manhã, sento-me para trabalhar ao computador e dou com um e-mail seu dizendo que não estava respondendo minhas mensagens porque estava em época de provas na escola, mas que sempre se lembra de mim e inclusive reza por mim.
     Há  alguns  dias  lhe  enviei  uma  carta  pelo  Correio, desancando-o por sua atitude de ficar muito tempo sem fazer contato e me dizer o que anda se passando em sua vida. Mas agora o simples fato de saber que você reza por mim já me faz perdoá-lo automaticamente. Se pudesse, resgataria minha carta antes que ela chegasse a seu endereço em São Paulo.

domingo, 6 de dezembro de 2015

Palavrões



     Nesta semana lhe enviei uma carta em que, entre outras coisas, dou-lhe o conselho de não falar palavrões e evitar toda forma de vulgaridade. Talvez tenha sido a arte moderna que passou a utilizar palavras, gestos e imagens grosseiras para se contrapor ao chamado “bom gosto” e muitas vezes chocar o burguês. Mas como os limites vão sendo sempre levados mais longe, vivemos num tempo em que a vulgaridade assumiu o centro da cultura. Todavia, é óbvio que você não precisa e não deve se identificar com as tolices da nossa cultura ou do nosso tempo.
     Uma vez, quando eu devia ter seis ou sete anos, disse "bunda" perto de meu avô, patriarca de tempos antigos e de valores tradicionais. Ele ficou horrorizado e ameaçou lavar minha boca com água e sabão, dizendo que teria uma conversa muito séria com meus pais. Curioso como, pelo excesso de uso, aquela terrível palavra hoje perdeu todo o impacto e faz parte do vocabulário comum mesmo dos mais pudicos falantes de nossa língua.
     Em  meados do ano passado, levei-o para assistir a um jogo do Campeonato Brasileiro entre o Galo e o São Paulo, no Morumbi. Como não era possível ficar junto com os atleticanos, tivemos de assistir à partida entre os são-paulinos. À nossa volta havia um grupo de torcedores que urrava os mais cabeludos palavrões e fazia gestos extremamente obscenos, especialmente porque o Galo tinha mais volume de jogo e mantinha a posse de bola por mais tempo, o que os irritava. A certa altura, você me puxou a manga da camisa e disse: "Nossa, papai, esses caras não têm nenhuma educação, nunca devem ter frequentado uma escola!" E eu disse: "É verdade." Se meu avô Antônio Paulino estivesse ali, por certo levantaria as duas mão para o céu e diria: "É o fim do mundo!"
     Minha  mãe,  que  é  da  mesma  têmpera  de  seu  pai  e é uma das últimas pessoas que ainda se escandalizam no Brasil, costuma chegar em casa horrorizada quando lê palavrões pichados nos muros de Divinópolis. 
     Outro  dia,  relendo  Dom  Casmurro  para  uma  aula  de  literatura, dou de cara com o Mestre - que gostava de fazer referências à mitologia grega para esclarecer os dramas de seus personagens - utilizando um termo que se tornou modernamente um tremendo palavrão. Ele se referia à hoje conhecida como "caixa de Pandora", para não chocar pessoas como minha mãe.
     Nesta  semana,  li  nos  jornais  que  pesquisadores  de uma universidade britânica descobriram que dizer palavrões pode ajudar a aliviar a dor, mas apenas em pessoas que não xingam com frequência.
     De  minha  parte,  não  utilizo  palavrões  no  dia  a  dia. Naquilo que escrevo eles são ainda mais raros. Na maioria dos casos, acho-os simplesmente desagradáveis, capazes de transmitir uma imagem degradante de quem os pronuncia. Há algumas ocasiões, no entanto, em que não consigo resistir a dizê-los. Uma delas é no próprio futebol, quando erro um gol fácil. Outra é quando dou uma topada de cabeça ou tropeço em alguma coisa. Nessas ocasiões, eles se libertam quase automaticamente, como os males que saíram da caixa de Pandora. Mas curiosamente, ainda que eu passe o dia inteiro a falar inglês, nas ocasiões em que um palavrão não pode ser contido, ele é sempre dito em português. E realmente ele parece ter um efeito terapêutico, pois me desafoga e me acalma para as novas lutas bravas da vida. Mas o palavrão deve ser uma rara exceção em nosso modo de nos exprimir, para que não polua nossa linguagem nem transmita uma imagem muito ruim de nós mesmos. E como ele representa sempre um golpe fatal na pureza e no sublime, sempre o aconselho a evitá-lo.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Histórias de sua primeira infância

     Quando  me  exercitava  em  alongamentos  num parque perto de casa, hoje pela manhã, depois de correr, vi alguns meninos pequenos que por ali estavam com suas mães e seus brinquedos. Ao terminar os exercícios, enquanto voltava para casa, fiquei me lembrando de você e de algumas histórias engraçadas do tempo em que tinha 3 ou 4 anos, mais ou menos a mesma idade das crianças que brincavam no parque. Como daqui a pouco você já vai entrar na adolescência, costuma sentir uma pontinha de vergonha quando as conto. Mas vamos lá.
     Uma  vez,  quando  estava aprendendo a contar, você recitava: "...dezesseis, dezessete, dezoito, dezenove, dezedez"!
     Numa  outra ocasião, levei-o a um circo. No começo do espetáculo, um casal com pernas de pau cobertas por uma longa calça colorida veio caminhando para o nosso lado. Você os olhou de alto a baixo, virou-se para mim e me fez duas perguntas: "Por que eles são tão grandes assim?" e "Por que eles não têm pé?"
     O  destino  fez  com  que  no  mesmo  dia  estivéssemos brincando perto de uma fonte, na região do Teatro Municipal de São Paulo, quando um anão parou perto de nós. Você o olhou intrigado, tentando entender o que era aquilo, e comentou: "Que meninão pequeno!" Todos em volta, inclusive o próprio anão, começaram a rir.
     Um  dia  você  me  pediu  que  o  levasse  à  sauna  do condomínio onde eu morava. Decidi então levá-lo para ficar cinco minutos. Mas logo ao entrar, sentindo o calor intenso, você esbravejou: "Não, papai, isso aqui é quente demais! É um deserto!" E a experiência não durou nem dez segundos.
     Ao  ver  um  carro  vermelho  passar  velozmente  pela rua, comentei: "É o Relâmpago McQueen!". Ao que você respondeu, com sua entonação peculiar: "Mas ele não tem boca!"
     Uma  vez  levei-o  para me ver jogar futebol no time de minha faculdade, na USP. O jogo era contra o time da Faculdade de Engenharia, nosso rival. Sentei-o junto com nossos jogadores reservas. Por volta dos dez minutos de partida, fiz um gol de cabeça e corri para o banco, a fim de abraçá-lo. Você me abraçou e me beijou, mas se agarrou a meu pescoço e pediu, ou melhor, exigiu colo, querendo que eu voltasse para o jogo com você nos braços... Tive de ser substituído.

domingo, 29 de novembro de 2015

Depois de uma fotografia de Brassaï


     Hoje  fui  visitar  uma  exposição  de  obras  do  grande fotógrafo húngaro-francês Brassaï. Dentre as imagens, uma delas, intitulada em francês "Le marchand de ballon (l'enfant sourriant)", tirada em 1931, me chamou a atenção e imediatamente me remeteu a você. Quantas vezes o vi nesse mesmo fascínio gratuito e maravilhoso por um objeto que remete ao sonho, à brincadeira e à liberdade como um balão de gás a esvoaçar. Essa cena de Paris nos anos 30 se repetiu em manhãs de domingo na Praça do Santuário, em Divinópolis, na Praça da Liberdade, em Belo Horizonte, e em algum recanto do centro de São Paulo, quando passávamos fins de semana juntos.
     Lembro-me  de  uma  fotografia  sua,  tirada  por  mim, quando você tinha quatro anos, provavelmente a mesma idade do garoto da foto de Brassaï, em que meu menino do século XXI abre um sorriso muito parecido com esse da imagem, olhando para uma bola de futebol que chutei forte, para cima.
     Que  a  sujeira  do  mundo  e  os desencantos da vida jamais o façam perder esse sorriso e esse olhar.

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Paixões

     Passei  algumas  horas  do  dia  de  hoje,  após  dar aulas pela manhã, trabalhando no texto de um prefácio a um livro sobre Nelson Rodrigues. No mês passado também escrevi prefácios para um livro sobre Eugene O'Neill e outro sobre Thornton Wilder. Por haver estudado esses autores ou ter familiaridade com seu trabalho, costumo ser convidado a escrever ou a falar sobre eles. No entanto, nos últimos anos tenho sido um autor de textos menores e pouco prestigiosos como os prefácios ou pequenos artigos sobre temas ligados à literatura. Tenho ambições maiores, porém preciso de algum tempo, mais segurança profissional e alguma iniciativa para me dedicar a um projeto mais substancial.
     Todo  ser  humano  tem  de  ter  alguma  paixão.  Entre as minhas estão a literatura, o teatro e o futebol, que tenho buscado transmitir a você. Pelo futebol você se interessa naturalmente, vindo de uma família com várias gerações de bons jogadores. Quanto à literatura, sempre lhe dou livros de presente, sendo muitos deles condensações dos grandes clássicos. E procuro conversar com você sobre suas leituras, quando nos encontramos. Pelo que tenho percebido, venho conseguindo despertar também sua paixão pelos livros, sendo que você também tem se lançado na escrita de um diário num caderno que lhe dei.
     Por  fim,  há  o  teatro,  com  o  qual  tem  sido  muito mais difícil fazê-lo familiar, em virtude da separação e da grande distância em que vivemos. Quando vou a São Paulo e você pode passar todo um fim de semana comigo, um de nossos programas costuma ser o teatro, mas isso ocorre apenas uma ou duas vezes por ano. Lembro-me de uma vez termos assistido Nossa Cidade, de Thornton Wilder, A Mulher sem Pecado, de Nelson Rodrigues, e O Pagador de Promessas, de Dias Gomes. Tenho visto excelentes montagens dos grandes textos do teatro universal por aqui. Há algumas semanas, quando assistia Medida por Medida no Shakespeare Globe, desejei que você estivesse ali comigo.
     Mas  também  dou-lhe  espaço  para  suas  próprias paixões, algumas das quais não compartilho, como a dos jogos eletrônicos. No entanto, se elas lhe fazem bem e lhe proporcionam momentos felizes, possuem todo o meu apoio.

domingo, 22 de novembro de 2015

Praga, Kafka e Adoniran

     Cheguei  em  casa  no  meio  da  madrugada,  tendo enfrentado um frio terrível e cruzado o caminho das criaturas da noite londrina, após passar os últimos dois dias em Praga, que é uma de minhas cidades favoritas em virtude de sua beleza, de sua qualidade de vida e de sua personalidade. A capital da República Tcheca é certamente um lugar aonde um dia retornarei com você e onde faremos muitas coisas interessantes dos museus à culinária, dos passeios descontraídos ao aprendizado de história e arquitetura.
     Nos  últimos  tempos,  tenho  pensado  muito  no  dia  de retornar ao Brasil neste fim de ano e também no dia de retornar em definitivo. Infelizmente tenho dúvidas sobre se de fato poderei passar o Natal que se aproxima em Minas, reencontrando-o em São Paulo alguns dias antes. É que tenho tido de me haver com a Imigração britânica, para resolver questões relacionadas a meu direito de viver e trabalhar aqui no decorrer do próximo ano. Pode ser que venham a segurar meu passaporte durante esse período, a fim de analisar meus documentos antes de me concederem um novo visto. Nesta semana, ao me relacionar com seus oficiais em seu complexo escritório, mergulhei na burocracia desumanizada e tive um dia que foi uma página de Kafka.
     Passarei  por  grandes  mudanças  no  decorrer  do  ano que vem. Tenho certa apreensão, mas estou tranquilo, pois há muito tempo minha vida tem sido uma ciranda de transformações radicais e sei que no fim das contas tudo se ajeita. Como filosofa Adoniran Barbosa, "mulher, patrão e cachaça, em qualquer canto se acha".

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Bares e seus nomes


     Passei  outro  dia  por  um  bar  chamado  "O  Sapo Arrogante". Na entrada, esse anfíbio, pelo qual tenho simpatia mas que nunca imaginei tendo como sua característica definidora a arrogância, está lá num terno bem cortado, bengala e boina na cabeça, portando  estilosamente uma taça de vinho na mão esquerda. Um verdadeiro dândi à maneira de Oscar Wilde, um D'Annunzio dos brejos ou um Baudelaire dos pubs.
     Por  aqui  os  bares  costumam  ter  nomes  absurdos, que juntam duas coisas muito díspares. Lembro de haver passado diante alguns com nomes como "The mad Bishop and Bear", "Lamb and Flag", "Elephant and Castle", "Pig and Whistle". 
     E  até  já  escrevi  aqui sobre o Zuiudo's Bar, o Bar dos Pobres e o Pingo no i, em Divinópolis. 
     Bebo  muito  pouco,  tomo  sempre  muito  cuidado  ao consumir bebidas alcoólicas e não sou frequentador de bares. Mas gosto desse bom humor e desse surrealismo de alguns deles.

terça-feira, 10 de novembro de 2015

Minha mãe e a distância

     Conversei  na  tarde  de  hoje  com  minha  mãe,  após algumas semanas sem conseguir fazer contato. Ela, que está enfrentando problemas de pressão alta e outros perrengues, disse que tem medo de morrer e não conseguir se despedir de mim. Espero que isso jamais aconteça, pois eu sofreria muito numa situação assim. Conto com seu hábito de exagerar bastante os seus males a fim de provocar a simpatia e a comoção de seus filhos, apesar de saber que seus problemas de saúde são reais.
     Ela  disse  ainda  que  tem  rezado  muito por mim, pois estou num momento de transição e de obrigação de fazer escolhas que mudarão bastante a minha vida. E que está com muita saudade de você, a quem não vê há vários anos, que gostaria de lhe dar um abraço e pegá-lo no colo. Mal sabe ela que você já não é mais um menininho de se pegar no colo.
     Por  falar  em  você,  a  distância  tem  esse  mal  de  nos relaxar de vez em quando. Há algum tempo que não tenho notícias suas, em parte em virtude de problemas em seu telefone, mas há o computador e outros meios. Amanhã, que é um dia especial para mim, gostaria de receber um contato seu.

sábado, 7 de novembro de 2015

De um pai ausente

     Uma  vez  ouvi  o  educador,  sociólogo,  antropólogo, escritor e político Darcy Ribeiro dizer ironicamente, ao fazer um relato autobiográfico, que ele teve a sorte de perder o pai aos três anos. Talvez você possa dizer algo semelhante, não por haver me perdido, mas por haver se separado de mim na mesma idade. Hoje, após tanto sofrimento e tantas perdas, olhando para trás e avaliando esses sete ou oito anos de ruptura, vejo que, em muitos aspectos, ainda pior que ter um pai ausente é ter um um pai presente, já que você tem crescido sem essa autoridade repressora e sufocante a seu lado todos os dias, podendo ter uma infância mais livre e mais espontânea. Não que eu não me importe com o que está se passando em sua vida nem procure saber do que tem feito, como tem se desempenhado na escola e como tem se comportado. A separação teve isso de bom: estou em posição de ser incentivador de suas vocações e ajudá-lo a descobrir sempre coisas novas e alçar voos próprios sem o desgaste e a aridez do cotidiano. E cada um de nossos encontros, por raros que sejam, são sempre uma aventura e uma ocasião muito aguardada e planejada. A felicidade e a cumplicidade de nossos encontros nunca nos puderam ser tiradas.

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

A poesia brotando na vida

     Na  noite  passada,  tive  novamente  o  sonho  de que estou escrevendo um belíssimo poema. E, como sempre acontece, ao acordar não me lembrava de nada a respeito do texto. Sempre fico intrigado quando esse sonho vem e daria tudo para recordar o que escrevi enquanto dormia.
     De todo modo, este parece ter sido um estranho dia em que o poético andou povoando as minhas horas. Numa das aulas na universidade, em que os estudantes estavam relatando eventos especiais de que participaram ou tomaram conhecimento, minha aluna anglo-brasileira Isabella contou, de olhos úmidos, que, por ocasião da morte inesperada de sua prima, em plena juventude, quando, já ao anoitecer, o corpo esperava para ser preparado para o funeral, um beija-flor apareceu, sobrevoando-o e posteriormente pousando ao lado de sua avó, que interpretou aquilo como uma visita do espírito da jovem falecida e começou a falar com ele. Se esse acontecimento não corresponde à realidade, sendo apenas imaginado, pelo menos compõe uma bela história.
     Ao retornar para casa sob uma garoa fininha, vindo pela margem do rio, vi no céu um insólito arco-íris invertido, com o arco virado para baixo e as pontas para cima. Nunca tinha visto algo semelhante e acabo de ler que se trata de um fenômeno natural muito raro.
      E  ainda  no  campo  do  poético,  me  lembrei  há  pouco, quando estava desenvolvendo a nada poética tarefa de passar roupas, de um episódio da sua primeira infância, quando você passava temporadas na casa de minha mãe. Naquelas ocasiões, meu menino jamais ia dormir sem me pedir que o colocasse sobre os ombros e o levasse para "ver a cidade". Isso consistia em atravessar a rua e caminhar uns 50 metros até um muro em torno de um lote ainda vago. Nesse muro havia um furo por se via as luzes da área central de Divinópolis, já que o bairro onde minha mãe então morava fica numa parte mais alta e não muito distante do centro. Jamais ir dormir sem "ver a cidade" sempre foi para mim uma experiência viva de poesia. 

domingo, 1 de novembro de 2015

Uma sacada em Bucareste



     Após  uma  semana  longe  de casa, estou agora no aeroporto de Bucareste, pronto para retornar à Inglaterra. Passei os últimos três dias na Romênia, que é um país com uma rica cultura, embora parte dela esteja bastante mal cuidada, pelo que se vê em muitos belos edifícios de sua área central, que estão em péssimo estado de conservação, além de cartazes com publicidade cobrirem muitas fachadas que mereceriam ser vistas. Esse descaso com o patrimônio cultural infelizmente nos é familiar. Em agosto passado estive em Ouro Preto e me surpreendi com o estado precário de algumas igrejas por lá. Isso para não falar no estado dos centros históricos das capitais brasileiras.
     Olhando,  por  aqui,  a  sacada deste edifício, ontem à tarde penso nos muitos equívocos da arquitetura moderna, com sua obsessão pela linha reta e os facílimos blocos quadrados. Claro que as formas e conteúdos devem mudar, mas poucos são os Niemeyers, Frank Lloyd Wrights ou Le Corbusiers. Em virtude de nossa falta de planejamento, preservação do patrimônio do passado e urbanismo de qualidade, é evidente que nossas cidades estão ficando cada vez mais feias. Mas como poderíamos desenvolver grandes projetos coletivos com essa elite vagabunda e ignorante que nos comanda?
     Como  esta  vida tem sido uma agitação permanente de um lado para outro, vou agora tomar outro avião, dentro do qual prepararei minhas aulas de amanhã na universidade. Com a proximidade do fim do ano e de algumas provas, já estou às voltas com alunos tensos e preocupados. Que esses dias passem logo e que eu possa mais uma vez cruzar o Atlântico para reencontrá-lo no fim do ano.

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Num frio de outono ao pé dos Bálcãs




     Cheguei ontem a Sófia, capital da Bulgária, uma cidade com aproximadamente 7 mil anos de história. Para um dia de outono, está extremamente frio. Hoje pela manhã fazia apenas 1 grau Celsius. Porém, como bom brasileiro, não saí apropriadamente agasalhado, pois deixei no hotel um casaco mais quente que trouxe comigo, indo para as ruas com uma blusa mais leve. Mas sou resistente a baixas temperaturas.
     O que mais gosto quando viajo é sair perambulando pelas cidades e encontrando as pessoas locais. E gosto mais de estar num lugar onde nunca estive no meio da semana, em vez de no fim de semana, pois dessa maneira se encontra a cidade funcionando como ela realmente é, com as pessoas engajadas em suas atividades do dia a dia.
     Soube hoje que na região central de Sófia há muitas fontes de águas termais públicas. Nelas a água jorra do fundo da terra, bem quente e soltando fumaça. Tem um gosto sulfuroso, e a gente daqui vem buscá-la em garrafas, para tomá-la em casa, pois, em virtude de sua composição química, é boa para problemas estomacais e renais. Embora felizmente não tenha nenhum desses problemas, também bebi um pouco, para ter uma experiência da vida local.
     Apesar de a cidade não ter várias atrações estonteantes, tenho me sentido bem aqui, pois os búlgaros se parecem com os brasileiros em muitas coisas, inclusive em seus defeitos, como nos hábitos de se atrasar e de adiar as coisas. De um modo geral, gosto mais da Europa do Leste que da do Oeste.
     Ao caminhar o dia todo pelas ruas centrais, deparei-me com uma iconografia bastante diferente para mim e também com quase tudo escrito em alfabeto cirílico. Como tenho estudado um pouco da língua russa recentemente, tenho podido ler muitas palavras, embora não compreenda a maioria delas. Também os sabores do país são distintos, com uma culinária bastante rica.
     Quando  vivencio  essas novas experiências tão longe de casa, sempre penso no que você diria se estivesse aqui comigo. E como faria uso do seu inglês, que é muito bom para a sua idade. Eu compartilharia muitas descobertas com você, mas lhe daria liberdade para explorar as coisas de acordo com seus interesses, tal como fazemos em São Paulo, quando o encontro e passamos alguns dias juntos.

terça-feira, 27 de outubro de 2015

Memórias do fim do amor


     Estou  hoje  na  cidade  de  Zagreb. Depois de resolver um compromisso acadêmico, saí a perambular pela cidade alta, que é a parte mais antiga da capital da Croácia. De repente, um tanto por acaso, minha atenção foi fisgada por uma placa: "Museum of Broken Relationships". Após ir ver do que se tratava, fui muito bem surpreendido por esse insólito Museu das Relações Terminadas.
     Tenho  visto  museus  sobre  quase  tudo  por  este mundo afora, mas nunca havia imaginado que um museu assim existisse, pois, no fim de relações amorosas, só se pensa em - ou só se deseja - esquecer. Além do mais, praticamente todos os museus do mundo são muito triunfalistas, dedicando-se à memória de homens e coisas bem-sucedidas, exaltando as mais belas realizações da arte, da cultura ou da história de uma civilização. O Museu das Relações Terminadas, porém, guarda a memória do fracasso, exibindo resíduos de amores mortos. Os objetos ali expostos são testemunhos da clássica antologia de sentimentos que assolam os amantes quando acaba uma relação em que investiram o melhor de si: melancolia, raiva, dor, desejo de vingança, senso de inadequação e perda de seus mais básicos referenciais.
     Numa  das  galerias,  há  um  machado  utilizado  por  um alemão de Berlim cuja companheira o trocou por outro homem. Com essa ferramenta, ele retornou à casa que partilharam e destruiu todos os móveis, para que o entulho produzido se parecesse com seu estado de espírito. Num outro canto, há um ursinho de pelúcia com um coraçãozinho no peito, onde se lê um convencional "Eu te amo". No entanto, logo ao lado há outra inscrição: "Que mentira! Mentiras, malditas mentiras!". Numa outra sala, há um anão de jardim partido e com o rosto bastante danificado após ter sido lançado por uma eslovena contra o para-brisas do carro novo do ex-marido no dia de seu divórcio. Já uma canadense doou ao museu duas bonequinhas de porcelana que representam as únicas coisas boas que permaneceram após o fim de seu casamento: as duas filhas. E as outras peças ali expostas, doadas por pessoas que vivenciaram relações mal-sucedidas, seguem nessa toada. Qualquer pessoa que tenha um objeto que sintetize um amor fracassado, pode doá-lo para o museu. E quem desejar também pode contar sua história e desabafar sua dor de cotovelo ali. Eu mesmo tenho objetos e histórias que poderiam perfeitamente fazer parte daquela coleção. E a frase de meu amigo Doc poderia estar escrita naquelas paredes: "Amar é um saco!".
     Fiquei  fascinado  com  um  museu  assim  num  tempo como o nosso, que cultua tanto o sucesso, a vitória, a superação de limites e a felicidade obrigatória. A tragicomédia do amor exposta pelo Museu das Relações Terminadas, para além de seu efeito catártico, lembra-nos que o fracasso, o sofrimento e a perda são parte intrínseca da vida de todos nós. E estimula uma importantíssima reflexão sobre a fragilidade dos laços humanos.
     Andando pelas galerias do museu, lembrei-me do filme As Canções, um documentário de Eduardo Coutinho em que ele registra depoimentos de pessoas comuns sobre suas perdas amorosas, associando-as sempre a canções que marcaram suas histórias, que são cantadas por elas ao fim de cada relato. E também me lembrei do poeta Ovídio, que há mais de 2.000 anos já havia escrito o brilhante Os Remédios do Amor, em que dá conselhos sobre como se restabelecer do luto amoroso e seguir a vida. É a única alternativa que resta.
     Um  homem  da  minha  idade  naturalmente  já enfrentou a questão do fracasso de relacionamentos, como testemunha a própria situação em que vivemos como pai e filho. Mas a sensação com que saí do museu foi mais leve do que a daqueles que tiveram de quebrar coisas como terapia para poderem seguir adiante. Há um momento, quando o relacionamento não frutifica mais, em que temos de simplesmente deixar o outro partir e cuidar de nós mesmos, pois mais doloroso que isso seja. Não conseguiremos jamais mudar as outras pessoas. Espero que você possa pensar nisso quando, dentro de mais alguns anos, se vir diante de um relacionamento que acaba e tiver de partir. Só não sei lhe dizer exatamente o que fazer, pois, na minha impulsividade, não tenho sido eu mesmo nenhum modelo sobre como agir.

domingo, 25 de outubro de 2015

Zema e Bob Dylan






     Chego  em  casa  um  pouco  tarde,  tendo  de  viajar amanhã bem cedinho, mas gostaria de escrever sobre a experiência que acabo de vivenciar. Venho do Royal Albert Hall, onde assisti a um concerto do grande Bob Dylan. Em plena maturidade e completo domínio do palco, ele manteve o público atendo por duas horas, cantando canções recentes e alguns clássicos de seu repertório em novos arranjos.
     Lembro-me  agora  de  uma  história  sobre  ele.  Eu devia ter uns 13 ou 14 anos, em Divinópolis. No fim da escola primária e pública, eu escrevi uma ingênua peça de teatro cômica na qual também atuei, juntamente com meu colega de turma Gelber. O diretor da peça foi Zema, nosso professor de Educação Artística, que faleceu há alguns anos. Como Zema era um homem que nos guiava nos meandros das artes, um dia, não me lembro se depois de um ensaio ou uma aula, perguntamos-lhe, à queima-roupa, quem era o maior cantor do mundo. E ele respondeu sem pestanejar: "Bob Dylan". A partir dali passei a ouvir com mais atenção o músico americano e, mais tarde, ao compreender a língua inglesa, a me impressionar com a qualidade de seus versos, sendo também profundamente tocado por sua gaita. Hoje, de vez em quando até saio para correr ouvindo ao telefone canções excepcionais como "Knocking on the heaven's door", "Like a rolling stone", "Mr. Tambourine man", "The times they are a-changing". Porém nunca imaginei que um dia estaria ali, a poucos metros do próprio Bob Dylan. Se Zema estivesse vivo, eu lembraria essa história e lhe mandaria algumas das fotografias que acabei tirando durante a performance do "maior cantor do mundo".

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Pressentimento de mudança

     Sinto  que  estou  próximo  de  outra  grande  mudança em minha vida, desejando que minhas novas circunstâncias venham a me trazer para perto de você. Em virtude de suas aulas e também por ter tido um problema técnico em seu telefone, estamos sem contato há semanas. Não sei bem o que lhe dizer. Talvez que você deveria ter tido a iniciativa de utilizar o e-mail em algum momento para me contar o que tem se passado em sua vida. Mas não vou forçar sua iniciativa. Períodos como este me fazem desejar ainda mais essa mudança, já que "eu sou eu mesmo e minhas circunstâncias", como escreveu Ortega y Gasset.
     Mas  talvez  eu  esteja  apenas  especulando  no  vazio por estar sentindo a sua falta. Ainda não tenho uma decisão sobre o que fazer e sou pressionado por circunstâncias de teor profissional e financeiro que preciso levar em consideração, ainda mais num momento como o atual, em que o Brasil enfrenta uma forte crise política e econômica, com muita instabilidade e o recrudescimento do golpismo por parte das forças mais retrógradas de nossa sociedade.

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Alhos e bugalhos na estante


     Bem  do  lado  de  minha  escrivaninha,  no  meu  quarto, fica uma estante carregada de livros. Se minha biblioteca, que ficou na casa de minha mãe e possui cerca de quatro mil volumes, está muito mais organizada, aqui os livros mais diferentes se misturam, como nesta pequena seção, em que há obras de literatura, de viagens, de filosofia, de história, sobre alquimia e sobre cachorros. E ainda nessa confusão quatro línguas se misturam.
     Sempre  que  vou  ao  Brasil,  dou-lhe  um  livro  de presente. Lembro-me de que logo antes de partir para o aeroporto ainda coloquei no Correio, para seu endereço, as Fábulas de La Fontaine e um livrinho intitulado Agarra, Goleiro, de cujo autor não me lembro. Você me contou que está numa fase de leitura das histórias de Sherlock Holmes e livros de aventura. Amando a literatura e tendo feito dela a minha profissão, é uma felicidade saber que meu filho também se apaixonou pela leitura e que os livros fazem parte do seu dia a dia, mesmo num tempo como o nosso, dominado pelas imagens, o entretenimento banal, a rapidez sem sentido e a parafernália eletrônica.

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Sob o impacto da tragédia grega


     Ontem  à  noite estive no teatro Shakespeare's Globe, que fica bem à margem sul do rio Tâmisa, junto à área central da cidade, para assitir a uma apresentação de Oresteia, a trilogia trágica de Ésquilo. Saí de lá atordoado pela beleza da peça e impressionado com a força da interpretação dos atores e da encenação. Mesmo num tempo tão violento como o nosso, em que crimes hediondos frequentam diariamente o noticiário, a tragédia grega não perdeu sua capacidade de provocar um grande impacto sobre nossos sentimentos e de nos propor uma reflexão sobre questões fundamentais do homem, que continuam as mesmas da época da Grécia clássica.
     Há  relatos  de  que,  em  Atenas,  por  ocasião  da apresentação da trilogia, durante a peça final as mulheres grávidas que estavam assisitindo ao espetáculo davam à luz quando as erínias entravam em cena para punir Orestes, que assassinara a própria mãe como vingança pela morte de Agamenon, seu pai. Se as erínias, deidades horrorosas que puniam os crimes de sangue contra membros da própria família, aterrorizavam os espectadores gregos, ontem vi ao menos duas pessoas sentindo-se mal e deixando o teatro por causa da força das imagens da peça.
     Neste  momento  há  outra  montagem  de  Oresteia  em  cartaz  na cidade. Vou assisti-la também e comparar com a visceralidade e o sublime do que vi na noite passada.
     Uma  das  experiências  que  mais  gostaria  de  partilhar  com você é a frequência ao teatro, gênero pelo qual tenho paixão e que tenho estudado há anos em minhas pesquisas universitárias, tendo eu mesmo algumas experiências como dramaturgo. Mas um dia ainda sairemos os dois do teatro, após um espetáculo, conversando sobre tragédias gregas, comédias de Molière, peças de Shakespeare, Ibsen, Strindberg, O'Neill, Nelson Rodrigues, Tennessee Williams e tantos outros...

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Viver e escrever

     Há  anos  possuo  um  diário  e  alguns  cadernos  em que registro as coisas que faço, colo ingressos para peças de teatro, cinema e museus, passagens e registros em hotel relacionados a viagens que faço, bem como fotografias e cartões postais. Em tais cadernos, sempre escrevo comentários, esclareço detalhes, intitulo seções. Também tenho livros, geralmente ilustrados, sobre as cidades onde morei: Divinópolis, São Paulo, Belo Horizonte, Montevidéu, Madison, Londres. 
     Vejo  que  já  se  vão alguns anos que comecei a lhe escrever aqui, contando muitas histórias sobre você e sobre meu percurso neste distanciamento que a vida nos trouxe. Talvez eu faça isso como uma forma de viver, por substituição, a vida inteira que estamos perdendo. Ou pode ser algo diferente. Talvez seja porque, para mim, as coisas não são completamente vividas até que escreva sobre elas.
     Parece  que  você  herdou  essa  necessidade,  já  que também escreve um diário num caderno que lhe dei em meados do ano passado e que de vez em quando registra suas perspectivas num blog sobre temas de cultura e esporte. Como, em seu período de aulas, algumas vezes temos dificuldades para conversarmos, ainda mantemos o antigo costume de nos escrever com certa regularidade e costumamos trocar e-mails.
     Trabalhando  hoje  num  prefácio  a  uma  peça  de teatro que será publicada por uma editora de São Paulo, penso no momento em que lhe darei um exemplar do livro, quando ele for publicado. Quando for mais velho e tiver lido alguns de meus textos, será um prazer conversar sobre eles com você, que é uma pessoa perspicaz e de sensibilidade aguçada.

terça-feira, 6 de outubro de 2015

Tristemente feliz

     Lembro-me  de  uma  passagem,  num  livro  de  Clarice Lispector, em que a grande escritora retrata sua protagonista: "agora ela era tristemente uma pessoa feliz". Pensei nessa definição porque há alguns anos venho me sentindo assim. Não tenho mais enfrentado grandes perdas ou dificuldades relacionadas a coisas básicas. Tenho obtido reconhecimento por parte das pessoas que trabalham em meus campos de atuação. Vivo numa das cidades mais modernas e atraentes do mundo. Possuo alguns bons amigos e uma família que sempre me acolhe e me admira. Porém me falta a sua presença e um acompanhamento de seu desenvolvimento estando mais próximo de você. E longe do Brasil serei sempre um capenga. Sou também "tristemente uma pessoa feliz".

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Divagações sobre duas fotografias

     Estou  passando  a  tarde  de  hoje  em  meu  escritório na universidade, trabalhando sobre ensaios dos alunos a respeito do filme Olga, a militante política alemã que atuou no Brasil e que foi uma pessoa muito inspiradora. Dou uma parada para descansar e fico olhando para duas fotografias nos porta-retratos sobre minha mesa. Numa delas, tirada há uns cinco anos, em São Paulo, sou o goleiro e você está batendo um pênalti. Seu pé direito está no ar, pois acabou de dar um chute forte na bola, que viaja em direção ao gol, enquanto eu salto para tentar defendê-la. Já não me lembro se foi gol ou não. Na outra foto, tirada mais ou menos na mesma época da anterior, estamos nós dois passeando na chuva, numa rua bastante arborizada em Divinópolis. Você está sentado sobre meus ombros, e conversamos animadamente. Nossas roupas estão encharcadas, para desespero de minha mãe, que morria de medo de você adoecer nessas aventuras pluviais.
     É  inacreditável  e  é  triste  que  essas  coisas  tenham passado e que hoje eu esteja deste outro lado do mundo, a muitos milhares de quilômetros de distância. Já sofri bastante com essa situação e ainda hoje não a aceito muito bem, mas há coisas que não podemos mudar. Muito especialmente não somos capazes de mudar as outras pessoas. Mas o que importa é que nunca deixei de ser seu pai, de pensar em você com amor e zelar para que tenha um caminho melhor e menos turbulento que o meu no decurso de sua vida. E estarei para sempre com você, mesmo na ausência, tal como o sinto sempre a meu lado como uma inspiração para viver bem a vida e enxergar as coisas com alumbramento, como tenho aprendido com você.

terça-feira, 29 de setembro de 2015

Uma tarde entre muitos séculos passados


     Neste  ano,  tenho  a  tarde  livre  do  trabalho às terças-feiras. Com isso costumo passá-las num dos museus da cidade. Hoje, por exemplo, fui ao Victoria & Albert Museum, que é o meu preferido em Londres, por possuir um acervo extraordinário, muito bem organizado, e por não ser excessivamente grande. Gosto muito das seções dedicadas ao teatro, à fotografia e ao trabalho com o ferro. Mas hoje passei algumas horas numa parte dedicada à Antiguidade e à Idade Média.
     Aí  está  uma  parte  da  coluna  de  Trajano,  com  sua inscrição. Trata-se de uma construção monumental para celebrar o poder do imperador romano do século I da era cristã. Diante de tanta grandeza e tanta beleza, tenho sempre a sensação de que nossa civilização realmente perdeu muito ao submergir na postura sofredora e autopiedosa promovida pela religião, tal como constatou Nietzsche. E tanta grandeza e tanta beleza como que me convocam a não ser mesquinho e a não desperdiçar a vida em bagatelas.
     Em  nosso  último  encontro,  em  São  Paulo,  passamos uma manhã de domingo no MASP, que você visitou pela primeira vez. Foi muito bom percorrer, em sua companhia, as galerias com o rico acervo permanente do museu e ouvir seus comentários sobre muitas obras que ali contemplamos, além de lhe dar algumas informações históricas e alguma teoria da arte de maneira informal e leve. Espero que os lugares que preservam as grandes criações da humanidade façam parte de sua vida e que contribuam para torná-lo uma pessoa mais interessante e melhor.

sábado, 26 de setembro de 2015

Frases


     Nenhuma  sociedade  persiste  sem  grandes  frases. E todo indivíduo tem lá suas frases de efeito, própria ou alheia, que carrega consigo como se fosse um talismã. Nelson Rodrigues criou toda a ação da peça Bonitinha, mas Ordinária em torno de uma única frase, que é repetida exaustivamente e que muda a vida de todos os personagens: "O mineiro só é solidário no câncer". De Channing Pollock, outro dramaturgo, é outra frase cheia de verve: "O crítico é um homem sem pernas que nos ensina a correr". E me lembro do final do romance A Ponte de San Luis Rey, de Thornton Wilder, que termina com uma frase que funciona como uma chave de ouro: "Há uma terra dos vivos e uma terra dos mortos, e a ponte é o amor, a única sobrevivência, o único significado". Trotsky, ao ser ferido mortalmente, em seu exílio no México, por um assassino a serviço de Stálin, ainda teve tempo de dizer a seus guarda-costas, que agarraram o agressor: "Não o matem. Esse homem tem uma história para contar".
     Cresci com minha mãe dizendo frases guimarães-rosianas do tipo "Neste mundo não há o que não haja". E eu mesmo escrevi um livrinho de frases que tendem para a sátira ao edificante, ao convencional e à sabedoria de almanaque. E tenho, entre meus livros, vários dicionários de citações, de provérbios, de frases clássicas, além de colecionar alguns cartões-postais como este com a famosa frase do general e cônsul romano Júlio César.
     Me  lembro  de  uma  vez,  quando  você  devia ter uns quatro anos, em que eu organizava uma disputa entre meninos. A certa altura, disse que ganharia o ponto aquele que dissesse a frase mais difícil. Por alguns minutos, reinou o silêncio enquanto todos se punham a matutar na tal frase difícil. Até que você me veio com esta: "O doce mais doce de todos os doces é o doce de batata-doce". Não foi preciso nem esperar as frases dos outros. O ponto já era seu. "Filho de peixe..."

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Com Nelson Rodrigues

     Acabo  de  chegar  de  um  evento sobre Nelson Rodrigues na embaixada do Brasil em que fui um dos convidados para falar, juntamente com um neto de nosso genial dramaturgo, após a exibição do filme Vestido de Noiva. Foi muito interessante estar ali, diante de uma audiência em sua maioria de britânicos interessados na obra dele. Eles ouviram atentamente minha fala e depois me fizeram várias perguntas.
     É  sempre  um  prazer  tratar  da  vida  e  da  obra de um escritor pelo qual tenho paixão e com o qual tenho aprendido tanto a escrever e até a polemizar com bom humor. Ele foi grande conhecedor da alma humana e de aspectos profundos da nossa psique. E um mestre da frase de efeito. Além disso, também há em Nelson Rodrigues toda aquela brasilidade universal que admiro muito e que está na linguagem, no comportamento, nas paixões de seus personagens.
     Gostaria  muito  de  que  um  dia  assistíssemos  juntos  a uma encenação de alguma de suas peças. Quem sabe na minha próxima ida a São Paulo?

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Um telefonema inesperado

     Estava  hoje  em  minha  sala,  no  trabalho,  quando recebi um inesperado telefonema de representantes de uma universidade da China. Após alguma conversa sobre meus métodos de ensino e minha trajetória profissional e acadêmica, recebi uma proposta para ir trabalhar lá, recebendo um salário melhor que o que ganho atualmente. 
     Estou  bastante  insatisfeito  com  a  educação  mercantil e neoliberal daqui e desejo realmente mudar, mas meus planos são de retornar ao Brasil, provavelmente no decorrer do ano que vem. Porém, pressionado por responsabilidades financeiras com você e com minha mãe, além de ter projetos pessoais que dependem de um significativo aporte financeiro, considero a possibilidade de ir para literalmente o outro lado do mundo. Pode ser uma experiência interessante do ponto de vista de meu próprio aprendizado. E um constante desafio, pois não falo a língua do país, que me parece muito difícil.
     Pedi  duas  semanas  para  pensar a respeito e tomar uma decisão. A grande angústia nisso tudo é ficar ainda mais distante de você, podendo ir ao Brasil provavelmente apenas uma vez por ano. Mas o que se há de fazer? Viver é constantemente fazer escolhas.

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Machucado

     Ontem  à  noite  fui  jogar  futebol  com  um grupo de amigos com quem me encontro toda terça-feira para uma partida. Tudo ia indo muito bem num jogo muito disputado em que eu estava fazendo várias boas jogadas e alguns gols, quando, já pelo final, meu amigo John-Paul, que jogava pelo time adversário, me tocou nas costas quando saltei para cabecear uma bola. Deslocado, quando  desci e tentei apoiar o pé direito no chão, ouvi um "crack" e disparei a gritar de dor. Um primeiro pensamento foi o de que tinha quebrado-o. Tive de ir ao médico dali mesmo. Felizmente verificou-se que não havia fratura. No entanto, torci violentamente o tornozelo, que está agora muito inchado e imobilizado. Não poderei andar normalmente por cerca de duas semanas e talvez leve mais uma para poder voltar a me exercitar e a praticar esportes.
     Se  minha  mãe me visse mancando fortemente como estou agora, por certo repetiria uma de suas frases: "Futebol é uma doença incurável!". Para ela, arriscar-me nesses jogos amadores é "caçar chifre em cabeça de cavalo". Mas eu não tenho muita paciência para o frisbee, o frescobol ou o cuspe à distância, esportes muito mais seguros. Portanto, continuarei me arriscando no esporte bretão aqui na Grã-Bretanha.
     A propósito, minha mãe há de adorar uma história de Winston Churchill. Quando ele completou 90 anos, um repórter lhe perguntou qual era o segredo da longevidade. Ao que o primeiro-ministro britânico respondeu: "O esporte, meu caro, o esporte... Nunca o pratiquei."
     Pena que esse acidente tenha acontecido justamente quando o ano letivo está se iniciando, e precisarei dar as minhas aulas. Gosto de ficar de pé e transitar em meio aos alunos, mas terei de ficar sentado à mesa por algum tempo.
     Na  noite  de  ontem,  quando  estava  em  casa, sentindo muitas dores e aplicando compressas de gelo no pé machucado, gostaria que tivéssemos conversado, mas você não estava disponível. Eu lhe contaria como aconteceu e o aconselharia a tomar cuidado em bolas divididas e carrinhos dos adversários em seus jogos.
     Em  realidade,  sinto  falta de jogar com você, como fazemos duas vezes por ano, quando viajo ao Brasil. Não me importo nem de ser o seu goleiro, tendo de ficar ali, debaixo das traves, tendo de defender centenas de chutes e até cabeceios. Recebo sempre algumas boladas, pois seu chute está cada vez mais forte, mas tudo bem, preciso treinar meu filho.

domingo, 13 de setembro de 2015

Saudade

     Nesta  manhã  calma  de  domingo,  meu  pensamento voa até São Paulo. A saudade aperta. Sinto falta de você e do Brasil. Gostaria que estivéssemos juntos.
     Nosso país passa atualmente por um momento de muita instabilidade, com esses vira-latas de classe média - manipulados pelo aparato midiático da oligarquia que ainda manda e desmanda - fazendo pressão para que ocorra um golpe de Estado, após seu candidato haver perdido as últimas eleições. A seu ver, o Brasil está para além do fundo do poço.
     Quem  viveu  no  Brasil  da  ditadura  e  das  décadas de 1980 e 90 sabe que o país mudou, em muitos aspectos, para melhor. É verdade que, no que tange a nossos problemas, ainda estamos mais ou menos como sempre fomos, cheios de questões sociais graves não resolvidas, com um Estado muito precário e uma casta dirigente ignorante e retrógrada. Mas nossas virtudes são muito maiores. Os nossos patrícios que consideram o Brasil um país de segunda categoria são pessoas que nunca viajaram ao exterior ou obtusos que o fizeram, mas que só viram as virtudes dos outros, ultravalorizando-as por comparação aos nossos defeitos. Estou seguro de que nosso país será bem melhor e lhe oferecerá mais qualidade de vida quando você chegar à idade adulta.
     Quero  voltar  e  me  reintegrar,  estar  próximo  de você, trabalhar em prol dos valores em que acredito. Espero que isso possa ocorrer logo. Não quero ser como alguns brasileiros que às vezes encontro no exterior, constantemente falando em retornar, mas sempre esticando seu exílio por mais alguns anos.

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Dois presentes em nosso cotidiano


     Conversamos  hoje,  após  cerca de dez dias depois de meu retorno à Europa. Soube que você está indo bem na escola e que tem lá alguns bons amigos com quem conversa, brinca e joga futebol. E que em seus jogos você costuma ir com a camisa do Galo que lhe dei há cerca de um ano. Você me contou ainda que faz alguns gols, mas é muito bom na armação de jogadas e nas assistências para gols de seus colegas. Soube, por fim, que você foi a Minas no feriado prolongado de 7 de setembro e que tem mantido uma relação próxima com sua terra de origem, cultivando sua mineiridade em São Paulo.
    Por falar no Galo, tenho carregado aqui comigo, junto a minhas chaves, um presentaço que ganhei de você durante nosso último encontro, no fim de semana que passamos juntos, no começo de agosto. O chaveiro com a camisa do Atlético com que fui surpreendido tem agora me acompanhado por todo lado, em meu bolso, toda vez que saio de casa.
     Estou  me  lembrando  que entre três ou quatro presentes que lhe dei, havia uma pedra da Inglaterra, colhida na beira do mar, num domingo em que passeava pela cidade de Brighton. Você achou o presente muito original e gostou dele, dizendo-me que o colocaria sobre sua mesa de estudos, em seu quarto, para se lembrar de mim.
     Então  nossos  presentinhos (em realidade, presentaços) incorporaram-se ao nosso dia a dia e são agora um pedaço de cada um de nós na vida de cada um de nós.

sábado, 5 de setembro de 2015

Ainda o horror

     Agora  há  pouco  eu  estava  ouvindo  pelo  rádio um programa chamado "Manhã com Bach", buscando algum alento por meio da beleza em meu compositor favorito após escrever ontem sobre o garoto sírio afogado no Mar Mediterrâneo pela indiferença de todos nós. Já pelo fim do programa resolvo entrar no site de um jornal de São Paulo, para saber do que está se passando no Brasil. Como se a carga de imagens chocantes desta semana já não fosse insuportável, recebo como que um soco no estômago ao ler a notícia e assistir a um vídeo do que aconteceu na tarde de ontem nas escadarias da Catedral da Sé, no centro de São Paulo. 
     Um  criminoso,  portando  um  revólver,  fez  uma moça refém no local, agredindo-a seguidamente. Durante a ação, ele deu várias oportunidades para que a polícia resolvesse a situação extrema que tinha diante de si com um tiro que o matasse de imediato. No entanto, isso não aconteceu, e um homem da multidão invadiu o local e tentou lutar com o bandido, sendo alvejado por este no peito. Na confusão, a moça escapou, e, em seguida, o criminoso foi executado por vários tiros dos policiais. As duas mortes foram não somente um teatro para quem passava pela praça, como um espetáculo de mídia, tendo sido transmitido ao vivo pela tv e fazendo a alegria dos vampiros que apresentam programas pseudojornalísticos de fim de tarde, em que dão vazão ao pior sensacionalismo, urrando as opiniões mais reacionárias e fascistas para os cabeças de vento que os assistem.
     Espero  que  você  não  tenha  estado diante da televisão quando esse horror aconteceu, pois os outros canais não devem ter perdido a oportunidade de também exibirem ao vivo esse show da vida. Todos se lembram do caso do ônibus 174, no Rio de Janeiro. As imagens chocantes desta semana estão aí, sendo esfregadas em nossas caras até nos cansarmos, devendo ser substituídas por outras dentro de alguns dias ou semanas.
     Penso  agora  numa vez em que o levei ao centro de São Paulo, há alguns anos. Entre outros lugares, visitamos a catedral e sentamo-nos exatamente em suas escadarias, para descansar por alguns minutos. Poderíamos, então, ter sido espectadores daquele teatro macabro ou mesmo vítimas dele. O pior é saber que isso está acontecendo todos os dias pelo país, que a segurança pública é o grande fracasso de todos os níveis de governo, que esses fatos são excrescências lógicas e necessárias de um sistema social tão iníquo como o nosso. 
     Escrevi  ontem  que  a  imagem  do  menino  Aylan  morto daquela forma era uma prova de que a humanidade fracassou. Detesto pensar assim, cheio de desesperança, tristeza e desilusão. Porém os fatos estão aí, monstruosamente avassaladores.

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Mortos ali


     O  que  dizer  diante  desta  imagem  que  há dois dias está na primeira página de todos os jornais diários do mundo? Grande parte desses mesmos jornais demonizam a imigração como responsável por todos os problemas hoje enfrentados pelos países "avançados", tirando o foco da oligarquia corrupta que os comanda e que é a verdadeira responsável por tais problemas, porém é a dona desses mesmos jornais. E estamos falando dos mesmos países que ajudaram a transformar o Oriente Médio no caos em que se encontra hoje.
     Leio  nessas  gazetas,  tremendo  de  raiva,  náusea  e melancolia, que esse horror aconteceu numa praia da Turquia e que o menino cujo cadáver ali veio ter, trazido pelas ondas, chamava-se Aylan e tinha 3 anos. No meio da noite de anteontem, ele e dois de seus irmãos caíram no mar quando a precária embarcação em que fugiam da guerra na Síria atravessava o mar Mediterrâneo, tentando chegar à ilha de Kos, na Grécia. Os jornais mostram ainda a devastação do pai do garoto, sobrevivente da calamidade que atinge seu país, sua família e todos nós. 
     Leio  ainda  que  há  tempos  esse  pai  vinha  solicitando refúgio ao governo do Canadá, onde vivem outros membros da família. Aquele país, que havia se negado a recebê-los como refugiados de guerra, agora, depois da tragédia acontecida, numa tentativa tardia de bancar o bom samaritano, anuncia que concederá não somente refúgio como cidadania aos membros sobreviventes da família síria. E o pai, numa atitude de grande dignidade, agora recusa a oferta dos beneméritos canadenses, para quem até bem pouco tempo ele, sua mulher e seus filhos eram apenas parte de uma estatística.
     Essa  imagem,  que  agora  me  traz  lágrimas  aos  olhos enquanto aqui escrevo, é uma prova incontestável de que a humanidade fracassou. Há meses temos visto governantes, demagogos e neofascistas europeus imporem todas as barreiras e todas as dificuldades à entrada desses "indesejáveis" que aqui chegam fugindo de tiranos e fanáticos na Síria e na Líbia. Tratam-se dos mesmos países que tiveram populações inteiras emigrando para a América em tempos de crise econômica e guerras ao longo do século XX, dos mesmos que até pouco tempo deram apoio a tiranos que serviam a seus interesses. Justamente os que furam os olhos das pessoas reclamam de sua cegueira.
     Ao  ver  a  imagem  desse  menino  morto  pela indiferença dos que medem a vida humana por PIB, taxa de emprego, juros, superávits e déficits, sinto como se eu também estivesse morto ali. Todos nós estamos mortos ali.