domingo, 31 de julho de 2016

Animais selvagens da metrópole


     Hoje  levantei  cedinho  e,  aproveitando  um  dia  quente de verão, fui para o parque de Richmond, que fica a quarenta minutos de minha casa, de bicicleta, indo pela margem do rio Tâmisa. Parece incrível que dentro da metrópole se possa encontrar grandes animais selvagens vivendo em hordas como esta. 
     Foi  um  domingo  de  longas  caminhadas  pelas  muitas trilhas da região, com paisagens fantásticas, piquenique à beira de um lago e algum tempo simplesmente deitado sob uma árvore centenária. Este é um lugar aonde gostaria de trazê-lo quando um dia tivermos a oportunidade de viajar juntos para Londres. Até lá, se eu ainda for páreo para você, disputaremos corridas, lutaremos na grama, jogaremos pedras sobre a superfície das águas, para que ricocheteiem. 
     Mas  isso  nem  precisa  ser  por  aqui,  já  que  temos  no Brasil tantos lugares assim: Caraça, Chapada Diamantina, Lençóis Maranhenses, Bonito... Quem sabe não estaremos juntos em alguns desses lugares em breve?

quarta-feira, 27 de julho de 2016

Não há adultos

     Acordei  hoje  com  um  espírito  de  brincadeira  e naturalmente pensei no meu menino, que se encontra tão longe de mim. Estou disponível para guerra de travesseiro, lutas na cama, disputas de corridas, andar na chuva, esconde-esconde, cabra-cega, adivinhações, soltar papagaio, soprar dente-de-leão, fazer bolhas de sabão, assustar cachorro... Desejo que em breve tudo isso, que por agora ficará apenas na vontade, possa realizar-se em sua companhia. A despeito de todas as violências da vida, ou por causa delas mesmo, não perdi o espírito de criança, que refloresceu depois de ter tido meu filho.
     Está  aqui,  sobre  a  mesa,  o  livro  La  Vie  Humaine, do filósofo contemporâneo francês André Comte-Sponville. Ontem à noite estava lendo nele uma passagem que tem muito a ver com a disposição em que estou hoje:

     Este  homem,  não  muito  mais  velho  que  eu,  que cumprimento educadamente no elevador, sabe ele que é um menino que lhe fala um pouco intimidado, um pouco envergonhado por ter de falar com um adulto como se ele próprio fosse um, e surpreso, sim, quase lisonjeado, apesar de seus 50 anos, de que o outro pareça acreditar nisso? De minha parte sem dúvida não sei nada sobre o menino que meu vizinho foi um dia... para si mesmo, desconhecido de todos, e, como absurdamente enterrado sob o disfarce de um quase sexagenário... Não há adultos. Há apenas crianças que fingem ter crescido ou que cresceram de fato, mas sem conseguir acreditar nisso, sem conseguir eliminar a criança foram, que continuam sendo, que eles trazem consigo ou que os trazem com ela...

      Para  além  das  responsabilidades  que  o  crescimento nos trás, essa criança de que trata o pensador francês estará para sempre viva em mim e há de manter vivo e indestrutível o vínculo entre nós dois, pois sei que você também a levará pela vida afora.

domingo, 24 de julho de 2016

Divagações de domingo

     Perambulando  pelo  computador,  casualmente  me deparo com as fotos do seu nascimento e fico a contemplá-las. Numa delas você está chorando e se contorcendo sobre uma balança eletrônica que mostra seu peso em seu primeiro dia: 3,625 kg. Em outra o médico está desobstruindo suas narinas. Em outra ainda você está deitado de bruços sobre meu peito, no quarto do hospital Mater Dei, em Belo Horizonte. Seguro-o ainda meio desajeitado, com aparência de cansado e maldormido e uma barba de uns cinco dias por fazer.
     Lembro-me  bem  daquele  dia.  Era  uma  radiosa  manhã de sol de um domingo de fevereiro de 2005. Tal como a manhã que está começando para mim no verão deste outro lado do Atlântico. Naquele início de minha trajetória de pai, eu imaginava que atravessaríamos a vida juntos e que acompanharia de perto cada etapa de seu desenvolvimento, que estudaria com você e participaria de reuniões em sua escola, que viajaríamos juntos, que teríamos uma vida "normal" de pai e filho. Mas aconteceu o turbilhão que nos obrigou a viver separados e, alguns anos depois, em dois recantos muito distantes do mundo.
     Quando  voltar  para  o  Brasil,  quero  ter  na  minha casa um quarto para você, decorado com você, para que venha quando quiser e para que possamos resgatar um pouco da vida que estamos perdendo.

quarta-feira, 20 de julho de 2016

Saudades de Minas


      Uma  vez,  viajando  pelas  imediações  de  Tiradentes  e São João del-Rei, encontrei um misto de venda e lanchonete com fogão a lenha, "Uai-fi" e um pão de queijo estupendo. Como já vou caminhando para um ano inteiro longe de casa, de vez em quando me baixa uma saudade de nossa terra. É o que está acontecendo hoje, após uma semana de bastante trabalho e perambulações por esta ilha ao norte do mundo.
     Minha  mãe  costuma  dizer  que  tem  dó  de  mim, obrigado que sou a enfrentar as loucuras de terras estrangeiras, o frio intenso, a solidão... Eu mesmo gosto de exagerar para ela a dureza da minha realidade, a fim de garantir sua solidariedade e suas orações para que os santos de seu catolicismo barroco velem por mim. Chego a reclamar que ela não me dá conselhos e me deixa ao deus-dará pelo mundo, para sua inevitável resposta: "Filho não está nem aí para o que a gente fala".
     Num  tempo  em  que  tanto  se  cultua  a  felicidade obrigatória e ostensiva, continuamos muito mais a lutar contra a infelicidade que propriamente a buscar a felicidade. Nesta tarde calorenta do verão londrino, penso que eu estaria feliz em torno de uma mesa com minha mãe, você e minhas irmãs (com Pérola a nossos pés), tomando um cafezinho e conversando despreocupados, como fizemos tantas vezes. Se possível, em Minas, que permanece "onde sempre esteve".

segunda-feira, 18 de julho de 2016

Um rua em Cardiff


     Desde  que  deixei  meu  emprego  na  universidade  onde trabalhava, passei a ter uma vida meio errante como tradutor e intérprete. Espero voltar para outra universidade em breve, pois gosto do contato com os alunos. Enquanto isso, de vez em quando viajo pelo país em virtude das necessidades do trabalho e aproveito para conhecer melhor o que existe por aqui. 
     Estou  hoje  em  Cardiff,  no  País  de  Gales,  num  dos raros dias de sol nestas latitudes. Tendo tido a opção de me hospedar em hotel ou na casa de uma família galesa, preferi sem dúvida a segunda alternativa. Assim, estou num bairro da cidade, próximo da área central, de um parque e de um castelo. Quanto à família que me recebeu, pai, mãe e dois filhos adolescentes têm me tratado muito bem. Gostam de conversar comigo e de me perguntar coisas do Brasil enquanto tomamos juntos um chá no fim da tarde, quando chego. Embora nosso país ultimamente venha nos dando muitos motivos para falar mal dele, prefiro lhes contar sobre como as pessoas em geral são boas, calorosas e hospitaleiras em nossa terra, sobre como nossas comidas são deliciosas e, já que desejam sempre saber, como o tempo está quase sempre bom e ensolarado nos trópicos, o que lhes causa verdadeira inveja.
     Aí  está  a  rua  de  casas  de  um  estilo  vitoriano tardio onde estarei até amanhã. Gosto da forma como os arquitetos aproveitam bem os espaços para criar cômodos bastante amplos em dois ou três andares. E, nesta época do ano, gosto também dos jardins sempre muito coloridos, com hortênsias resplandecentes por todo lado.
     Como  estamos  na  beira  do  mar,  têm  me  chamado atenção as gaivotas, que estão por todo lado, sempre sobrevoando nossas cabeças e sempre gritando, como a se comunicarem em sua busca por comida.
     Uma  das  coisas  que  me  fascinam  nos  lugares  que  tenho visitado são os nomes das cidades. Alguns são poéticos, outros estranhos, outros originais: Tallin, Marrakech, Ayutthaya, Siem Reap, Penang, Kiev, Brugges, Tacuarembó, Cochabamba, Aiuruoca, Araraquara, Farroupilha... Desejaria conhecer as cidades de Kandahar, Vladkavkaz ou Isfahan somente pelos nomes que têm. Cardiff, com esses dois "efes" no final, é um desses nomes que instigam a vontade de viajar.
     Quanto  às  cidades  britânicas  especificamente,  o que mais me agrada nelas é sua abundância de parques e outras áreas comuns, abertas à frequentação de todos. Quando vejo isso, penso no quanto falta às cidades brasileiras um planejamento para o coletivo. Se elas tivessem mais espaços de convivência entre pessoas diferentes, por certo teríamos menos violência, preconceito e discriminação.
     Sempre  que  vou  a  um  lugar  diferente,  sempre  que experimento um novo sabor, sempre que vejo meninos brincando pelos parques, costumo pensar em você e dar vazão a minha saudade, que vai ficando mais intensa à proporção que aumenta o tempo da distância entre nós. Mas há que se ter paciência e enfrentar os desafios que a vida nos apresenta.

quinta-feira, 14 de julho de 2016

O "paulista de pizza rodízio"

     Estava  folheando  há  pouco  um  livro  do  cartunista  Henfil, publicado em meados da década de 1970, quando corri os olhos sobre estas perguntas, que ele faz a propósito de dois tipos brasileiros: "Quem é mais gente, mais humano, um nordestino flagelado ou um paulista de pizza rodízio? Quem é mais recuperável? Quem ainda chora, ri, cheira feito homem?".
     Como  essas  perguntas  são  atuais  no  momento  em  que  vivemos hoje, quando tantos "paulistas de pizza rodízio" ocuparam o espaço público com sua inépcia e ajudaram a impulsionar o caos em que o Brasil mergulhou. Obviamente o "paulista de pizza rodízio" marca hoje a paisagem de todos os estados brasileiros, embora um deles venha se destacando pela mentalidade retrógrada e a ignorância política de sua classe média, a mesma que se empanturra nos rodízios de uma Vila Olímpia qualquer.
     Desejo  muito  que  você  possa  viver  num  mundo  mais amplo, com contato com gente de diferentes classes sociais, com diferentes estilos de vida. Por isso, quando vou a São Paulo, costumo levá-lo a regiões da cidade onde você nunca esteve, colocá-lo para jogar futebol com meninos da favela próxima à USP, andar com você pela área central da cidade, para que tome consciência do problema dos mortos-vivos que perambulam por lá, em virtude da dependência das drogas. Por isso já não vejo a hora de você poder viajar comigo e ver um pouco da diversidade e da beleza deste mundo. Quero vê-lo crescer como uma pessoa consciente e um verdadeiro ser humano.

domingo, 10 de julho de 2016

Da educação contemporânea

     Uma  das  coisas  que  mais  me  preocupam  nesta situação em que vivemos é não poder acompanhar de perto seus estudos nem contribuir mais efetivamente no seu processo de escolarização. Conhecemos muito bem o fracasso do sistema brasileiro de educação básica. Quando passei por ele, a qualidade já era ruim, mas, como estudei em escola municipal numa cidade do interior de Minas, ainda havia a proximidade com os centros de decisão e vários bons professores. E desde cedo percebi a necessidade de ir além do que a escola oferecia, ter algumas horas para estudar em casa diariamente, participar de grupos de estudo e ler muito. Não havia o estigma contemporâneo contra a memorização. Ainda hoje sei várias fórmulas matemáticas de cor, sei mais de cem poemas de cor e acho que isso é também conhecimento. Essas fórmulas e esses poemas vivem em mim.
     O  sucateamento  da  educação  foi  se  aprofundando  ao longo dos anos, e nenhum governo fez coisa alguma para impedi-lo, de modo que chegamos ao ponto de ter hoje escolas - inclusive as particulares - que são uma fábrica de pessoas incultas, despolitizadas e com problemas relacionados a sua civilidade. Vejo hoje que meus próprios alunos de universidade em país "rico" estão entrincheirados em seus guetos nas redes sociais na internet, têm como grandes referências figuras da cultura de massas, não sabem ler números romanos, não compreendem a nomenclatura gramatical nem dominam de cor as multiplicações e divisões básicas, além de fazerem uso de uma linguagem sempre plena de informalidade e muito tolerante com a vulgaridade. Vivem numa constante ocupação com as rotinas cotidianas, sem tempo livre para parar, ficar em silêncio e se encontrarem consigo mesmos. Ou para simplesmente romper com a mesmice e experimentar coisas novas.
     Gostaria  de  poder  ir  às  reuniões  de  pais  em  sua escola, de estudar com você e estabelecer seu tempo diário de estudar, bem como suas horas livres para fazer o que quiser. Gostaria de estudar com você, discutir temas da atualidade, levá-lo a museus e teatros, vê-lo jogar futebol e também deixá-lo sozinho ou na companhia de seus amigos. Mas a vida está sempre longe de se ajustar a nossas expectativas, embora possamos conquistar algumas coisas com nosso poder de decisão e nosso esforço. É o que pretendo fazer em breve. 

quarta-feira, 6 de julho de 2016

Uma Pérola de alto valor


     Minhas  irmãs  me  enviam  uma  foto  de  Pérola  em  que ela está sorridente e feliz, como é peculiar a seu estilo de vida. Quando vou à casa de minha mãe, ela passa os dias me acompanhando aonde quer que eu vá. De tanto ficar comigo na biblioteca da casa, enquanto estou lendo ou escrevendo, dizem que é minha secretária. Mas seu momento preferido é o fim de tarde, quando saímos juntos para um longo passeio. Os meninos que encontramos pelo caminho sempre querem passar-lhe a mão na cabeça e sentir a textura de seus pelos, o que ela permite de bom grado. É o cachorro mais dócil que já conheci em toda a minha vida, dona de uma alegria autêntica e de uma paz de espírito verdadeiramente budista.
     Na  última  vez  que  o  encontrei,  você  me  disse  que havia passado alguns dias em Minas, pedindo que o levassem a Divinópolis numa tarde de sábado para visitar a casa de sua avó. E que, ao entrar, foi recebido por Pérola com uma lambida na perna. Ela o farejou, talvez se recordando de que gostava de sentar-se a seu lado, quando você era bebê, e ficar velando por sua segurança, embora ela mesma fosse ainda muito jovem. Lembro-me de que você gostava de me ver lutando com ela, que se lançava sobre mim rosnando mas tomando todo cuidado para não me machucar com suas mordidas de brincadeira. Com isso geralmente eu a imobilizava no chão, para logo depois soltá-la e me levantar com pose de pai herói. 
     Hoje  em  dia,  quando  minha  mãe  está  aposentada  e passa muitos dias sozinha em casa, Pérola é sua grande companhia, de uma fidelidade talvez maior que a dos próprios filhos. Como o tempo passa muito rapidamente para os cachorros, sempre que a revejo, quando vou ao Brasil, ela está com mais pelos brancos em torno da boca e alguns problemas de saúde. Lamento muito não poder conviver com Pérola mais frequentemente. Como agora você já é um rapazinho alto e forte, também gostaria de vê-lo enfrentando-a numa luta.

sábado, 2 de julho de 2016

Da alegria


     A  vida  é  alegria,  embora  haja  tanto  sofrimento  em seu decurso. Por isso as coisas só fazem sentido se nos dão prazer ou ao menos se temos de enfrentá-las para atingir o que desejamos. No Brasil, temos o costume de fazer piadas com nossas catástrofes. Talvez por isso os brasileiros conseguem tocar a vida adiante sem enlouquecer, apesar de sermos feitos de palhaços todos os dias.
     Quando  o  encontro  depois  de  muitos  meses,  como tem acontecido nos últimos anos, em vez de passar horas pesadas, com conselhos de pai para filho ou reclamações acerca das semanas que passo sem receber notícias suas, prefiro lhe contar histórias engraçadas, constrangê-lo divertidamente ao nomear sua beleza estonteante, dar-lhe os livrinhos do Pequeno Nicolau. 
    Por  falar  em  literatura,  Guimarães  Rosa  deu  o  belo título de "Margens da alegria" a um conto sobre a descoberta do mundo por um menino em viagem. E Oswald de Andrade definiu muito bem as coisas no poema mais curto da literatura brasileira: 

                                                     Amor 

                                                    humor