quarta-feira, 30 de março de 2016

O primeiro jogo e seu primeiro gol


     Sou  vizinho  do  lugar  onde  ocorreu  o  primeiro  jogo de futebol da história. No fim de semana, descobri que há por lá uma placa celebrando o acontecimento, inaugurada quando se fez 150 daquela primeira partida. Como já joguei no Battersea park muitas vezes, em muitas áreas diferentes, é provável que tenha corrido sobre o mesmo terreno onde o primeiro jogo aconteceu. 
     Soube  que  esse  evento  histórico  se  deu  pouco  depois de as regras do futebol moderno, que mudaram muito pouco até hoje, serem criadas. A primeira partida teve de ser adiada por uma semana, e os jogadores de cada time foram escolhidos pelo presidente da Football Association e pelo secretário da instituição. Depois do jogo, foi feito um brinde ao "sucesso do futebol, independentemente da classe social e da crença das pessoas". Pela data em que tudo ocorreu, sabe-se que os jogadores tiveram de enfrentar um frio tremendo.
     Os  rapazes  que  estabeleceram  as  regras  do  futebol  e organizaram esse primeiro jogo certamente nunca imaginaram que o esporte teria o impacto social, econômico, cultural e até político que tem hoje, movimentando tantas paixões em todos os recantos da Terra.
     Como  todo  brasileiro,  eu  mesmo  gostaria  de  ter  me tornado jogador de futebol. Se tivesse crescido em outras circunstâncias, talvez pudesse ter conseguido isso, pois, quando disputava campeonatos seriamente, era um atacante rápido, impetuoso e goleador. Nos campos de futebol aprendi muita coisa sobre ética, democracia, mérito e respeito pelos outros. Mas neles também já passei muita raiva. 
     Porém,  o  melhor  que  o  futebol  tem  me  dado  é  a oportunidade de jogar com você. Lembro-me de que seus primeiros presentes foram uma bola e um macacão de bebê do Galo. E que, mesmo antes de começar a andar, eu o levantava no ar e o impulsionava para chutar a bola com os dois pés, o que o divertia. Mais tarde pude ensiná-lo a controlar a bola, chutar, cabecear, driblar. E um pouco mais tarde, quando você tinha quatro anos, lembro-me do seu primeiro gol num jogo na quadra do condomínio onde eu vivia, em São Paulo. Numa partida com meninos que ali moravam, driblei dois zagueiros, fiquei cara a cara com o goleiro e passei-lhe a bola de lado. Você a chutou para as redes com firmeza, de bico, e correu para me abraçar. Levantei-o no ar como quem levanta a própria Copa do Mundo. Em realidade aquilo foi, para mim, melhor que ganhar a Copa do Mundo.

segunda-feira, 28 de março de 2016

Nosso endereço no mundo

     Há  uma  passagem  na  peça  Nossa  Cidade,  de Thornton Wilder, em que uma personagem conta sobre uma carta que um religioso local enviou para certa Jane Crofut, uma moça que vivia numa fazenda das imediações da cidadezinha onde morava. Sobre o envelope, no lugar do destinatário, ele escreveu: 

     "Jane Crofut
     Fazenda Crofut
     Grover's Corners
     Condado de Sutton
     New Hampshire
     Estados Unidos da América
     Continente Americano do Norte
     Hemisfério Ocidental
     Terra
     Sistema Solar
     Universo
     Mente de Deus"

     Este  sobrescrito  na  missiva  para  alguém  que  vive numa região rural e afastada de tudo chama a atenção para a universalidade das questões humanas. Por mais distante que estejamos dos lugares onde "tudo acontece", somos sempre confrontados com os eternos desafios humanos do sentido da vida, de encontrar um caminho no caos deste mundo, de nossa relação com o amor e a morte. Quando eu morava no lugar pequeno e provinciano onde nasci, tendo vivido a infância numa ruazinha chamada Passa Tempo que nem calçamento possuía, sendo um menino pobre e tendo crescido entre meninos pobres, eu assistia todos os dias, naquela mesma ruazinha de terra, aos mesmos dramas mostrados nas peças de Shakespeare ou nos romances de Machado de Assis. Todas as paixões humanas estavam ali contidas. Por isso não importa muito onde você esteja, mas a sua postura diante dos desafios da vida. Por isso sempre lhe falo da necessidade de ter amigos, refletir sobre seus problemas, respeitar os outros e fazer o que gosta, ainda que essas coisas não lhe tragam dinheiro, sucesso e popularidade. Elas o farão mais humano e lhe proporcionarão mais momentos de alegria. É isso o que vale a pena e o que fica desta nossa precária passagem por este mundo.

segunda-feira, 21 de março de 2016

Tempo inexorável


     Há,  na  National  Gallery,  uma  pintura  alegórica  de Pompeo Girolamo Batoni, de meados do século XVIII, que sempre me impressiona quando paro diante dela por algum tempo. Tem como título "O Tempo ordena à Velhice que destrua a Beleza". Tempo, Velhice e Beleza estão ali personificados. O Tempo é uma figura alada de homem já bastante maduro, como a sugerir que o ritmo da vida voa e tudo se perde muito rapidamente. Com a mão direita, ele segura uma ampulheta em cujo interior mais da metade da areia já caiu para a área inferior. Em posição de comando, ele aponta o indicador da mão esquerda para a Beleza, representada por uma mulher jovem, saudável e elegantemente vestida, mandando que a Velhice, representada por uma mulher encarquilhada, curvada e decrépita, arruíne a graça e o frescor da Beleza. A Velhice, trajando roupas surradas e remendadas, segura um rústico bastão na mão esquerda e leva a mão direita espalmada em direção ao rosto da Beleza, que esquiva-se com um olhar assustado e melancólico diante do inelutável. Tudo se passa dentro de uma caverna, como a reverberar o mito contado por Platão para enfatizar que os homens vivem nas trevas, possuindo um conhecimento muito vago e muito precário da existência.
     Lembrei-me  desse  quadro  ao  pensar  na  passagem  do nosso próprio tempo. Como ele passa rapidamente na distância! De repente o meu menino - que ontem mesmo, quando bebê, eu carregava no colo, a quem alimentava, de quem trocava fraldas e em quem dava banhos, para quem mais tarde contava a história dos Três Porquinhos todas as noites, antes de dormir - floresceu como um rapazinho pleno de beleza e vitalidade. Sempre que o vejo depois de muitos meses sem reencontrá-lo, surpreendo-me com sua altura, o formato de suas mãos, sua velocidade em nossas disputas de corridas.
     De  minha  parte,  obviamente  sinto  ainda  mais  que você os efeitos do tempo. Linhas mais fundas já marcam meu rosto, cabelos brancos se espalham por minha cabeça, minha velocidade diminui e amplia-se uma visão mais desencantada dos homens. Mas o tempo não me trouxe apenas destruição. Sinceramente gosto mais do que sou hoje do que do que era aos 20 anos, se é que se pode separar-me em dois. E o tempo por si só curou feridas e frustrações, ensinando-me a amar a vida pelo que ela é, não pelo que deveria ser. E o fato de ele um dia vir a me retirar de cena me proporciona um sentido e um ânimo de fazer alguma coisa diferente, principalmente de cultivar alguns valores essenciais e estar bem com quem estiver comigo.

terça-feira, 15 de março de 2016

Um país bipolar

     O  Brasil  é  um  país  bipolar.  Oscilamos  rapidamente entre a euforia e a depressão, saltamos do puro-sangue ao vira-lata e vice-versa de uma hora para outra. Tropeçamos de paroxismo em paroxismo e estamos muito longe do postulado de Aristóteles, para quem a virtude está no meio, ou seja, numa visão equilibrada das coisas e numa ação igualmente equilibrada. 
     Lembro-me  de  que,  quando  me  mudei  do  país, em 2011, só se falava no Brasil. Muitos brasileiros expatriados estavam retornando, havia uma grande onda de estrangeiros chegando para ficar, o PIB (esse termômetro dos políticos de ocasião) estava crescendo muito e havíamos nos tornado a sexta maior economia do mundo, com perspectivas de nos tornarmos a terceira em 20 ou 30 anos. Nossa presidente, a mesma que hoje é vilipendiada por essa imprensa canalha que temos, exultava com fantásticos níveis de popularidade e era incensada pela mídia internacional como "a segunda mulher mais poderosa do mundo". Estávamos com um pé no Conselho de Segurança da ONU e éramos respeitados como incontestável liderança latino-americana. O futuro enfim havia chegado para o "país do futuro".
     No  entanto,  se  todos  nós  tivéssemos  dormido durante esses quatro anos e meio e acordado agora, não acreditaríamos que se tratasse do mesmo país. De puros-sangues que éramos, nesse curtíssimo lapso de tempo histórico nos tornamos os mais desprezados vira-latas. O golpismo da mesma oligarquia criminosa que suicidou Getúlio Vargas, depôs João Goulart e possivelmente assassinou Juscelino Kubitschek criou uma enorme estabilidade no país, aprofundou uma crise econômica que resulta de fatores internacionais aliados a escolhas de um governo realmente ruim, gerou recessão e retração do PIB. Direitos da cidadania duramente conquistados nos últimos 15 anos estão se perdendo, os três poderes estão apodrecidos pela corrupção e há um clima propício à expansão da violência e à ascensão política de algum charlatão com o beneplácito das forças reacionárias e suas Folhas de S. Paulo, suas Redes Globos, suas revistinhas semanais de pseudojornalismo. Políticos e intelectuais fascistas já recebem ampla cobertura jornalística. As abomináveis redes sociais estão aí para dar vazão à cloaca mental de todos os imbecis. E nossa presidente, uma mulher de 68 anos, é referida por meio dos termos mais chulos por membros dessa classe média de cidade grande que não perde a oportunidade de exibir sua grosseria por todo lado.
     A  oligarquia  dominante,  que  sempre  vampirizou  o Brasil, sempre o considerou um país de quinta categoria. Ela, que é milionária de fato, está agora, como em outros momentos, manipulando essa classe média sadomasoquista através do aparato midiático, fazendo-a bater panela e ir para as ruas sob a crença de que o único problema do Brasil é a corrupção (e que essa corrupção é prerrogativa de um partido e de um candidato à presidência em 2018, que pretendem destruir).  
     Embora  seja  a  corrupção  de  fato  um  problema  sério, ela está longe de ser a grande responsável por nosso inferno. O descalabro em que estamos em realidade advém da vergonhosa desigualdade entre as pessoas. Nos insultos que a classe média fantoche e a imprensa cão de guarda têm expectorado, não se tem ouvido uma palavra sobre reforma de nossas esclerosadas instituições, expansão e qualificação de políticas sociais, melhoria do sistema público de educação, democracia participativa e, muito especialmente, políticas de distribuição de renda. Os próximos tempos não se apresentam como muito promissores, com a perspectiva do aprofundamento da guerra social em que vivemos e com a qual parece que já nos acostumamos.

domingo, 13 de março de 2016

Manhãs de sol


     Há, na Escandinávia, uma crença popular de que uma criança nascida num domingo possui poderes sobrenaturais e terá muita sorte na vida. Lembrei-me disso nesta ensolarada manhã de domingo, lembrando-me também de que você nasceu numa ensolarada manhã de domingo de 2005, em Belo Horizonte. Talvez os escandinavos tenham razão, pois há poderes sobrenaturais no seu olhar, na sua aura de pessoa boa. Quanto à sorte na vida, você também a tem tido em sua infância segura de classe média na região sudoeste da cidade de São Paulo. E desejo que continue sendo favorecido por ela nos intrincados caminhos da vida adulta.
     Eu,  que  nasci  numa  segunda-feira,  não  possuo  seu carisma, nem sua pureza, nem sua sorte. Sou instável, muito impulsivo, estou sempre em conflito por todo lado, e a fortuna não tem sido bastante generosa comigo. Mas esse handicap fez com que eu desenvolvesse a resistência, a flexibilidade e a perseverança... Que tantas vezes não me servem para nada.

quarta-feira, 9 de março de 2016

Som e fúria

     Fui  ontem  à  noite  assistir  a  uma  montagem  da tragédia Macbeth, de Shakespeare. Para o tirano escocês, que conquistou o poder não respeitando nenhum limite ético, chegando mesmo a exterminar quem se colocava no caminho da realização de suas ambições e entrando numa interminável roda-viva de crimes, a vida é “uma estória contada por um idiota, cheia de som e fúria, significando nada”. 
     Voltei  para  casa com a essa frase ressonando na cabeça. Quantos Macbeths dominam a política de hoje em tantos países! No caso do Brasil, eles abundam nos três poderes e são, em grande parte, responsáveis pela desorganização política e a instabilidade que reinam no país nos últimos anos. Macbeth hoje se reatualiza nos Aécios, nos Gilmar Mendes, nos Sarneys e Cunhas da vida.
     Quanto  à  falta  de  significado  da  vida em seu turbilhão de som e fúria, ao me pegar longe de casa e sozinho, roído de saudade mas tendo de viver o aqui e agora, a reflexão de Macbeth faz para mim todo sentido. Tal como o Brasil, minha própria vida possui uma forte demanda por estabilidade e segurança. Mas o tempo passa e isso não acontece. Tal como o Brasil, tenho sido eu mesmo uma eterna promessa que não se realiza. Mas é preciso prosseguir e dizer sim à vida, que vale a pena, apesar de tudo.

domingo, 6 de março de 2016

Arte para a vida


     Acabo  de  passar  cerca  de  cinco  horas  na  National Gallery, girando por diversos períodos da história da arte através da pintura. Muito especialmente em momentos de dificuldade, como o que estou vivendo agora, busco na grandeza daquelas obras alguma inspiração para não me rebaixar e para seguir em frente de cabeça erguida. Ao retornar para casa, vim pensando nos meus pintores favoritos. São todos muito imaginativos, bastante viscerais e meio delirantes: Hieronymus Bosch, Pieter Brueghel, Albrecht Dürer, Caravaggio, Jan Van Eyck, Frans Hals, Francisco de Goya, Van Gogh, Frida Kahlo...
     Lembro-me  de  uma  visita que fizemos ao MASP, na última vez em que nos encontramos, em agosto do ano passado. Foi uma experiência marcante rodar pelo museu com você, parando diante de obras tão importantes da história da arte e comentando-as, ouvindo suas impressões. Quando eu retornar ao Brasil, quero voltar a fazer isso muitas vezes junto com você.

quarta-feira, 2 de março de 2016

Ágape

     Há  algumas  coisas  que me fazem feliz, mas se eu tiver de identificar o que hoje me faz essencialmente feliz é saber que você está feliz. Talvez esteja nisso a própria definição da paternidade/maternidade: aceitar que nossa felicidade passe a depender da felicidade do filho a partir do momento em que ele vem ao mundo. Esta é a própria definição do amor como ágape, incondicional e irrestrito. Amo-o por sua simples existência, não me importando se você será ou não o grande jogador de futebol ou o escritor reconhecido que eu gostaria de ter sido. Embora deseje participar de sua vida e dialogar sobre suas escolhas naquilo que você desejar minha participação, quero vê-lo encontrando seu próprio caminho e sua independência.
     A despeito de estar enfrentando sozinho um momento de muitas dificuldades bem longe de casa, estou feliz por saber que meu menino está bem na sua vida de classe média em São Paulo. E saber que está bem me dá forças para tomar as atitudes necessárias para que eu mesmo venha a estar bem por aqui.