quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Uma tarde, um reencontro

     Cheguei há pouco da região sul de São Paulo, próximo de sua casa, onde fui encontrá-lo. Angustiado com o atraso de 20 minutos da babá que veio trazê-lo, fiquei pensando no que aconteceria quando nos víssemos após dois anos inteiros distantes. Quando chegou, eu, que pensava não ter mais lágrimas após ter passado por tantas coisas atrozes, simplesmente o abracei e ficamos ali por alguns minutos, sem falar nada, apenas chorando.
     Tenho buscado não ter uma atitude sentimental diante da vida, que é muito cruenta e indiferente a nossos dramas. Mas simplesmente não contive minha emoção ao revê-lo. Só eu sei o que tenho passado após ter sido exilado de você, de haverem buscado reduzir judicialmente meu papel de pai ao de um idiota a lhe entreter a cada dois fins de semana, a ser servo de um procedimento da burocracia mais burra. Só eu sei o quanto penso em você. Só eu sei da angústia que sinto por não saber o que você tem feito, o que tem pensado, se tem valorizado coisas que estão muito além da banalidade pequeno-burguesa.
     Me surpreendi com sua altura e com as janelinhas nos seus dentes. Os novos, que estão nascendo, são de serrinhas, como os meus. Você disse haver se surpreendido com meu cabelo, que está bem curto. 
     Entreguei-lhe os presentinhos que trouxe da Inglaterra e recebi dois de seus presentes, preparados na escola para o Dia dos Pais e guardados até que nos encontrássemos.
     Fiquei sabendo que você está jogando futebol. Vi até duas medalhas de campeão que me deixaram orgulhoso. Outra surpresa foi saber que você tem jogado de lateral direito. Eu gostaria de vê-lo como atacante ou meio-campo. Mas tudo bem. Sou centroavante, mas meu pai, seu avô, era zagueiro. Apesar de jogar na defesa, fiquei sabendo que você faz muitos gols e que é excelente cobrador de pênaltis. Também gostei de ouvir suas opiniões firmes sobre os melhores jogadores do mundo. Você me contou que Messi é o melhor jogador, mas que gosta mais de Ronaldinho. Eu, que gosto dos dois, vi que estava diante de um já profundo conhecedor do beautiful game.
     Almoçamos juntos e, após brincarmos de joguinhos numa loja de eletrônicos de alta tecnologia, fomos ver um filme em 3D, A Origem dos Guardiões. Essas foram, para mim, experiências novas, pois não estou acostumado a esse tipo de entretenimento. 


     Por fim, antes que sua babá viesse buscá-lo, nos sentamos numa mesa para tomar um refrigerante neste de dia de forte calor, bem como para continuar a conversar sobre nossas vidas. Contei-lhe muitas coisas da Europa, e lembramos muitas coisas de alguns anos atrás. Ouvi suas histórias da escola e sua declaração de que sente muita falta de mim.
     Ao retornar para casa, enquanto enfrentava o caos paulistano de fim de tarde, atravessei um pedaço da cidade com um aperto no coração, pois sei que demoraremos muito tempo até nos encontrarmos de novo. E fui acossado por um forte sentimento de raiva, uma revolta que remexe minha cabeça e me faz pensar na violência dessa situação e na violência que um dia estive prestes a cometer. Mas felizmente me restabeleci e segui minha vida com dignidade. Será que a vida, ou Deus, ou o Diabo, ou o câncer, o que quer que seja, um dia punirão essa harpia?

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Um reencontro necessário


     Aí está uma típica paisagem paulistana, localizada no caminho do centro da cidade para minha casa, na zona oeste.
     Cheguei a São Paulo há dois dias, tendo saído de um frio de 3°C em Londres - com um céu cinzento e neve na semana passada - para um calor de mais de 30°C e um sol glorioso. Depois de passar um ano inteiro longe do Brasil, estou emocionado por reencontrar nossa gente e nossas coisas. E revoltado ao reencontrar alguns de nossos graves problemas também.
     Depois de muito esforço e muitos telefonemas para sua atual babá e para uma de suas ex-babás, consegui fazer com que nos encontremos na próxima quinta-feira. Estou ansioso por esse encontro, que não acontece há muito tempo e vem sendo muito aguardado. Quero lhe contar de minha vida e ouvir da sua. Escrevi-lhe uma cartinha, que deixarei para você juntamente com seus presentinhos. E desta vez vou lhe dar também um telefone celular, para que me ligue toda vez que desejar falar comigo, caso não o impeçam de fazer isso. Imediatamente eu retornarei a ligação e conversaremos tudo o que desejarmos. Veremos se isso vai realmente ocorrer.
     Estou feliz por estar prestes a revê-lo, por estar no Brasil, por poder me realimentar de nossa seiva mestiça. Você não tem ideia do quanto eu precisava disso!

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Uma volta

     Estou às vésperas de viajar para o Brasil após um ano inteiro distante. Não vejo a hora de encontrá-lo e conversar longamente com você, saber o que tem feito e como está sua vida, ao mesmo tempo em que lhe contarei sobre muitas coisas interessantes que tenho feito. Meu coração baterá mais forte quando o avião se aproximar do aeroporto de Guarulhos, e eu vir nosso relevo lá de cima. É sempre bom retornar ao país de Garrincha e Carmen Miranda, de Machado de Assis e Macunaíma, de Santos Dumont e Aleijadinho. Sei que não vai ser fácil voltar para cá em meados de janeiro, mas assim é a vida.

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Pequeno cavaleiro

     Trabalho perto de Trafalgar Square, onde fica esta escultura de um menino em seu cavalinho de pau. Sempre que passo por lá, olho para ela e penso em você. Uma vez lhe dei um parecido com este, quando vivíamos em Belo Horizonte. E muitas vezes o segurei, enquanto seu fogoso corcel galopava. Sinto saudade dessa inocência e dessas suas pequenas grandes aventuras. Será que você ainda galopa sobre cavalinhos de pau?

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Amarelos do outono

     É outono em Londres, e as folhas das árvores mudaram para várias tonalidades de amarelo e vermelho. O frio já está forte, ao menos para os padrões de um brasileiro, e tudo vai se preparando para a chegada do inverno. Ontem passeei por um parque vizinho de minha casa, o Tooting Bec Commom, onde muitas árvores trazem este amarelo vivo que Van Gogh pintaria. É belo. Porém já não vejo a hora de chegar ao Brasil após um ano inteiro a distância, me ausentando do inverno europeu durante um mês. Principalmente, preciso revê-lo e abraçá-lo, pois a saudade está me dando um aperto no coração.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Escrever é resistir

    Estive hoje na casa de Anne Frank, no centro de Amsterdã. Durante alguns anos, por ocasião da ocupação nazista, ela, sua família e alguns amigos judeus tiveram de viver escondidos ali, sem poder sair às ruas e contando com a colaboração e a proteção de amigos. Naquela casa, onde sofreu tantas privações, ela escreveu um diário que vai durar pela eternidade. Me lembro da comoção que tive ao lê-lo durante minha adolescência. Anne Frank encontrou na escrita uma forma de resistir e viver. Mas sua obra vai durar não apenas por isso, mas por haver sido escrita com beleza, testemunhando em profundidade o seu amadurecimento, a sua sede de saber, o sonho com um vida melhor que viria depois da guerra.
     Infelizmente um traidor, até hoje desconhecido, revelou aos monstros da extrema direita onde os membros da família Frank se escondiam. Eles foram presos e deportados para campos de concentração na Alemanha, em 1944, e Anne, aos 15 anos, veio a morrer de tifo sete meses depois, no campo de Bergen-Belsen, apenas um mês antes de sua liberação por tropas aliadas.
    Espero que, como Anne Frank, você utilize a sua sensibilidade para seguir em frente e sobreviver às situações difíceis que a vida lhe apresentar. Haverei sempre de conversar com você e de estimular sua sensibilidade e sua humanidade. O que conseguir realizar a partir disso, pode ter certeza, será o melhor que poderá obter da vida.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Crianças que sofrem

     Estou hoje em Bruxelas e amanhã partirei para Amsterdã. São as capitais de dois países dos mais estáveis da Europa. A propósito, cresci ouvindo dizer que os países europeus eram todos ricos e, em boa parte, igualitários. Pode ser que tenha havido uma época de ouro lá pelos anos 1960 e 70. Hoje, não é o que vejo toda vez que viajo pelo continente. Sempre encontro evidentes dificuldades econômicas e muitos despossuídos mendigando pelos locais onde passa muita gente. Hoje pela manhã mesmo, após uma noite muito fria, vi, no coreto de um parque na região central de Bruxelas, umas trinta pessoas ainda deitadas após terem passado a noite ali. Sempre fico revoltado com essas injustiças e jamais me acostumarei a elas. Mas fico entre comovido e indignado sempre que crianças estão entre esses abandonados. Tive uma infância muito carente no interior de Minas e conheço as marcas que isso deixa nas pessoas para sempre. E hoje tenho um filho, que felizmente tem as suas necessidades básicas resolvidas, mas o simples fato de tê-lo é suficiente para que eu me torne ainda mais sensível e solidário a esses meninos humilhados e ofendidos, que deveriam estar brincando em suas casas, estudando em suas escolas, jogando bola após comerem adequadamente. Num tempo em que a produção atingiu níveis tão elevados, é uma prova do fracasso da humanidade - ou ao menos dos poderosos de todos os quadrantes - o fato de haver tanta gente vivendo assim em praticamente todos os países.
      Espero que você jamais se acostume com a injustiça e lute sempre contra ela onde quer que venha a atuar. E no Brasil todos sabemos o quanto temos motivo para nos indignar e para lutar.

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Um dente-de-leão



     Já está fazendo um frio muito forte em Londres. Tudo indica que o inverno que se aproxima será bastante rigoroso. Já não vejo a hora de partir para o Brasil, o que ocorrerá no começo de dezembro. Estou com muita saudade de você, de minha família em Minas, de nossa cultura. Partirei do frio para o calor, dos dias escuros e curtos para a nossa claridade e nossa exuberância. Quero lhe dar meu abraço e meu beijo, colocá-lo no meu ombro e sair com você para passear.
     Há pouco, vagando pelo computador, vi esta foto, que foi tirada em algum lugar no campus da USP, num dia em que estávamos juntos. Logo depois você colheu esse dente-de-leão e o soprou, provocando um voo de plumas, como gosta de fazer. E como se diverte!
     Sempre me impressiono com sua visão encantada das coisas e muito aprendo com ela. Que a vida adulta e suas inevitáveis desilusões nunca matem essa poesia viva que existe em seus olhos e em seu coração de menino.

domingo, 28 de outubro de 2012

Viajando pela ciência

     Começa a fazer um frio intenso em Londres, e as árvores já se preparam para o inverno, que se anuncia como intenso. Mas acho que estou me acostumando com esse frio, com esse vento cortante e com uma chuvinha fina que é frequente por aqui nesta época do ano.
     Como gosto de fazer aos domingos, andei hoje pela cidade. Pela manhã, assisti a um excelente coral que canta músicas sacras da tradição católica em latim, fui ao Museu de Ciências em seguida e andei pelo Hyde Park no fim de tarde. Pensei muito em você, especialmente enquanto estava no museu, onde passei mais de três horas. Se pudesse ter estado lá comigo, você ficaria fascinado com a engenhosidade humana, como eu mesmo sempre fico. E, como tantos outros meninos que visitam o local, brincaria muito nas áreas destinadas à interatividade com as crianças. 
     Me lembro de uma vez em que o levei à Estação Ciência da USP, na Lapa. Foi bom vê-lo encantado com as experiências que fizeram diante de nós e também as de que você participou. Gostaria de vê-lo como alguém interessado no conhecimento e uma pessoa inteligente e criativa diante dos desafios que o mundo nos apresenta a todo momento.
     Já deu para perceber que estou morrendo de saudade de você, não?

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Raça e amor


     Ontem assistimos a um dos jogos mais fantásticos do Galo. Precisávamos da vitória sobre o Fluminense de qualquer maneira, já que o título do Campeonato Brasileiro deste ano está sendo disputado entre nós. Durante o primeiro tempo, chutamos quatro bolas na trave, e o goleiro oponente fez defesas milagrosas. O time carioca não chutou nenhuma bola no gol do Atlético. E a primeira metade terminou 0x0. Veio o segundo tempo. Até os quinze minutos, tudo continuou na mesma, com o Galo bombardeando, mas não conseguindo fazer o gol. Como o futebol costuma ser muito cruel, o Fluminense pegou um contra-ataque e fez o primeiro gol do jogo. No entanto, não nos abatemos e continuamos a pressionar o adversário. Por volta dos 25 minutos, Jô empatou. Continuamos a pressão e, já perto dos 40 minutos, Jô marcou outra vez, mas, em outro contra-ataque e numa falha de nossa defesa, o Fluminense fez seu segundo gol já muito perto do fim do jogo, num empate que praticamente decidiria o campeonato a favor deles. No entanto, rapidamente recolocamos a bola no meio e recomeçamos a pressão, acreditando na vitória. Até que, aos 47 minutos do segundo tempo, Ronaldinho colocou a bola na cabeça de Leonardo Silva, que testou com firmeza e fez o nosso terceiro e definitivo gol. 
     Entre as fotos do jogo hoje na imprensa, me chamou a atenção uma de um pai com o filho pequeno no colo, tendo o rosto retorcido pela apreensão. Posteriormente, ao fim da partida, outra foto o mostra abrindo um largo sorriso.
    Este foi um jogo a que eu também gostaria de ter estado presente com você. Nunca pude vivenciar um momento como esse a seu lado. Uma vez, há alguns anos, quando o Galo foi a São Paulo enfrentar o Corinthians, cheguei a comprar ingressos para que fôssemos juntos vê-lo jogar, mas, já próximo da hora de pegá-lo para irmos ao estádio, as coisas desandaram e não pude fazê-lo. 
     Ao menos espero que, na vida, você cultive o espírito do Galo e de sua torcida nesta partida. Como diz o nosso hino: "Lutar, lutar, lutar/ Com toda a nossa raça pra vencer".

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Presentinhos para o Natal

    
     O fim do ano está se aproximando e já estou em grande expectativa por retornar ao Brasil, onde ficarei por cinco semanas entre dezembro e janeiro. Já comprei passagens e espero poder reecontrá-lo bem, lhe dar meu abraço e meu beijo.
     Há alguns dias andei pela cidade em busca de alguns presentinhos para você. Levarei alguns livros, um uniforme do Arsenal com o nome Rabelo escrito nas costas, um tipo de patinete que é muito popular entre os meninos ingleses. Há algum tempo, estive na Itália, onde adquiri um bonito boneco de Pinóquio em madeira de que você vai gostar. É produto de um fino artesanato.
     Mas o que eu queria de verdade era poder ler com você, jogar futebol com você, levá-lo para andar de patinete no parque Ibirapuera, lhe contar a história de Pinóquio junto com seu boneco. Contudo, nas circunstâncias atuais, teremos de continuar separados. 
     Que essas coisas ao menos o façam lembrar que seu pai nunca o abandonou e que, dentro de mais alguns anos, quando você tiver independência para se movimentar sozinho até ele ou mesmo para fazer a escolha de com quem quer ficar, estará sempre a seu lado.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Asas para voar

     Há alguns dias estive na cidade de York, ao norte da Inglaterra. Num jardim próximo da famosa catedral gótica da cidade, encontrei uma estátua de Hermes, o deus grego de pés alados. Logo me lembrei de você e de uma frase num quadro de Frida Khalo: "Pies, para qué los quiero, si tengo alas para volar". Que você também tenha esse espírito e que sua vida possa ir muito além do prosaísmo do cotidiano, do utilitarismo das coisas convenientes e do mercantilismo da sociedade de consumo. Dentro de mais alguns anos, quero reencontrá-lo humanizado de fato. E será uma felicidade se você for uma pessoa criativa e generosa. Espero que eu possa estar com você nesse momento, conversar muito com você e fazer muitas coisas junto com você.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Da solidão

     Esta é a terceira vez que saio do Brasil para viver no exterior. Isso nunca foi fácil para mim, pois sinto muita falta de nossa gente, de nossas coisas, de nosso jeito de ser. Naturalmente há também o lado bom dessas experiências, como a abertura de novos horizontes e o conhecimento que se adquire acerca das coisas do mundo. Há, porém, um lado ambíguo que se relaciona com a solidão. Se por um lado ela é fonte de sofrimento, por outro nos proporciona maturidade e autoconhecimento.
     Você há de crescer e construir seu próprio caminho por este mundo. Por certo também enfrentará momentos de solidão onde quer que esteja. Espero que saiba lidar bem com ela e possa tornar-se, a despeito dela e por causa dela, um homem íntegro, uma pessoa inteligente e sensível. 
     Mas sempre que se sentir sozinho, tenha consciência de que em algum lugar estará seu pai, a quem você poderá sempre recorrer em busca de apoio e proteção.

domingo, 23 de setembro de 2012

Dias de chuva

     Este é um domingo de chuva em Londres. Eu iria sair e fazer alguma coisa pelo centro da cidade, mas quando abri a porta vi que seria muito incômodo enfrentar uma chuvinha fina e um friozinho chato que durariam o dia todo. Diante disso resolvi ficar em casa com meus livros, alguma música e um filme.  E eu mesmo fiz o meu almoço sem pressa, uma boa experiência.
     Neste fim de tarde, penso em você e sinto saudade. E me vem à mente uma história em sua companhia num dia de chuva. Uma vez, em São Paulo, saímos para almoçar numa segunda-feira chuvosa de dezembro. Peguei-o no colo e saímos debaixo de um velho guarda-chuva. Íamos conversando e parando para olhar os ônibus que passavam sobre poças e atiravam longe a água ali acumulada, coisa com a qual você se divertia. E também parando para olhar a enxurrada adentrar pelos bueiros. De repente, veio um vento forte e virou nosso guarda-chuva pelo avesso. Além disso, ele escapou de minha mão e correu longe. Não sei se por causa do susto ou pela surpresa de se ver subitamente na chuva, você disparou a chorar. Corri para debaixo de uma marquise, acalmei-o e fui pegar o guarda-chuva de volta. E seguimos nosso caminho até o restaurante, com você no meu colo, falando bastante e me contando sobre sua visão das coisas. E sempre fascinado pelo que via pelo caminho.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Seu caderno


     Hoje me lembrei de um caderno que mantive em São Paulo, que era uma espécie de diário de nosso relacionamento durante o pouco tempo em que pudemos partilhar uma convivência esporádica depois que fomos afastados um do outro. Nele eu falava da nossos encontros, do que havíamos feito juntos, de suas frases para a eternidade, de suas descobertas e suas pequenas grandes aventuras. Há até mesmo uma mecha de seu cabelo colocada num saquinho de plástico e grampeada numa das páginas. E me lembrei também desta canção de Chico Buarque, aqui interpretada por Toquinho. Os dois captaram poeticamente a relação de uma menina com o caderno em que ela escreve sobre sua experiência. 
     Em seu caderno, que um dia espero lhe dar, tentei captar um pouco da alegria e da variedade de nossa convivência por algum tempo. Pena que mais da metade de suas páginas ficaram em branco. Elas representam, como diz um de nossos maiores poetas, "a vida inteira que podia ter sido e que não foi".

sábado, 8 de setembro de 2012

Você no teatro

     Sou uma pessoa próxima do teatro e tenho estado bem junto dele recentemente. Nestas duas últimas semanas, venho acompanhando um festival de teatro latino-americano, tendo a oportunidade de assistir a peças vindas do Brasil, do México, da Argentina e do Chile. Estou organizando um evento em Londres sobre nosso grande Nelson Rodrigues, que completaria 100 anos em 2012, caso estivesse vivo. E também tenho ajudado na produção de uma peça dele por uma companhia inglesa.
     Me lembro de uma vez em que o levei ao teatro, para assistir a uma montagem de O Médico e o Monstro, no Teatro do SESI, na Avenida Paulista. Sempre que o Dr. Henry Jekill se transformava no monstro e entrava uma música de suspense e efeitos de iluminação, você pulava para o meu colo e se abraçava a mim. Se isso incomodou um pouco os espectadores vizinhos, ao menos a peça teve um interessante efeito catártico sobre meu filho. E eu adorei protegê-lo em seu momento de medo e insegurança.

domingo, 2 de setembro de 2012

Solidão


     Este é um domingo de fim de primavera. Já começa a chegar um friozinho, que deve ir aumentando gradualmente até o ápice do inverno, que costuma ser no mês de janeiro. Andei hoje pela área de Portobello Road e do Kensington Gardens, ao norte da área central da cidade. A certa altura me sentei num banco do parque e fiquei olhando uns meninos dando comida aos patos e pássaros que habitam o local. Naturalmente pensei em você, que gosta de fazer esse tipo de coisa. No resto do dia, senti um aperto no coração. Às vezes me bate uma forte sensação de solidão aqui. É o que está me assolando hoje. Além disso, há a saudade do Brasil e dos nossos dias mais coloridos, mais ensolarados. Mas é preciso resistir à tristeza e seguir em frente.
     A propósito, aí vai esta foto de dois passarinhos que tomavam banho perto de mim.

sábado, 25 de agosto de 2012

Memórias de uma noite de sábado

     Esta é uma noite chuvosa de sábado em Londres, e estou aqui sozinho. De repente comecei a pensar em você, a me lembrar de nossos passeios, de quando você era bem pequeno, e eu o colocava para dormir e lhe contava histórias. Sua preferida era a dos Três Porquinhos, que eu tinha de lhe contar inúmeras vezes. De modo que você sabia algumas passagens de cor e repetia-as junto comigo.
     Também me recordo de nossos passeios com você no meu ombro, vendo o mundo de cima e comentando tudo, perguntando sobre tudo. E de nós dois subindo barrancos, jogando futebol, fazendo bolinhas de sabão, andando na chuva, jogando pedras nas águas de rios e lagoas. São coisas que perdemos, mas que foram feitas, de minha parte, com grande felicidade a seu lado.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

O unicórnio


     No domingo passado estive em Hampton Court, que é um lugar lindíssimo nas proximidades de Londres. Na entrada do palácio de verão de antigos reis da Inglaterra, fica este unicórnio. E o palácio possui jardins lindíssimos onde vi muitos meninos correndo, brincando, alimentando os patos e os peixes nas lagoas. Naturalmente me lembrei de você e desejei que estivesse ali comigo. Eu o colocaria nos ombros - como você gosta - e nos perderíamos no labirinto que há no local, andaríamos por entre as flores e esculturas do jardim, lutaríamos na grama, disputaríamos corridas, brincaríamos de capoeira ou esconde-esconde.
     Há uma peça de teatro do americano Tennessee Williams, The Glass Menagerie, em que a personagem principal coleciona bichinhos de vidro. Seu favorito é justamente um unicórnio, símbolo de sua própria fragilidade que vem a ter o chifre quebrado no decorrer da ação, assim como ela também tem seus sonhos desfeitos. É mais ou menos assim que também me sinto numa hora como esta, mas sei que a vida dá suas voltas e que a fortuna é uma inconstante. Apenas prossigo minha vida tentando estar bem e agindo com ética e dignidade. É só o que me cabe por agora.

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Galo na ponta


     Acabo de ver esta charge, que alude à liderança do Galo no Campeonato Brasileiro deste ano. Estamos jogando muito bem, e tudo indica que, depois de vários anos com times ruins, seremos campeões. Se o grande Atlético que vi jogar foi o de Toninho Cerezo e Reinaldo, por agora o seu grande Atlético é o de Bernard e Ronaldinho.
     Espero que você continue atleticano, pois isso faz parte de sua família e de suas raízes. Eu sempre ficava feliz quando alguém pelo caminho lhe perguntava, em São Paulo: "Para que time você torce, menino?" E você: "Para o Galo!"
     No fim deste ano, quando eu for a São Paulo, lhe darei outra camisa do nosso time. Espero que ela seja valorizada ainda mais com a confirmação do título do Campeonato Brasileiro.

domingo, 12 de agosto de 2012

Um dia

     Hoje é o chamado Dia dos Pais no Brasil. Não vou vê-lo nem vamos estar juntos. Não vamos sequer conversar. Mas obviamente vou sentir muito a sua falta, como acontece em todos os dias do ano.
    Nos últimos tempos, tenho buscado não ter uma relação sentimentalista com essas datas. Apenas espero que em dezembro, quando eu for ao Brasil, possamos conversar um pouco e que eu possa lhe dar o meu beijo, falar da minha vida e ouvir da sua. E espero tê-lo comigo dentro de mais alguns anos, vendo-o como uma pessoa de bem, um homem consciente, autêntico e honesto. Assim gostaria de reencontrá-lo sempre ao longo de nossas vidas.
     Sei que você deve ter feito os desenhos e cartões de escola por ocasião do Dia dos Pais. E que não terá como entregá-los. Se puder, guarde-os para o dia que virá. É o que tenho feito como forma de documentar meus sentimentos e preencher um pouco do vazio que ficou, de ter voz em meio ao silêncio e à distância em que fomos obrigados a nos manter.

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Travis


     No fim do ano passado, quando tivemos um último contato, fui até a entrada do condomínio onde você mora e lhe deixei, entre outras coisas, uma cópia de Paris, Texas, de Wim Wenders, uma obra-prima do cinema recente. Sempre que assisto a esse filme, sou especialmente tocado pelo resgate da relação entre pai e filho após a desagregação da família de Travis, personagem com quem tenho grande identificação. Como ele, baixei aos infernos e tive de enfrentar sozinho a depressão, a falta de perspectivas, a necessidade de me reinventar e recriar a minha vida. Mas, também como ele, não tenho nenhuma mensagem edificante nem resolvi os meus dilemas e desafios. E, diferentemente dele, ainda não tive a oportunidade de refazer nossa convivência de pai e filho e encontrar um caminho possível à margem da canalhice que nos separou. 
     Um dia, quando você crescer um pouco mais, ao ver esse filme, haverá de compreender muito do que se passou em nossas vidas e de tomar consciência da precariedade das coisas humanas.

sábado, 4 de agosto de 2012

Um gato na Ucrânia


     Passei três dias em Kiev, na Ucrânia, e ouvi uma fantástica história em várias versões sobre este gato, chamado Pantyusha, que hoje é homenageado através desta estátua de bronze no centro da cidade. Acredita-se que passar a mão sobre ele da cabeça ao rabo dá sorte.
     Eu passava pelo lugar onde fica a estátua quando um senhor que ali estava me contou que há muito tempo ocorreu um incêndio na casa em frente, onde ele morava, e Pantyusha salvou a vida de seu dono, mas infelizmente veio a morrer nas chamas. Passa um tempinho, e chega uma guia com um grupo de turistas. Ela para na frente da estátua e conta que o bicho teria salvado várias pessoas por ocasião de um grande incêndio, mas morrido queimado. Passam mais alguns minutos, e o garçom do bar em frente, onde parei para tomar uma garrafa d'água, me conta que teria ocorrido um incêndio de proporções enormes, e Pantyusha salvou a cidade. Um quarto narrador que por ali me aparecesse certamente me contaria que o gato salvou o país de uma catástrofe. As proporções do incêndio e o número de vidas salvas aumentava a cada versão da história. Comum a todas elas é apenas a morte heroica do animal. Do contrário, a narrativa perderia muito de seu impacto.

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Retorno de viagem


     Acabo de chegar de uma viagem pela Finlândia, a Rússia, a Ucrânia e a Alemanha. Pensei muito em você nos 17 dias em que fiquei longe, chegando a sonhar, numa das noites por lá, que brincávamos num paque de Moscou, após eu ter passado a tarde anterior nesse parque.
     Aí está uma fotografia de um lugar que me marcou muito por sua beleza: a Igreja da Ressurreição de Cristo, em São Petersburgo. A propósito, me apaixonei pela Rússia, que é um país muito parecido com o Brasil em suas qualidades e também em seus defeitos. E como sou um entusiasta da literatura, pude percorrer os caminhos trilhados por grandes escritores russos, como Dostoiévski, Tolstoi, Gogol, Tchekov, Pushkin e tantos outros. Desejo que você também os leia e os ame quando crescer.
     Tive algumas dificuldades com a língua por lá, pois eu não sei o idioma do país, e é relativamente raro encontrar alguém que fala inglês na Rússia. Nem ler as coisas eu conseguia, pois não estou familiarizado com o alfabeto cirílico. Para se ter uma ideia, aí vai o meu nome em russo, tal como escrito na ficha de registro do hotel em Moscou: Адриано де Паула Paбeлo.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

A última conversa

     Me lembro da última vez em que conversamos. Foi no fim do ano passado. Deixei com sua babá alguns presentes para você e também uma carta em que me despedia, contava-lhe da tristeza que sinto por nosso afastamento e lhe dizia que estava de partida para muito longe.
     Em seguida fui para o centro de São Paulo, onde tinha de pegar um novo passaporte. Eu estava saindo do metrô quando recebi um telefonema. Era você, que chorava muito e me perguntava para onde eu iria. Não resisti e também me pus a chorar em plena Rua Barão de Itapetininga, por onde está sempre passando uma multidão. Disse-lhe que passaria a viver na Europa dentro de mais alguns dias. Conversamos por mais algum tempo, e você inocentemente me disse que queria vir morar comigo.
     Hoje faz exatamente seis meses que cheguei a Londres e aqui me estabeleci por tempo indeterminado. Tenho um bom emprego como professor numa ótima universidade, sou muito respeitado aqui e, depois de ter tido de enfrentar tantas porcarias, estou bem. Tenho a sorte de poder fazer o que gosto, de viver num lugar tão rico de história, arte e cultura, de aprender muitas coisas novas e enfrentar desafios estimulantes. Tenho até feito sucesso como centroavante nos campeonatos de futebol que tenho disputado por aqui. Mas há em mim um grande vazio. Penso em você todos os dias, sofro por nem sequer saber como você está, me lembro de você a propósito de meninos que encontro nos parques da cidade ou nas ruas por onde saio para correr nos fins de tarde. Mas mantenho a esperança de que vai chegar o tempo de você realmente vir morar comigo e realizar outra ruptura na sua vida. Se há alguma justiça no universo, esse dia há de chegar.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Seu caderno

     Deixei em minha casa em São Paulo um caderno de capa dura que foi uma espécie de diário de nossa convivência nos últimos meses em que pudemos nos encontrar. Nele registrei suas frases mais marcantes, seus gostos e suas extravagâncias, suas descobertas, nossos passeios e afazeres, seu perfil e sua visão de mundo de criança. Há coisas engraçadas e coisas muito pitorescas. Mas infelizmente, antes mesmo da metade desse caderno ser preenchida, muitas folhas ficaram em branco. Esta parte representa, como diz um de nossos grandes poetas, "a vida inteira que podia ter sido e que não foi". Fomos separados, enfrentei os piores momentos de minha vida, busquei me afastar diante do risco vir a cometer alguma atrocidade, segui adiante, vim para bem longe.
     Hoje tenho consciência de haver emergido de uma espécie de inferno. Tive de enfrentar o desemprego e a falta de perspectivas, uma depressão, dificuldades econômicas, um não saber para onde me virar. Mas o pior de tudo foi ter de fazer face a muita sujeira, foi ter de negociar com a canalhice. Passou.
     Espero que ainda não seja tarde demais para que eu possa lhe ensinar a medir o valor das pessoas apenas por suas qualidades humanas, a não tomar jamais o dinheiro como medida de todas as coisas nem a injustiça como coisa normal, a jamais baratear os seus sonhos em nome de uma domesticidade ordinária. Se eu puder influenciá-lo nessa direção, considero que meu papel de pai terá sido bem cumprido.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Uma continuidade perdida?

     Ontem eu estava assistindo a um jogo do Galo, que finalmente está com um bom time depois de tantos anos de vacas magras. Vencemos a Portuguesa por 2x0 e assumimos a liderança isolada do Campeonato Brasileiro. 
     Me recordo de uma vez que você estava comigo em meu apartamento no Butantã. Assistíamos a um jogo entre Atlético X São Paulo pela televisão, numa quarta-feira à noite. Nessa ocasião, o Galo também venceu por 2x0. Quando saíram os gols, nos abraçamos e vibramos juntos. Falavam mais alto as nossas origens mineiras e a raça atleticana. Como diz o hino: "Jogamos com muita raça e amor".
     Uma das coisas que considero mais tristes nesta nossa separação é a falta de continuidade entre pai e filho. Nem sei mais se você continua jogando futebol, como fazia frequentemente e com tanta alegria junto comigo. Nem sei se as camisas do Galo que lhe dei não foram jogadas no lixo. Nem sei se o amor à literatura, que procurei instigar em você, a esta altura não terá se perdido. Quantos livros eu li para você! Quantas histórias contei para você! Cheguei mesmo a publicar um livrinho para você, em que reconto literariamente as lendas e os mitos da tradição popular brasileira.
     Mas aconteça o que acontecer, sei que há muito de mim na sua personalidade. Como eu, você tem um jeito sério mas bem-humorado de ser. Seu jeito de olhar é exatamente o meu. E tudo indica que, como eu, terá forte personalidade. 
     Uma das coisas que mais nos faltaram foi a oportunidade de irmos ao estádio juntos, para assistir a um jogo do Galo. Uma vez cheguei a comprar os ingressos, para irmos ver um Atlético X Corinthians no Pacaembu. Mas na hora de pegá-lo em sua casa, as coisas desandaram, e tive de retornar sozinho. Sentindo muita raiva, dei os ingressos para dois amigos corintianos e também não fui ver o jogo. 
     O tempo passa, tudo muda. Um dia, você haverá de tomar consciência das coisas e julgar as razões de toda a vida que perdemos.

domingo, 8 de julho de 2012

Vésperas de uma viagem

     Nesta manhã de domingo, estou me preparando para uma viagem que farei ao leste da Europa a partir do próximo fim de semana. Ficarei dezessete dias entre a Rússia, a Finlândia, a Estônia, a Ucrânia e a Alemanha. Tenho grandes expectativas especialmente em relação à Rússia, pais que aprendi a admirar por causa de sua literatura, que é extraordinária.
     Nestes momentos em que começo a arrumar as malas para viajar, sempre me lembro de você e penso no quanto seria bom tê-lo comigo. Nesta turnê, por exemplo, eu teria tanta coisa a lhe mostrar, tantos lugares para passear com você sentado nos meus ombros! Mas tenho a esperança de que ainda viajaremos juntos dentro de mais alguns anos, quando você for mais independente e tiver condições de fazer a escolha sobre de que lado quer ficar. 

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Do garoto de Chaplin ao meu garoto



     Este é, para mim, um dos melhores filmes de todos os tempos. Impossível não ficar abalado de beleza e comoção com essa história de pai e filho tão forte e tão delicada. Como diz a legenda de apresentação: "A picture with a smile - and perhaps, a tear". E a música do filme também é excelente. Chaplin e Jack Coogan, o garoto, nunca mais serão esquecidos por quem os vê nesta filmagem de 1921. Além disso, no meu caso em particular, encontrei muitas identidades entre esse garoto e o filho com quem pude conviver durante alguns anos.

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Uma aprendizagem


     Há mais ou menos um mês estive em Paris, e este foi um momento em que pensei em você. Bem ao lado da Catedral de Notre-Dame há sempre um bando de passarinhos muito mansos, acostumados à horda de turistas que por ali passam todos os dias. Andando por lá, coloquei algum farelo de pão na palma da mão e a estendi. Imediatamente este aí veio e pousou sobre ela para comer. Se você estivesse aqui comigo, por certo se divertiria muito com esses passarinhos. Essa gratuidade e esse encantamento foram das coisas mais profundas que aprendi com você.

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Uma carta de pai para filho

     Há poucos dias, terminei de traduzir as cartas de Sacco e Vanzetti, dois anarquistas italianos que foram acusados, nos Estados Unidos, por um crime que não cometeram, tendo passado sete anos presos e enfrentado julgamentos vergonhosos que terminaram com sua condenação à morte. E foram executados por eletrucussão em agosto de 1927, não pelo crime de que eram acusados, mas pela intolerância reacionária, o preconceito assassino e a burrice direitista, infelizmente ainda muito presentes nos dias de hoje. Sua história não pode ser esquecida e tem muito a dizer ao Brasil de hoje. Por isso minha tradução deve ser publicada ainda neste ano.
     As cartas de Sacco e Vanzetti, escritas na prisão, constituem um depoimento comovente, ao mesmo tempo que contêm profundas reflexões sobre política. Uma delas, que trata da relação entre pai e filho, me toca muito diretamente e gostaria de reproduzi-la aqui. Cinco dias antes de sua execução, debilitado por uma longa greve de fome em protesto pela ignomínia do processo que resultou na sua condenação à pena capital, Nicola Sacco escreveu esta carta para seu filho Dante, então com 13 anos:

18 de agosto de 1927. Penitenciária Estadual de Charlestown

MEU QUERIDO FILHO E COMPANHEIRO:

Desde a hora em que o vi pela última vez, tenho pensado em lhe escrever esta carta, mas a extensão de minha greve de fome e a ideia de que eu não conseguiria me expressar adequadamente me fizeram adiar este propósito.
Há alguns dias, encerrei a greve de fome. Tão logo o fiz, pensei novamente em lhe escrever, mas achei que não teria força suficiente para terminar a carta de uma só vez. No entanto, faço questão de que ela esteja escrita antes do momento de nos levarem para a sala de execução, pois estou convicto de que farão isso assim que a Justiça se recusar a nos proporcionar um novo julgamento. Dessa maneira, entre sexta-feira e segunda-feira que vem, se nada de novo ocorrer, vão nos eletrocutar logo após a meia-noite do dia 22 de agosto. Portanto, aqui estou eu com você de novo, pleno de amor e com o coração aberto, tal como ontem.
Nunca pensei que nossas vidas inseparáveis pudessem se partir, mas parece que estes sete anos dolorosos fizeram isso conosco, apesar de não terem mudado o grande amor que nos une. Ele permaneceu tal como era. Mais. Diria que o sentimento inefável e recíproco que nos une é hoje maior que no passado. É de fato um amor imenso, pois, como se pode ver, ele está firme não somente nos momentos de alegria mas também nos momentos de tristeza. Lembre-se de uma coisa, Dante: nós temos demonstrado isso e, modéstia à parte, temos orgulho desse sentimento.
Como temos sofrido durante este longo calvário! Nós protestamos hoje tal como protestamos ontem. E protestaremos sempre pela nossa liberdade.
Se encerrei a greve de fome dias atrás, foi porque em mim não havia mais sinal de vida. Ontem protestei com uma greve de fome como hoje protesto pela vida, para não ser assassinado.
Eu me sacrifiquei tanto porque queria voltar a abraçar sua irmãzinha Ines, sua mãe, nossos amigos e nossos companheiros de luta. Hoje, meu filho, a vida começa a ser revivida lenta e calmamente, mas sem horizontes, com tristeza e com a perspectiva da morte.
Meu menino, após sua mãe ter me falado tanto em você e de eu ter sonhado com você noite e dia, foi uma enorme felicidade encontrá-lo finalmente e termos conversado como sempre fazíamos. Eu lhe disse muita coisa durante a visita e ainda tenho muito a lhe dizer, mas pude ver que você seguirá sendo o mesmo rapaz afetuoso e leal a sua mãe, que tanto o ama. Não quero mais ferir a sua sensibilidade, pois tenho certeza de que continuará a ser a mesma pessoa e se lembrará do que eu lhe disse. Mas o que vou lhe dizer agora vai mexer com seus sentimentos. Por favor, não chore, Dante, pois muitas lágrimas têm sido derramadas, sua mãe as tem chorado durante estes sete anos, mas elas em nada melhoraram as coisas. Sendo assim, meu filho, em vez de chorar, seja forte a ponto de poder consolar sua mãe. Quando quiser distraí-la nas horas de desalento, vou lhe dizer o que fazer. Leve-a para dar um passeio pelo campo, colhendo umas flores aqui e ali e descansando à sombra das árvores, sentindo a harmonia dos córregos e a tranquilidade da mãe natureza. Ela vai gostar de fazer isso, e vocês haverão de estar bem. Lembre-se sempre de uma coisa, Dante: no jogo da felicidade, não a conquiste somente para você, esteja do lado dos fracos que também a procuram e ajude-os, nunca se esqueça dos humilhados e ofendidos, pois entre eles você encontrará seus melhores amigos. Eles são os companheiros que lutam e às vezes tombam tal como seu pai e Bartolo lutaram e tombaram para que a liberdade fosse uma prerrogativa de todos os trabalhadores. Essa luta por uma vida digna se fará com amor, e você será verdadeiramente amado.
Sua mãe me contou as coisas que você andou dizendo durante os dias terríveis em que eu estava no corredor da morte. Fiquei muito feliz com o que ouvi, pois suas falas mostram que você será o rapaz que eu sempre sonhei ter como filho.
Portanto, aconteça o que acontecer nos próximos tempos, mesmo se nos matarem, você não deve se esquecer de olhar para os companheiros de luta com gratidão, tal como olha para as pessoas mais queridas, pois eles o amarão tal como amam cada um dos camaradas que tombam pelo caminho. Seu pai, que é tudo na vida para você, seu pai, que tanto o ama, seu pai que conhece nossos companheiros e sua nobre lealdade (que é também a minha), o sacrifício supremo que eles estão fazendo pela nossa liberdade, seu pai, que lutou ao lado deles e sabe que eles são a última esperança de que sejamos salvos da eletrocussão, seu pai sabe que você compreenderá no futuro a grandeza de lutar com os pobres contra os ricos por segurança e liberdade, meu filho.
Pensei muito em você quando estava no corredor da morte. Às vezes me chegavam as vozes das crianças no playground, onde tudo era vida e alegria de estar livre. Isso a poucos passos das paredes que continham a agonia de três almas dilaceradas. Essas vozes me lembravam você e sua irmã Ines, e eu desejava vê-los a todo instante. Mas foi melhor que você não tenha vindo me visitar na antessala da morte, pois, do contrário, teria assistido ao horrível espetáculo de três homens em agonia esperando para ser eletrocutados, e eu não sei qual seria o efeito disso num menino da sua idade. Se você não fosse muito impressionável, no entanto, a memória desse infame acontecimento poderia até ser algo muito útil no futuro, quando você puder exibir para o mundo a vergonha deste país no que se refere a essa perseguição cruel e a essa morte injusta. Sim, Dante, hoje eles podem crucificar nossos corpos, como estão fazendo, mas não podem destruir nossas ideias, que permanecerão vivas para a juventude do futuro.
Quando falei em três homens em agonia, me referia também a um homem que estava conosco, cujo nome é Celestino Madeiros. Ele deve ser eletrocutado no mesmo dia que eu e Vanzetti. Madeiros já havia estado por duas vezes naquela famigerada sala de execuções, que devia ser destruída pelas marretas do verdadeiro progresso. Aquele lugar abominável envergonhará para sempre o futuro dos cidadãos de Massachusetts. Deviam jogá-lo no chão e construir uma fábrica ou uma escola para esse monte de órfãos que estão por aí.
Dante, mais uma vez lhe digo para amar e consolar sua mãe e as outras pessoas queridas. Tenho certeza de que com a sua coragem e a sua bondade elas se sentirão menos desoladas. E nunca deixe de amar seu pai, pois... ah, meu filho, como eu tenho pensado em você.
Mande as minhas melhores lembranças, meu amor e meus beijos para a Inesinha e para sua mãe. 

           Com o abraço mais afetuoso de

                                   SEU PAI E SEU COMPANHEIRO

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Um violinista para a eternidade


     Sou um admirador da arte da fotografia. Mantenho em meu computador uma grande coleção de trabalhos dos grandes fotógrafos e eu mesmo procuro tirar algumas fotografias com pretensões estéticas.
     Esta é, para mim, uma das fotos mais comoventes e mais plenas de poesia e humanidade. Toda vez que a vejo, é como se me transformasse numa pessoa um pouco melhor. Foi tirada pelo húngaro André Kertész, em 1921, na cidade de Abony, em seu país natal. Numa Europa arrasada pela Primeira Guerra Mundial, o cenário é de pobreza e desolação. Numa rua de terra batida, empoeirada e irregular, um carro que passou momentos antes deixou a marca de linhas paralelas que atravessam a cena da parte frontal até o fundo, direcionando nosso olhar não somente para o acontecimento que se desenvolve na área frontal mas também para a área mediana e para o fundo. 
     Tudo indica que o violinista ambulante, miseravelmente vestido, com uma bengala pendurada no braço esquerdo, traz consigo, à sua esquerda, o filho adolescente com seus pés descalços. Este, que recolhe os níqueis doados pela audiência do pai, olha para frente, cheio de relutância e um tanto desconcertado por ter de acompanhar o alquebrado músico em sua performance pelas ruas. O violinista pisa sobre a linha deixada pelo automóvel, que pode ser interpretada como uma metáfora da fronteira de um mundo a outro, de um tempo a outro, de uma condição a outra. O filho ainda não o fez, mas, apesar de sua evidente relutância, está prestes a também cruzar a fronteira, pois não há outra alternativa. E esse cruzamento se faz através da música tocada pelo pai com toda a dignidade que transparece em sua expressão facial.
     Na parte intermediária da cena, já do outro lado da fronteira, o menino que caminha sozinho na direção da dupla é a própria imagem da inocência e da pureza. Ao mesmo tempo, talvez seja alguém destinado ao abandono e à solidão, já que não se veem sinais da presença de seus pais. Ele vem para o primeiro plano ao mesmo tempo atraído pela música e olhando para alguma coisa que se passa atrás do violinista e seu filho. Sua presença no enquadramento perfeito da imagem ressalta a profunda humanidade das pessoas mostradas, com quem solidarizamos de imediato, não pela exposição de sua condição de miseráveis, mas por sua dignidade e pela aura de bondade que emanam. 
     Ao fundo, bastante desfocadas, duas pessoas estão diante de uma casa com uma fachada branca, conversando perto de uma árvore, como a reforçar seus laços sociais como forma de enfrentamento de um tempo difícil. 
     Toda vez que vejo esta foto, ela me toca como um poema de Drummond, um filme de Chaplin, um drible de Garrincha. E me dá a certeza de que a grande e verdadeira miséria é a de espírito.

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Uma história na chuva

     Londres é uma cidade que possui um verão bastante chuvoso. O atual tem sido muito úmido, sobrecarregado por uma chuvinha fina que dura dias e dias, parando por algumas horas e retornando em seguida. Nesta época, as nuvens se movimentam muito no céu.
     Hoje cheguei do trabalho por volta das 17h00 e saí para correr debaixo de chuva e vento. Enquanto corria, me lembrei de uma vez, há uns quatro anos, em que você estava comigo, em meu apartamento no Butantã, num fim de ano. Estava chovendo e saímos para almoçar num restaurante próximo. Você ia no meu colo, e eu segurava o guarda-chuva. De repente, um vento forte virou nosso guarda-chuva pelo avesso, quebrando algumas barbatanas e nos deixando desprotegidos. Você se assustou e começou a chorar, mas corri para debaixo de uma marquise, arrumei o guarda-chuva e pudemos seguir nosso caminho. Um pouco adiante, vimos um ônibus passar sobre uma grande poça d'água e jogar longe uma água lamacenta, com o que você se divertiu muito, abrindo um vasto sorriso. Definitivamente, se houvesse neste mundo gente capaz de rir assim de um acontecimento como este, não estaríamos neste descalabro.

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Uma estátua em Versalhes


     Há cerca de duas semanas, estive em Paris, por razões acadêmicas, e aproveitei para ficar alguns dias e fazer alguns passeios por lá. Entre tantas coisas belas existentes na capital da França e suas imediações, esta estátua nos jardins do Palácio de Versalhes me fez pensar em você e desejar sua presença a meu lado. Há poucos anos, eu também o pegava dessa maneira. 
    Se você estivesse em Paris comigo, eu iria lhe mostrar muitas coisas interessantes da cultura francesa e lhe explicaria algumas coisas relacionadas à arte e à cultura. Mas tenho a esperança de que isso vai ocorrer dentro de mais alguns anos, quando você for adolescente e puder tomar a decisão de ficar comigo.

domingo, 24 de junho de 2012

Futebol de pai para filho

    Joguei futebol ontem contra um time de poloneses que jogam muito duro, dão muitos chutões e muitos carrinhos. Para piorar, havia chovido horas antes e o campo estava molhado. Meu time ganhou de 5x1, e fiz quatro gols. Mas acabei levando uma tremenda bolada na mão e quase quebrei o pulso, que agora está um pouco inchado e doendo bastante.
     Esse jogo me fez lembrar de uma vez em que o levei para me ver jogar na USP, pelo time da FFLCH. Você ficou sentado com os reservas de nosso time. Naquele dia ganhamos por 3x1, e eu fiz dois gols, depois dos quais corri até o banco para abraçá-lo. E você ficou falando para meus colegas que seu pai era muito bom de bola. Lembrando hoje esse episódio, eu lhe digo que correr para abraçá-lo foi muito melhor do que fazer os gols. Quem me dera poder tê-lo na beira do campo sempre que eu jogasse. E quem me dera um dia estar na beira do campo e vê-lo jogar. E lhe dar o meu abraço depois do jogo.
     Nem sei se você está jogando futebol depois que fomos separados. Meu pai foi zagueiro, eu saí atacante, você - que parece ter um ótima condução de bola e excelente passe - talvez seja craque do meio-campo. Isso se é que ainda está sequer jogando.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

O farol


     Esta é uma história plena da poesia do relacionamento entre pai e filho. Sempre que a vejo, meus olhos se enchem d'água e fico pensando em você. Durante o tempo em que estivemos juntos, fizemos muitas coisas semelhantes às que fazem os personagens deste desenho animado chinês e tivemos um relacionamento como o desse pai e desse filho.
     E o ciclo da vida se completa e se renova. Ficam para sempre as coisas boas que fizemos juntos, os momentos felizes que tivemos, não burrice e a frivolidade dos que só pensam em dinheiro e nos adornos da vaidade.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Duas mãos


     Estas são nossas mãos, numa foto tirada há seis anos, quando você ainda era bebê. Considero esta imagem linda, plena de poesia, cheia de amor. Hoje sua mão está bem maior e você se transformou num rapazinho bonito, falante e inteligente. Mas há muito que nossas mãos foram separadas. No entanto, tudo muda, e o tempo de nos reencontrarmos haverá de chegar. E as coisas, tal como estão hoje, se transformarão muito.

terça-feira, 19 de junho de 2012

Carta ao filho

Arthur Rabelo:                                                              

     Seis meses atrás, vim morar na Inglaterra. Trabalho em Londres, onde sou muito respeitado e muito valorizado em minha atuação como professor e muito valorizado por minha produção intelectual. Estou bem aqui, seguindo a minha vocação e fazendo o que gosto. 
     Vir para cá foi uma das melhores coisas que me aconteceu. Vivendo em São Paulo, frequentemente eu era acometido por ondas de fúria e vontade de cometer coisas bárbaras por causa de tanta coisa nojenta que tive de enfrentar nos últimos anos, coisas essas que o transformaram num órfão de pai vivo.
     Logo que cheguei a Londres, aluguei um quarto numa casa de família inglesa, para passar os primeiros tempos. A dona do imóvel, Jill Drower, com quem eu sempre conversava, ao ouvir a história de nossa separação num dia em que tomávamos chá no fim de tarde, me recomendou que escrevesse um blog em que relatasse meus sentimentos acerca da distância e dos danos que essa situação tem causado a mim e a você. Eu lhe disse que iria pensar a respeito. Por fim, achei uma boa ideia e resolvi fazê-lo, com a condição de não expor a minha nem a sua imagem.
     Um dia você vai crescer, vai tomar consciência das coisas e vai querer saber de seu pai, que foi obrigado a se afastar e posteriormente aceitar este exílio em que vivo agora.
     Desde que saí da casa onde morávamos, em Belo Horizonte, em 2007, não houve um só dia em que eu não pensasse em você, em que não me lembrasse das muitas coisas boas que pudemos fazer no pouco tempo em que vivemos juntos.
     Hoje você está com sete anos, um rapaz bonito e inteligente. No meu sofrimento destes últimos anos, aprendi que terei de esperar que você cresça um pouco mais e se torne independente. Então poderá vir até mim e será recebido com amor. Mas também chegará um momento em que você terá de fazer uma escolha. Se for por mim, estará apenas e inteiramente comigo. Vamos deixar que o tempo, esse vencedor de todas as coisas, resolva a situação.