quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Uma referência identitária

Hoje, na universidade, conduzi uma atividade em que meus alunos fizeram uma excelente apresentação sobre Clarice Lispector, centrada no romance A Hora da Estrela e no conto “Laços de família”. Fiquei feliz com o resultado, pois percebi que eles foram tocados pela obra da grande escritora brasileira. Muito se falou na questão da identidade, que é um tema constante de Clarice. Ela mesma, como seus personagens, foi alguém que se perguntou o tempo todo quem era, nunca tendo encontrado resposta satisfatória.
De minha parte, vivendo no exterior e tendo passado por diversos recomeços na vida, sempre preciso encontrar uma ancoragem identitária, me afirmando como brasileiro, homem, pai, filho, professor, escritor, amante da literatura, do teatro e do futebol e tantos outros papéis, tantas outras máscaras que são assumidas às vezes ao longo de um único dia.
Se nesta altura da vida, apesar de meus marcos identitários, não possuo uma identidade monolítica nem estritamente coerente, imagine-se você na exuberância de seus oito anos! De todo modo, como o que somos é algo construído com os outros, quero estar presente em sua vida e ser uma referência para a construção de sua personalidade, inclusive no que se refere a coisas que você haverá de negar e não aceitar.

sábado, 23 de novembro de 2013

Dos seus valores

    Acabo de ler no jornal uma série de números impressionantes relacionados ao suicídio. Por ano, mais de um milhão de pessoas se suicidam em todo o mundo. No Brasil, a despeito de nosso estereótipo de povo otimista e feliz, ocorrem, em média, 25 suicídios por dia. Em nossa família mesma houve um suicídio nos anos 1970, quando eu tinha seis ou sete anos. Desde que esse meu tio por parte de mãe pôs termo à vida, o assunto se tornou um tabu nas conversas entre meus parentes. E na adolescência também perdi assim um amigo, ficando muito chocado por muito tempo após receber a notícia.
     Sem dúvida que a principal causa do número elevado de suicídios no mundo atual é a desvalorização da vida e a desumanização das pessoas em prol da supervalorização das mercadorias, do dinheiro e do chamado "sucesso". Os deserdados desse paraíso do mercado são considerados "fracassados", "vagabundos", "indesejáveis", "gente que não vale nada". Quantas vezes na vida eu mesmo fui considerado assim por certa gentalha pequeno-burguesa que um dia foi próxima de mim e - ainda pior - quantas vezes eu mesmo me senti de fato assim! 
     Se levei algum tempo para entender que não havia nada de errado comigo e que eu apenas possuía valores diferentes, a meu ver mais sólidos, gostaria que você não tivesse de passar pelos conflitos que passei para entender o que hoje entendo. Por coisas assim é que considero muito importante que eu seja sempre próximo de você. 
   Viva sempre sem medo da opinião dos outros. Especialmente não participe dos valores desses eunucos morais da classe média paulistana. Cultive sempre o conhecimento, a amizade de pessoas não convencionais, uma experiência de vida qualificada em que você se arrisque em coisas novas, em relações apaixonadas e vitais. Jamais trate as pessoas como coisas nem acredite que exista alguém que nada valha ou nada tenha a dizer.

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Um outono invernal

     Estamos avançados no outono, mas já com temperaturas de inverno. Nos parques e praças, o chão está coberto de folhas que caíram para que as árvores possam se proteger e reservar energia para as épocas mais amenas do ano. Neste momento, faz 3°C lá fora. Ainda bem que passarei um mês no Brasil entre dezembro e janeiro! 
     Já não vejo a hora de reencontrá-lo. Estou sentindo muita saudade de você, a ponto de, noite passada, haver sonhando que o carregava nos ombros pelas ruas enquanto conversávamos sobre diversos assuntos, como costumávamos fazer há alguns anos, quando você era ainda bem pequeno.
     Amanhã é aniversário de minha mãe, sua avó. Telefonarei para casa e lhe darei minhas congratulações. Ela tem sido alguém muito importante em minha vida. Se tenho tido as oportunidades que tenho tido, devo-lhe muito disso. Além da educação para a integridade que me proporcionou, me recordo sempre do quanto ela trabalhou duro - chegando a lavar roupas de famílias de classe média alta e a fazer duras faxinas em suas casas - para que seus filhos pudessem ter um mínimo, pois meu pai andava sempre desempregado no decurso dos anos 1980 e 90. No meu caso, a despeito de tantas privações, pude não ter de começar a trabalhar muito cedo e me dedicar intensamente aos estudos. Se hoje estou aqui, devo isso em boa parte a minha mãe, que sempre se lembra de você e lamenta o longo tempo em que fica sem contato com sua conversação, seu abraço e seu beijo.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Rumo ao fim do ano

     Estou hoje em Cambridge, onde tenho passado as noites de segunda para terça-feira. Me lembro de que meio subitamente faltam pouco mais de três semanas para que eu embarque para o Brasil. Nos dias que passarei em São Paulo, desejo que façamos várias coisas juntos. Gostaria inclusive de lhe dar uma pequena câmera fotográfica que tenho aqui e que possamos sair para um passeio pela área central da cidade, a fim de fotografá-la em todo o esplendor de sua história, todas as suas contradições e sua miséria. Pode ser algo muito interessante com que ambos aprendamos bastante. E muito conversaremos sobre essa experiência.
     Outra coisa que gostaria de fazer com você é assistir ao mundial de clubes, em que o Galo estará presente, sendo provável que faça uma final com o Bayern de Munique, um time poderoso. Inclusive lhe darei outra camisa de nosso time. Espero ainda que possamos também jogar futebol juntos, ambos com a camisa do Galo.
     Enfim, estes são meus pequenos grandes planos para o tempo restrito que teremos para nos encontrar, já que não nos será permitido passar, por exemplo, Natal ou Ano Novo juntos. Mas seremos felizes e faremos nossas festas em dois ou três dias comuns de dezembro.

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

No fim de uma aula

    Como  parte  do  curso  de  literatura  brasileira contemporânea que estou conduzindo neste semestre, tenho tratado, nesta semana, de Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar. Acabo de chegar a meu escritório, vindo de uma aula em que falei sobre essa obra com brilho nos olhos, pois é um livro inesgotável, que está entre o que de melhor se tem publicado no Brasil, nas últimas décadas. À parte o âmbito estético - o que importa essencialmente - para mim a narrativa de Nassar tem um significado ainda mais forte, pois centra-se na relação de um patriarca autoritário com um filho que se rebelou e fugiu de casa, retornando após algum tempo para presenciar a destruição da família. Ao finalizar minha análise de Lavoura Arcaica em sala de aula, levanto para mim mesmo uma série de questões, algumas delas relacionadas a como não ser pai.
     Meu  próprio  pai  foi  uma  pessoa  distante,  um  homem estranho e pouco afetivo a quem nunca me senti vinculado e a quem nunca compreendi. No entanto, quero algo bem diferente com você. A despeito desta distância obrigatória em que tenho de me manter, quero ser um pai que participe de seu desenvolvimento e de sua formação para a liberdade. Muito especialmente desejo ser um companheiro em quem você confia, com quem possa partilhar seus momentos de felicidade e a quem possa recorrer nos momentos de dificuldade, medo e aflição.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Para não esquecer

     Neste meu último dia em Budapeste, visitei um museu chamado Casa do Terror, que conta a história das muitas infâmias que a Hungria teve de enfrentar ao longo do século XX, praticadas pelos regimes totalitários do nazismo e do comunismo soviético. Apesar de antagônicos politicamente, tais regimes foram parecidíssimos na sua essência e deixaram um legado de horrores que não pode ser esquecido. Por isso, apesar das histórias chocantes que vemos contadas nesses museus, eles são fundamentais e devem ser visitados. Como escreveu George Santayana: "Os que esquecem o passado estão condenados a repeti-lo". 
   Como nossa espécie pôde ser capaz de tanta monstruosidade! Na própria história do Brasil, pontuada por várias ditaduras, a tortura, o assassinato e toda sorte de horrores foram cometidos por fanáticos que se apossaram do Estado e eliminaram toda contestação através do crime. O pior é que não é difícil encontrar imbecis que defendem o autoritarismo como solução para nossos problemas. E ainda pior é não termos até hoje acertado as contas com os fascínoras de nossa última de ditadura, vários ainda vivos e em liberdade.
     Jamais se torne escravo de nenhuma ideologia, seja ela política, religiosa ou de qualquer âmbito. Jamais se fanatize por nada. Muito cuidado com lideranças muito fortes e muito carismáticas. Jamais siga a multidão. Questione sempre seus professores, seus colegas, a mim mesmo. A realidade e a verdade são construções sociais que precisam sempre ser reformuladas. Seja você mesmo, pense por você. Isso não quer dizer que não deva ter nenhuma ideologia. Eu mesmo sou claramente um homem de esquerda, que deseja ver a riqueza que o homem produz ser utilizada para promover a felicidade de todos. No entanto, jamais me identiquei com o jeito grosseiro e acéfalo de ser de esquerda nem jamais vou aceitar que a busca de igualdade seja feita ao custo da liberdade das pessoas, de sua massificação e sua desumanização, como infelizmente ocorreu no que um dia se chamou de "socialismo real".

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Duas surpresas em Budapeste

     Há alguns dias declarei uma paixão súbita por Viena. Não imaginava que pouco tempo depois gostaria ainda mais de Budapeste. Nestes quatro dias que estou passando na Hungria, tenho ficado muito impressionado com a beleza da cidade, sua cultura e sua gente. Espero que você também possa conhecê-la um dia. 
    Agora há pouco saí para jantar num restaurante nas proximidades do hotel onde estou hospedado. Ao entrar no salão onde ficam as mesas, subitamente fui transportado ao Brasil por uma dupla de músicos húngaros que tocam bossa nova a noite inteira. Tocaram (e bem) muito Tom Jobim, muito João Gilberto, muito Carlos Lyra. Cantavam algumas canções em português com sotaque, sem entender o que estavam dizendo, mas com boa pronúncia. Pela primeira vez na vida, ouvi "Garota de Ipanema" numa versão para o húngaro. Foi a minha vez de não entender nada, mas de me divertir com algo tão familiar tornado tão exótico para nós. Quando o garçom soube que eu era brasileiro, foi avisar aos músicos para capricharem. Sem dúvida, a trindade bossa-novista (Tom Jobim, Vinicius de Moraes e João Gilberto) fez muito pelo Brasil, que deve a eles uma parte da popularidade de que desfrutamos no exterior.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Uma algazarra

     Andando hoje por uma praça no centro de Viena, me deparei com este grupo de crianças perseguindo e estourando bolas de sabão feitas por uma senhora que transportou para lá todo um equipamento para fazê-las. Aí está uma típica brincadeira que o diverte. Adoro esse júbilo gratuito que se vê expresso no rosto desses meninos e que estaria também no seu, caso estivesse aqui comigo. Felizmente ainda há muita coisa boa que não está na dependência do dinheiro nem das atitudes pragmáticas para se realizarem. A alegria de viver é uma delas.

sábado, 2 de novembro de 2013

Uma paixão à primeira vista pela Áustria

     Depois de uma semana em que estive envolvido com uma variedade de compromissos nas duas instituições em que estou trabalhando, começou hoje para mim uma semana de folga. Assim, resolvi partir para Viena, onde cheguei hoje pela manhã. Estou impressionado com a beleza da cidade e sua efervescência cultural, especialmente no campo da música. Não por acaso, a Áustria é a terra de tantos grandes mestres da música erudita. Uma de minhas primeiras visitas aqui foi ao Hofburgtheater, que fica na área central, próximo ao rio Danúbio. Você que, para minha surpresa e minha alegria, tem revelado grande interesse e aparentemente talento musical, estaria muito bem aqui. 
     Amanhã, que será um domingo com um chuvisco indo e vindo, visitarei o palácio Schönbrunn, que foi a residência de verão dos Habsburgos, família imperial da Áustria dos séculos XIII a XVIII, mas cuja completa dissolução só ocorreu em 1918. Será uma boa aula de história.
     Ainda estarei aqui mais alguns dias. Há ainda muito o que fazer. Somente na quarta-feira partirei para Bratislava, na Eslováquia, numa viagem de barco pelo Danúbio, cujas águas são tema de uma valsa eterna de Strauss. Na quinta pela manhã, irei para Budapeste, cidade pela qual tenho grande interesse.
     Hoje comprei um cartão para lhe enviar. Se não posso tê-lo aqui, ao meu lado, ao menos tentarei partilhar com você um pouco das coisas que tenho encontrado pelo caminho.