segunda-feira, 29 de agosto de 2016

O lugar da felicidade

     Tenho  visto  nas  livrarias,  em  ciclos  de  debates  nas universidades e nos jornais que hoje se discute muito sobre a felicidade. Talvez isso seja típico de épocas de crise. Quanto ao nosso tempo, nele somos o tempo todo constrangidos pela obrigação de sermos felizes. Daí tanta gente seguindo a trilha do trabalho árduo como dolorosa via de salvação, do empreendedorismo que nos trará rios de dinheiro, da casa própria como porto seguro, das academias que nos darão o corpo perfeito, das dietas que são o último grito para uma saúde maravilhosa, das cirurgias plásticas que corrigirão nossas imperfeições, do amor panaceia que nos inundará de encantamento, da sexualidade ultraperformática para todas as idades.
     Essa  forma  medíocre  de  felicidade  talvez  seja  o mais marcante dentre os valores globalizados. Até algumas décadas atrás, ao vir ao mundo, uma criança praticamente já tinha seu destino traçado: passaria a vida no lugar onde nasceu ou numa cidade ou vila vizinha, aprenderia cedo a profissão dos pais e atuaria nela quando chegasse à idade adulta, tinha apenas uma ou, se tanto, duas ou três experiências afetivas antes de se casar para sempre, trabalhava duro para criar filhos que repetiriam o ciclo de sua própria vida. Ao longo do século XX - com suas revoluções tecnológicas e culturais, suas transformações políticas, sua informalização de tudo e seu empoderamento da juventude, suas mudanças no campo dos costumes e suas guerras -, tudo mudou. Ganhamos muito, mas também perdemos muito nesse acelerado processo histórico.
     No  que  tange  à  felicidade,  se  antes  sacrificava-se  o  presente para que o futuro fosse um tempo melhor no qual viveriam os nossos filhos e netos, hoje vivemos sob o império do gozo instantâneo, quase sempre associado a um consumismo vulgar. Se antes se cometeram enormes atrocidades em nome da nação, de Deus, da revolução, hoje se cometem as atrocidades da infantilização da política, da indiferença pelo outro, do individualismo regado a gadgets, do cotidiano pasteurizado, da beleza prêt-à-porter, da volubilidade das relações em rede.
     Vivendo  no  que  Bauman  chama  "mundo  líquido",  penso que não temos de ter medo da solidão, da tristeza, do fracasso. Eles são parte da vida de todos nós e são importantes para nos fortalecermos. E a felicidade não é algo que se colhe nas prateleiras ou que dura indefinidamente, mas algo que nos acontece meio de repente e em geral passa com rapidez. Por exemplo, entre outras coisas, aguardar o momento de encontrá-lo, brincar com você, telefonar-lhe e saber que está bem, almoçarmos juntos conversando sobre nossos interesses são, para mim, uma possível definição da felicidade.

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

Uma vizinha


     Aqui  está  uma  bela  e  efêmera  vizinha  de  minha casa. Nas últimas semanas, tenho passado pelo jardim onde ela mora e não resisto a olhar para suas cores e suas formas. Alguma abelha também está sempre por perto, vindo colher do seu pólen. Trata-se de uma espécie de dália, sendo mestiça e resultando de um cruzamento entre uma de cor vermelha e outra de cor branca. Em breve ela perderá esse esplendor e definhará, pois, embora o tempo ainda esteja bom, um ventinho ligeiramente frio já começa a se insinuar, como a anunciar a chegada do outono.
     Gostaria  de  ter  uma  casa  com  jardim  logo  em frente, podendo cuidar com esmero dessas figuras, como um poema, que não servem para nada de prático e cuja única razão de ser está na irradiação da beleza. Você me ajudaria a adubá-las, a aguá-las, podá-las, para que florescessem assim, tornando a nossa vida melhor simplesmente por estarem ali?

domingo, 21 de agosto de 2016

De repente, sua história favorita


     Estou  agora  no  metrô,  cruzando  a  cidade  para  visitar a Osterley House, que é uma grande mansão neoclássica construída na década de 1570, no período dos Tudor, e que hoje é um museu. Como fica no oeste da cidade, próximo ao aeroporto de Heathrow, resolvi tomar o metrô. Agora há pouco eu estava na estação Green Park quando vi um cartaz com a propaganda de uma seguradora e me lembrei de você, já que ele utiliza a história favorita de sua infância, que eu tinha de lhe contar toda noite, dando dois grandes assopros quando o lobo derrubava as casas de palha e de madeira dos dois primeiros porquinhos. Devo ter lhe contado essa história umas 600 vezes, no mínimo.
     Em  alguns  meses,  quando  eu  estiver  de  volta  ao Brasil, você estará interessado em outras histórias. Sei que anda lendo os livros de Sherlock Holmes, os livrinhos engraçadíssimos do Pequeno Nicolau e as aventuras de Percy Jackson, que passeia pela mitologia grega. Espero que em breve esteja lendo também um pouco de poesia e indo ao teatro.
     Como  minha  estação  final  já  se  aproxima,  termino por aqui. Quando nos encontrarmos, terei muitas histórias para lhe contar. E muitas a ouvir de você.

P.s.: Assisti ontem, pela televisão, à final olímpica do futebol, entre Brasil x Alemanha, que tenho certeza de que você viu também. Foi um grande jogo no Maracanã, e o Brasil ganhou a medalha de ouro nos pênaltis, após um empate por 1x1. Gostaria de ter assistido a essa final com você, sofrendo juntos durante o jogo e comemorando juntos no fim.

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Volta

     Desde  que  deixei  meu  emprego  na  universidade  onde trabalhava, tornei-me tradutor e intérprete até redefinir um caminho, possivelmente retornando ao ambiente acadêmico. Mas os meses se sucederam e tenho permanecido estagnado profissionalmente já há quase um ano. Como um Sísifo a empurrar uma grande pedra para o topo de uma montanha somente para vê-la rolar para o outro lado, tendo de recomeçar tudo de novo, tenho sofrido com a falta de sentido da minha atividade atual. Além disso, já estou um tanto desgastado aqui, sinto saudade de nossas coisas e desejo estar próximo de você, que está crescendo sem mim. Por isso tomei a decisão de retornar ao Brasil até o fim deste ano. Portanto, em breve seu pai estará por perto novamente.

domingo, 14 de agosto de 2016

Duas pontas

     Hoje  é  o  Dia  dos  Pais  no  Brasil.  Penso  no  meu próprio pai, que morreu em 2011, aos 71 anos. Pelo tipo de relacionamento que tivemos ao longo dos anos, nunca o abracei neste dia, assim como ele nunca me abraçou no dia de meu aniversário ou em qualquer outra ocasião. Nem tivemos, em momento algum, qualquer forma de diálogo peculiar a duas pessoas que se amam e que se importam uma com a outra. Atravessamos a vida como dois desconhecidos. Mas isso é agora passado e irreversível.
     Embora  eu  e  você  tenhamos  uma  relação  muito  mais próxima no que diz respeito à manifestação de carinho, com beijos e abraços dos dois lados, sinto que em grande parte também não nos conhecemos. Há já nove anos que não vivemos juntos, cinco dos quais com seu pai morando em outro país. Mais ou menos hoje está fazendo um ano que não nos encontramos pessoalmente. A última vez foi no fim de semana do Dia dos Pais do ano passado. Não sei muito bem o que você está fazendo, o que tem pensado, como tem se comportado. Nem você sabe muita coisa sobre o que tenho feito, o que tenho pensado e como tenho me comportado aqui.
     Talvez  eu  volte  ao  Brasil  até  o  fim  deste  ano, quando espero poder construir uma vida nova da qual você será uma parte fundamental. Ao mesmo tempo, mudamos tanto no turbilhão destes anos todos que receio pelo tipo de comunicação (ou falta de) que teremos. Retornarei mais velho e precisando me recriar no Brasil. E o reencontrarei entrando na adolescência e começando a enfrentar suas crises pessoais. Mas assim são as coisas. Que tenhamos a sabedoria e o amor necessários para reatar as duas pontas de nossas vidas.

sábado, 13 de agosto de 2016

Leão e carrosséis


     Lendo  um  livro  sobre  a  chamada  Belle  Époque  em Paris, deparo-me com esta foto tirada em 1910, com meninos se divertindo num carrossel surreal, sobre as costas de porcos. A forma como estão vestidos também é, para nossa época, surreal. Estavam no Luna Park, que localizava-se perto da Porte Maillot e foi uma grande atração da cidade até meados do século XX, quando foi desativado.
     Imediatamente  olhei  para  duas  fotografias  que  tenho sobre a minha mesa, uma minha e outra sua, no mesmo lugar. Quando eu e minha irmã Kelly éramos ainda bem pequenos, minha família se mudou para São Paulo, onde meu pai trabalhou por três anos na construção do metrô da cidade. Numa das fotos, estou sentado nas costas da estátua do leão do Parque Ibirapuera. Na minha foto, em preto e branco, eu tinha quatro anos. Estou com a cara séria de quem está pouco à vontade naquela situação absurda, com as pessoas passando e me vendo nas costas da fera de mármore. Na sua, em cores, você tinha dois anos. Está sentado sobre o mesmo leão, 35 anos depois. Agarra-o pela juba e abre um sorriso largo, olhando para a cabeça do rei dos animais, que está logo abaixo, sobre seu domínio. Não tem a menor timidez em relação a quem passa pelo local e o observa. À parte essa discrepância psicológica, lá estão, em nós dois, o mesmo olhar, o mesmo tipo de cabelo, a mesma compleição física.
     Lembro-me  de  você pequenininho,  em  Belo  Horizonte, quando gostava de me pedir que o levasse a um parquinho com pouquíssimas atrações que costumava ser montado no bairro Buritis, onde morávamos. Havia um carrossel com cavalinhos ultracoloridos, que davam seus saltos a intervalos regulares. Eu ficava ao lado observando sua cavalgada e lhe mandando de longe os meus beijos.
     Tudo  isso  passou.  Mas talvez  um  dia  retorne,  e  eu levarei o meu neto para essas aventuras. Quem sabe até tenhamos uma foto com um representante da terceira geração sobre as costas do leão do Parque Ibirapuera...

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Sustos

     Recebi  hoje  uma  mensagem  de  meu  sobrinho Vinícius, perguntando por você e desejando saber como está, pois não o vê há vários anos. Respondi-lhe que meu menino está bem e me lembrei de quando você era pequeno e gostávamos de pregar peças em seu primo, fazendo-lhe medo. Saíamos os três a passear pelas ruas do bairro Sidil, em Divinópolis, onde minha mãe morava. De repente, quando Vinícius se distraía, desaparecíamos e ficávamos atrás de algum poste de iluminação ou algum muro, observando-o desesperado e sem saber o que fazer, pois ele também era pequeno e não sabia voltar para casa sozinho. Enquanto Vinícius gritava por nós, ficávamos nos divertindo com seu medo até que, poucos minutos depois, aparecíamos na rua novamente, da forma mais natural possível, para alívio do menino perdido. E de vez em quando, ao passar perto de alguma região com mato, nós o agarrávamos cada um por um braço e lhe dizíamos: "Vamos ali pegar umas cobras e uns escorpiões". Então ele se debatia e não se deixava arrastar para aquela perigosa aventura.
     Justamente  agora  estou  lendo  uma  volumosa  história de Roma antiga. Há alguns dias estava na época dos imperadores tardios, que eram autocratas com poder absoluto. Segundo a tradição, vários deles costumavam cometer as maiores excentricidades. Recordo-me de que Heliogábalo, por exemplo, que exerceu o poder por alguns anos no início do século III d.C., gostava de assustar seus amigos. Numa ocasião, durante uma farra palaciana em que eles se embriagaram e adormeceram, o imperador mandou fechar as portas e apagar as luzes, introduzindo na sala leões, leopardos e ursos. Essas feras eram domadas e inofensivas, pois haviam lhes arrancado as garras e os dentes, mas obviamente ainda eram muito assustadoras. O resultado foi que seus colegas de orgia ficavam tão aterrorizados que alguns morreram de ataque cardíaco.
     Temos  dentro  de  nós  esse  lado  cruel.  Em  nosso caso, ele era usado para nos divertirmos com nossos sustos em Vinícius, que, pelo visto, gostava de quebrar o marasmo da vida interiorana conosco.

sábado, 6 de agosto de 2016

Visitando cães e gatos


     No  bairro  onde  moro  fica  o  Battersea  Dogs  and  Cats Home, que foi fundado em 1860 e que desde então resgata cães e gatos perdidos, abandonados ou maltratados. Lá eles recebem abrigo, comida e cuidados veterinários, além de todo um trabalho de ressocialização com as pessoas e outros animais, pois vários carregam traumas decorrentes do que viveram em casas e ruas de Londres. Estão ali temporariamente, até que encontrem um dono responsável e um lar definitivo.
     Nestes  vários  anos  morando  em  Battersea,  sempre passei pelo portão da instituição, mas nunca havia entrado. Hoje foi o dia. Passeei por entre cachorros e gatos de quase todas as raças e brinquei com alguns deles, que, em sua carência, parecem implorar para que sejam adotados e ganhem um lar, carinho e uma identidade. 
     Não  sei  por  que  crianças  e  cachorros  quase sempre se identificam comigo e gostam de mim à primeira vista. Vários cães hoje saltaram sobre mim, lamberam-me, puxaram-me o canto da roupa, para que eu lhes desse atenção, correram para buscar bolas de tênis que joguei ao longe. Esta foto registra um dos olhares de tristeza que recebi no momento da despedida.
     Outro  dia  eu  escrevia  aqui  sobre  Pérola  e  a  saudade que estou sentindo dela. Se tivesse a perspectiva de permanecer nesta vida distante do Brasil, por certo teria um cão por aqui também, ainda mais com tantos parques, lagos e áreas verdes para brincarmos.
     O  filósofo  franco-lituano  Emmanuel  Levinas,  que  foi prisioneiro num campo de concentração nazista durante a Segunda Guerra Mundial, conta num texto autobiográfico que, após algum tempo, ele e seus colegas acabaram por se acostumar ao tratamento desumano que recebiam diariamente. Porém todas as noites, quando, passando por caminhos com cercas elétricas e arame farpado, retornavam exaustos para os galpões onde dormiam, seu grupo de trabalho forçado era recebido por um cachorro vira-lata que de algum modo havia entrado naquele lugar infernal e ali ficara. Quando via os prisioneiros chegando, o animal latia e fazia-lhes grande festa, como é usual entre os cachorros. Eram os olhos de adoração daquele vira-lata que os faziam se lembrar do significado do reconhecimento por parte de outro ser vivo. Aquele reconhecimento fundamental lembrava-lhes, ao fim de cada jornada, que eles eram seres humanos e não simplesmente coisas a serem usadas até o desgaste e a destruição.
     De  certo  modo,  fui  hoje  fazer,  para  os  cachorros  e gatos do Battersea Dogs and Cats Home, um pouquinho do que o cão de Levinas e seus colegas fez por eles, levando-lhes reconhecimento e respeito.

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

De repente, o Brasil

     Ontem  à  tarde  eu  corria  no  Battersea  Park,  ouvindo uma coletânea de canções de Tim Maia ao telefone amarrado no braço, quando passei perto de um grupo de quatro adolescentes brasileiras, que, pelo sotaque, eram cariocas. Tocava "Gostava tanto de você" e estava justamente no refrão. Não deu outra. Elas disparam a cantar alto e em coro, marcando o ritmo com palmas e uma dancinha:

     E eu
     Gostava tanto de você
     Gostava tanto de você

     Como  sou  um  tímido,  não  parei,  muito  menos  cantei, já que aquela extravagância atraía a atenção dos ingleses que por ali estavam. Apenas sorri e acenei para elas. Vi, naquela manifestação ululante, o Brasil. E minha saudade, que já está muito grande, triplicou.