domingo, 29 de novembro de 2015

Depois de uma fotografia de Brassaï


     Hoje  fui  visitar  uma  exposição  de  obras  do  grande fotógrafo húngaro-francês Brassaï. Dentre as imagens, uma delas, intitulada em francês "Le marchand de ballon (l'enfant sourriant)", tirada em 1931, me chamou a atenção e imediatamente me remeteu a você. Quantas vezes o vi nesse mesmo fascínio gratuito e maravilhoso por um objeto que remete ao sonho, à brincadeira e à liberdade como um balão de gás a esvoaçar. Essa cena de Paris nos anos 30 se repetiu em manhãs de domingo na Praça do Santuário, em Divinópolis, na Praça da Liberdade, em Belo Horizonte, e em algum recanto do centro de São Paulo, quando passávamos fins de semana juntos.
     Lembro-me  de  uma  fotografia  sua,  tirada  por  mim, quando você tinha quatro anos, provavelmente a mesma idade do garoto da foto de Brassaï, em que meu menino do século XXI abre um sorriso muito parecido com esse da imagem, olhando para uma bola de futebol que chutei forte, para cima.
     Que  a  sujeira  do  mundo  e  os desencantos da vida jamais o façam perder esse sorriso e esse olhar.

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Paixões

     Passei  algumas  horas  do  dia  de  hoje,  após  dar aulas pela manhã, trabalhando no texto de um prefácio a um livro sobre Nelson Rodrigues. No mês passado também escrevi prefácios para um livro sobre Eugene O'Neill e outro sobre Thornton Wilder. Por haver estudado esses autores ou ter familiaridade com seu trabalho, costumo ser convidado a escrever ou a falar sobre eles. No entanto, nos últimos anos tenho sido um autor de textos menores e pouco prestigiosos como os prefácios ou pequenos artigos sobre temas ligados à literatura. Tenho ambições maiores, porém preciso de algum tempo, mais segurança profissional e alguma iniciativa para me dedicar a um projeto mais substancial.
     Todo  ser  humano  tem  de  ter  alguma  paixão.  Entre as minhas estão a literatura, o teatro e o futebol, que tenho buscado transmitir a você. Pelo futebol você se interessa naturalmente, vindo de uma família com várias gerações de bons jogadores. Quanto à literatura, sempre lhe dou livros de presente, sendo muitos deles condensações dos grandes clássicos. E procuro conversar com você sobre suas leituras, quando nos encontramos. Pelo que tenho percebido, venho conseguindo despertar também sua paixão pelos livros, sendo que você também tem se lançado na escrita de um diário num caderno que lhe dei.
     Por  fim,  há  o  teatro,  com  o  qual  tem  sido  muito mais difícil fazê-lo familiar, em virtude da separação e da grande distância em que vivemos. Quando vou a São Paulo e você pode passar todo um fim de semana comigo, um de nossos programas costuma ser o teatro, mas isso ocorre apenas uma ou duas vezes por ano. Lembro-me de uma vez termos assistido Nossa Cidade, de Thornton Wilder, A Mulher sem Pecado, de Nelson Rodrigues, e O Pagador de Promessas, de Dias Gomes. Tenho visto excelentes montagens dos grandes textos do teatro universal por aqui. Há algumas semanas, quando assistia Medida por Medida no Shakespeare Globe, desejei que você estivesse ali comigo.
     Mas  também  dou-lhe  espaço  para  suas  próprias paixões, algumas das quais não compartilho, como a dos jogos eletrônicos. No entanto, se elas lhe fazem bem e lhe proporcionam momentos felizes, possuem todo o meu apoio.

domingo, 22 de novembro de 2015

Praga, Kafka e Adoniran

     Cheguei  em  casa  no  meio  da  madrugada,  tendo enfrentado um frio terrível e cruzado o caminho das criaturas da noite londrina, após passar os últimos dois dias em Praga, que é uma de minhas cidades favoritas em virtude de sua beleza, de sua qualidade de vida e de sua personalidade. A capital da República Tcheca é certamente um lugar aonde um dia retornarei com você e onde faremos muitas coisas interessantes dos museus à culinária, dos passeios descontraídos ao aprendizado de história e arquitetura.
     Nos  últimos  tempos,  tenho  pensado  muito  no  dia  de retornar ao Brasil neste fim de ano e também no dia de retornar em definitivo. Infelizmente tenho dúvidas sobre se de fato poderei passar o Natal que se aproxima em Minas, reencontrando-o em São Paulo alguns dias antes. É que tenho tido de me haver com a Imigração britânica, para resolver questões relacionadas a meu direito de viver e trabalhar aqui no decorrer do próximo ano. Pode ser que venham a segurar meu passaporte durante esse período, a fim de analisar meus documentos antes de me concederem um novo visto. Nesta semana, ao me relacionar com seus oficiais em seu complexo escritório, mergulhei na burocracia desumanizada e tive um dia que foi uma página de Kafka.
     Passarei  por  grandes  mudanças  no  decorrer  do  ano que vem. Tenho certa apreensão, mas estou tranquilo, pois há muito tempo minha vida tem sido uma ciranda de transformações radicais e sei que no fim das contas tudo se ajeita. Como filosofa Adoniran Barbosa, "mulher, patrão e cachaça, em qualquer canto se acha".

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Bares e seus nomes


     Passei  outro  dia  por  um  bar  chamado  "O  Sapo Arrogante". Na entrada, esse anfíbio, pelo qual tenho simpatia mas que nunca imaginei tendo como sua característica definidora a arrogância, está lá num terno bem cortado, bengala e boina na cabeça, portando  estilosamente uma taça de vinho na mão esquerda. Um verdadeiro dândi à maneira de Oscar Wilde, um D'Annunzio dos brejos ou um Baudelaire dos pubs.
     Por  aqui  os  bares  costumam  ter  nomes  absurdos, que juntam duas coisas muito díspares. Lembro de haver passado diante alguns com nomes como "The mad Bishop and Bear", "Lamb and Flag", "Elephant and Castle", "Pig and Whistle". 
     E  até  já  escrevi  aqui sobre o Zuiudo's Bar, o Bar dos Pobres e o Pingo no i, em Divinópolis. 
     Bebo  muito  pouco,  tomo  sempre  muito  cuidado  ao consumir bebidas alcoólicas e não sou frequentador de bares. Mas gosto desse bom humor e desse surrealismo de alguns deles.

terça-feira, 10 de novembro de 2015

Minha mãe e a distância

     Conversei  na  tarde  de  hoje  com  minha  mãe,  após algumas semanas sem conseguir fazer contato. Ela, que está enfrentando problemas de pressão alta e outros perrengues, disse que tem medo de morrer e não conseguir se despedir de mim. Espero que isso jamais aconteça, pois eu sofreria muito numa situação assim. Conto com seu hábito de exagerar bastante os seus males a fim de provocar a simpatia e a comoção de seus filhos, apesar de saber que seus problemas de saúde são reais.
     Ela  disse  ainda  que  tem  rezado  muito por mim, pois estou num momento de transição e de obrigação de fazer escolhas que mudarão bastante a minha vida. E que está com muita saudade de você, a quem não vê há vários anos, que gostaria de lhe dar um abraço e pegá-lo no colo. Mal sabe ela que você já não é mais um menininho de se pegar no colo.
     Por  falar  em  você,  a  distância  tem  esse  mal  de  nos relaxar de vez em quando. Há algum tempo que não tenho notícias suas, em parte em virtude de problemas em seu telefone, mas há o computador e outros meios. Amanhã, que é um dia especial para mim, gostaria de receber um contato seu.

sábado, 7 de novembro de 2015

De um pai ausente

     Uma  vez  ouvi  o  educador,  sociólogo,  antropólogo, escritor e político Darcy Ribeiro dizer ironicamente, ao fazer um relato autobiográfico, que ele teve a sorte de perder o pai aos três anos. Talvez você possa dizer algo semelhante, não por haver me perdido, mas por haver se separado de mim na mesma idade. Hoje, após tanto sofrimento e tantas perdas, olhando para trás e avaliando esses sete ou oito anos de ruptura, vejo que, em muitos aspectos, ainda pior que ter um pai ausente é ter um um pai presente, já que você tem crescido sem essa autoridade repressora e sufocante a seu lado todos os dias, podendo ter uma infância mais livre e mais espontânea. Não que eu não me importe com o que está se passando em sua vida nem procure saber do que tem feito, como tem se desempenhado na escola e como tem se comportado. A separação teve isso de bom: estou em posição de ser incentivador de suas vocações e ajudá-lo a descobrir sempre coisas novas e alçar voos próprios sem o desgaste e a aridez do cotidiano. E cada um de nossos encontros, por raros que sejam, são sempre uma aventura e uma ocasião muito aguardada e planejada. A felicidade e a cumplicidade de nossos encontros nunca nos puderam ser tiradas.

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

A poesia brotando na vida

     Na  noite  passada,  tive  novamente  o  sonho  de que estou escrevendo um belíssimo poema. E, como sempre acontece, ao acordar não me lembrava de nada a respeito do texto. Sempre fico intrigado quando esse sonho vem e daria tudo para recordar o que escrevi enquanto dormia.
     De todo modo, este parece ter sido um estranho dia em que o poético andou povoando as minhas horas. Numa das aulas na universidade, em que os estudantes estavam relatando eventos especiais de que participaram ou tomaram conhecimento, minha aluna anglo-brasileira Isabella contou, de olhos úmidos, que, por ocasião da morte inesperada de sua prima, em plena juventude, quando, já ao anoitecer, o corpo esperava para ser preparado para o funeral, um beija-flor apareceu, sobrevoando-o e posteriormente pousando ao lado de sua avó, que interpretou aquilo como uma visita do espírito da jovem falecida e começou a falar com ele. Se esse acontecimento não corresponde à realidade, sendo apenas imaginado, pelo menos compõe uma bela história.
     Ao retornar para casa sob uma garoa fininha, vindo pela margem do rio, vi no céu um insólito arco-íris invertido, com o arco virado para baixo e as pontas para cima. Nunca tinha visto algo semelhante e acabo de ler que se trata de um fenômeno natural muito raro.
      E  ainda  no  campo  do  poético,  me  lembrei  há  pouco, quando estava desenvolvendo a nada poética tarefa de passar roupas, de um episódio da sua primeira infância, quando você passava temporadas na casa de minha mãe. Naquelas ocasiões, meu menino jamais ia dormir sem me pedir que o colocasse sobre os ombros e o levasse para "ver a cidade". Isso consistia em atravessar a rua e caminhar uns 50 metros até um muro em torno de um lote ainda vago. Nesse muro havia um furo por se via as luzes da área central de Divinópolis, já que o bairro onde minha mãe então morava fica numa parte mais alta e não muito distante do centro. Jamais ir dormir sem "ver a cidade" sempre foi para mim uma experiência viva de poesia. 

domingo, 1 de novembro de 2015

Uma sacada em Bucareste



     Após  uma  semana  longe  de casa, estou agora no aeroporto de Bucareste, pronto para retornar à Inglaterra. Passei os últimos três dias na Romênia, que é um país com uma rica cultura, embora parte dela esteja bastante mal cuidada, pelo que se vê em muitos belos edifícios de sua área central, que estão em péssimo estado de conservação, além de cartazes com publicidade cobrirem muitas fachadas que mereceriam ser vistas. Esse descaso com o patrimônio cultural infelizmente nos é familiar. Em agosto passado estive em Ouro Preto e me surpreendi com o estado precário de algumas igrejas por lá. Isso para não falar no estado dos centros históricos das capitais brasileiras.
     Olhando,  por  aqui,  a  sacada deste edifício, ontem à tarde penso nos muitos equívocos da arquitetura moderna, com sua obsessão pela linha reta e os facílimos blocos quadrados. Claro que as formas e conteúdos devem mudar, mas poucos são os Niemeyers, Frank Lloyd Wrights ou Le Corbusiers. Em virtude de nossa falta de planejamento, preservação do patrimônio do passado e urbanismo de qualidade, é evidente que nossas cidades estão ficando cada vez mais feias. Mas como poderíamos desenvolver grandes projetos coletivos com essa elite vagabunda e ignorante que nos comanda?
     Como  esta  vida tem sido uma agitação permanente de um lado para outro, vou agora tomar outro avião, dentro do qual prepararei minhas aulas de amanhã na universidade. Com a proximidade do fim do ano e de algumas provas, já estou às voltas com alunos tensos e preocupados. Que esses dias passem logo e que eu possa mais uma vez cruzar o Atlântico para reencontrá-lo no fim do ano.