segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Vovó contra mim

     De  vez  em  quando,  ao  telefonar  para  o  Brasil ou quando estou em Divinópolis, gosto de transmitir para minha mãe uma imagem de que sou amalucado, anarquista e revolucionário ao extremo. Como ela ainda é uma das últimas pessoas que ainda se escandalizam neste mundo, prodigaliza então conselhos e reprimendas. Após dar entrevista para algum jornalista britânico ou brasileiro, conto-lhe que desanquei meio mundo, que falei mal até da rainha, que cobri de invectivas os costumes atuais, o comportamento de meus amigos ou de uma autoridade qualquer. Tudo mentira ou, no máximo, algo elevado à máxima potência. Então ela me diz que sou muito desabusado, que devia ter medo das consequências, que não sabe de onde veio a minha arrogância, que o sucesso me subiu à cabeça!
     Acho  engraçado  quando  ela alude a meu sucesso, pois constantemente me sinto um fracassado, um autêntico loser neste mundo cujos valores mais em voga se distinguem tanto dos meus.
     Lembro-me  de  que no mês passado, quando estive com ela, contei-lhe com veemência que o havia reprimido, já que você passou muito tempo sem fazer contato comigo no fim do ano passado. Inventei que você até havia chorado após meu xingamento. Como era de se esperar, ela tomou seu partido, dizendo-me que não devo fazer isso, que você é uma gracinha e que me adora, que você não se esquecerá de minhas reprimendas e se revoltará contra mim, que penso ser o dono da verdade etc. etc. Em suma, desempenhou bem seu papel de vovó protetora.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Uma noite em Montmartre


     Depois  de  passar  dois anos do outro lado do canal, sem aparecer por aqui, retorno a Paris. Num café de Montmartre, descanso um pouco após andar pelas ruas estreitas dessa região tão cheia de história e de histórias. É noite e faz um friozinho bastante suportável enquanto assisto às pessoas que passam na rua calçada com paralelepípedos. Passei há pouco diante do busto da cantora Dalida, que aqui viveu e aqui morreu. Gosto dela. 
     Estou  tendo  aqui  a  oportunidade  de  praticar  mais intensamente a língua francesa, que uso quase diariamente em leituras e na audição de programas de rádio.
     Amanhã  à  tarde,  depois  de  uma reunião de trabalho, pretendo revisitar o Museu do Quai Branly, cujo acervo etnográfico é fantástico. Se tivesse a oportunidade, viveria em Paris. E se fosse possível, eu o traria para viver comigo. Teríamos sempre o que ver e o que fazer por aqui.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Uma página de Kafka

     E  eis  que  por  acaso,  fazendo  uma busca na internet a propósito de outro assunto, descubro que no dia 13 de janeiro deste ano foi aberto um processo de natureza criminal contra mim no fórum de Santo Amaro e Ibirapuera, em São Paulo. No mês passado, quando eu estava na casa de minha mãe, contratou-se um advogado - esse piolho dos conflitos humanos - para que eu fosse obrigado a assinar um documento autorizando que você seja levado ao exterior a minha revelia. Tudo indica que a juíza, certa Dra. Sirley sem doutorado, é uma dessas feministas para quem todo homem é um canalha. O processo foi julgado de maneira sumária, sem que eu sequer tomasse conhecimento dele, e a sentença foi expedida automaticamente, dando-me, sem que eu fosse informado da coisa, um prazo de cinco dias não para me apresentar ali e discutir o problema, mas intimando-me a comparecer ao dito fórum e assinar a autorização. Como não compareci, expediu-se um documento que autoriza, de maneira legal, sua saída do Brasil sem meu consentimento.
     Diferentemente  do  que  acontece com você quando aludo a sua beleza, não houve nenhum pudor e nenhum rubor ao se dizer mentira para a Justiça, já que se declara na intimação que me encontro "atualmente em lugar incerto e não sabido". Nem as correspondências que lhe mando com meu endereço em Londres claramente escrito abaixo de meu nome como remetente, nem o endereço de meu escritório em meu perfil no site da universidade onde trabalho, nem o aviso prévio de que estaria naqueles dias na casa de minha mãe são suficientes para que o lugar onde me encontro seja certo e sabido. Mas a pensão que lhe pago mensalmente, é óbvio, tem origem certa e sabida.
     Essa  pérola  de  baixa jurisdição foi publicada no Diário de Justiça do Estado de São Paulo e agora ficará eternamente disponível na internet. E você poderá ser levado para fora do Brasil sem que eu seja consultado. Em outros tempos admito que cheguei a considerar a possibilidade da violência para lidar com essas manobras. Hoje me esforço para assumir uma serenidade de Buda adormecido, exercitando o desapego e mesmo certa indiferença. 
     Viver longe do Brasil me faz sentir como se eu fosse um aleijado. A despeito das coisas que tenho aprendido e dos momentos de alegria que acontecem por aqui, vivo sempre como se carregasse uma pedra dentro do peito. Mas coisas como esse processo têm me feito atravessar já vários anos nesta forma de exílio em parte escolhido, em parte imposto. E nele ficarei até não suportar mais. Ou até desaparecer em lugares mais longínquos.

sábado, 13 de fevereiro de 2016

Para além do espelho

     Acordo  cedinho  e  distante  no  dia  de  seu  aniversário. Estou pronto e equipado para atravessar a cidade de trem até o bairro de Haggerston, para ir jogar futebol nesta manhã fria. Há alguns dias lhe enviei o cartão com a mensagem acima.
     Ontem, no fim de tarde, eu corria ouvindo uma coletânea de sambas quando tocou "Além do espelho", de João Nogueira e Paulo César Pinheiro. Ouvindo a bela canção e já no clima de seu aniversário, era como se eu corresse nas nuvens, emocionado com as palavras do artista. Lembro aqui uma das estrofes, que diz muito sobre o que está no meu coração agora:

       Toda imagem no espelho refletida
       Tem mil faces que o tempo ali prendeu
       Todos têm qualquer coisa repetida
       Um pedaço de quem nos concebeu
       A missão de meu pai já foi cumprida
       Vou cumprir a missão que Deus me deu
       Se meu pai foi o espelho em minha vida
       Quero ser pro meu filho espelho seu

     Se meu próprio pai, porém, foi para mim uma espécie de espelho quebrado, na sucessão de gerações gostaria de ser para você, para sempre, um espelho intacto. Mas quero vê-lo a trilhar seu próprio caminho e ir além do espelho. 
     Por certo  conversaremos  ainda  hoje  via  computador, quando nos diremos sobre o que temos feito, e lhe darei novas congratulações. Que a vida lhe seja generosa e alegre.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Como envergonhar um bonitão

     "Benza-o  Deus,  que  gracinha  de  menino!"  "Mas  que garotinho lindinho, hein!" "Ô bichinho bonito, gente!" "Que olhos ele tem!" Tais eram as galanterias que eu costumava ouvir quando saía por Belo Horizonte ou Divinópolis carregando-o no colo ou no carrinho, quando você era bem pequeno. Naturalmente aquilo inflava o meu orgulho de recém-pai enquanto meu bebê seguia, indiferente, a sugar seu bico. Alguns transeuntes, não resistindo, vinham apertar-lhe a bochecha ou me pediam para pegá-lo no colo um pouco.
     Hoje, já rapazinho e compreendendo melhor as coisas, você tem vergonha que aludam a sua beleza. Por isso às vezes gosto de fazer sua face ficar ruborizada, disparando súbita e brasileiramente, quando o encontro após vários meses distante: "Rapaz, vá ser bonito assim lá na casa do chapéu! As meninas da escola devem suspirar fuuundo quando você passa!" É muito engraçado ver o seu encabulamento, olhando para o chão até que o tiro da situação constrangedora com um "Dá cá um abraço, estou morrendo de saudade".

domingo, 7 de fevereiro de 2016

De Minas e de literatura






     Conversamos  na  noite  de  ontem  via  computador, após eu haver passado ao menos sete meses sem vê-lo. Fiquei surpreso ao notar como você está desenvolvido física e intelectualmente às vésperas dos seus onze anos. Já parece mais um adolescente em flor que o menino com o qual estou acostumado.
     Você  me  contou  de  uma  viagem  que  fez neste fim de ano e também de uma passagem por Minas pouco antes do Natal, contando-me que esteve na casa de minha mãe, para visitá-la. Essa notícia me surpreendeu, pois há pouco voltei de Divinópolis, onde passei cerca de três semanas, e não me contaram que você havia passado por lá. Certamente imaginaram que eu iria ficar irritado pelo que veio em sua companhia no pacote da visita. Mas fiquei feliz por você haver reencontrado minha mãe, que sempre fala sobre a saudade que sente por passar tanto tempo sem vê-lo. Posso imaginar a alegria desse encontro, com Pérola rondando ao redor de vocês.
     Falávamos  ontem  sobre  os  livros  que  você  está lendo. A propósito, estive dois dias em sua cidade natal, Belo Horizonte, logo nos primeiros dias de minha estadia no Brasil. Andando pela região central, junto ao prédio da Imprensa Oficial de Minas Gerais, passei pelas estátuas de Carlos Drummond de Andrade e Pedro Nava, dois dos nossos maiores escritores. Tenho aqui uma foto sua, pequenininho, sentado entre as estátuas de Fernando Sabino e Otto Lara Resende, quando o monumento aos quatro mineiros ficava na Praça da Liberdade e nós mesmos vivíamos na capital de Minas. Gosto quando compartilhamos juntos essas aventuras e perambulações literárias.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Palavras belas e palavras dissonantes

     Há  algumas  semanas,  em  São  Paulo,  ouvi  alguém dizer que sentia uma "tristura". A palavra, que até está no dicionário, embora seja muito pouco usada, me parece mais expressiva que a simples "tristeza", transmitindo algo de realmente melancólico. Também gosto da palavra na língua francesa, tristesse, que evoca uma tristeza densa, latente, funda. Há ainda uma desolação patológica chamada "tristimania", sendo essa uma interessantíssima junção de duas palavras.
     Por  falar  em  outra  língua,  sempre  gostei  de  moon, em inglês, que, com seu longo oo, me parece melhor que o nosso "lua", sendo um termo que na própria pronúncia soa descritivo da coisa.
     Eça  de  Queirós,  quando  descrevia  um  gordo, costumava escrever que se tratava de um "gordalhufo", o que instantaneamente dava uma personalidade ao personagem. E uma vez ouvi meu amigo Doc descrever uma musa gordinha que ele cortejava como uma "gordelícia", o que já era um resumo do seu lirismo.
     Palavras  de  nossa  língua  de  que  me  soam  lindamente: "libélula", "aurora", "alvorada", "benzinho", "glossário", "hipocampo". Palavras de que não gosto: "esparadrapo", "esgoto", "catarro", "espuma", "carvão".
     Às  vezes  passo  um  longo  tempo  perambulando  pelo dicionário e lendo o significado, a etimologia, os sinônimos e os antônimos das palavras, o que é um prazeroso exercício. E quando o encontro, gosto de lhe propor que pronuncie trava-línguas, parlendas ou simplesmente uma frase difícil qualquer, a fim de testar suas habilidades linguísticas e nos divertir ao mesmo tempo. Infelizmente não pudemos fazer isso nesta virada de ano que acaba de passar...

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Da justiça

     De  vez  em  quando  me  lembro  de  um  trecho  da apresentação do livro Com a Graça de Deus, de Fernando Sabino: "Ele gosta mais de uns que de outros. Deus tem as suas predileções: tem uma quedazinha pelas crianças, os mendigos, os doidinhos, os poetas, os pobres-diabos, os humilhados e perseguidos, os que sofrem por amor, enfim, os inocentes. Deve ter lá suas razões. Isso não é injustiça, não: é que a justiça de Deus é diferente da justiça dos homens."
     Embora  não  tenha  mais  fé,  se  é  que  algum  dia  a tive, gosto das palavras do escritor mineiro e acho que essa justiça dos inocentes da qual ele fala é de fato muito mais profunda que a proverbialmente falha justiça dos homens. Lembro-me dela quando penso em você e o alumbramento da sua infância, com sua visão de mundo plena de um vigor, uma verdade e uma poesia que já perdi há tempos. Daí sua alegria, apesar das desventuras de nossas vidas, daí meu lado escuro e o constante assédio da melancolia em virtude da vida que temos perdido. Mas se sou também um que "sofre por amor", ainda haverei de ser incluído nessa justiça de Deus.