segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Dois modos de ser criança

     Estou  agora  no  aeroporto  de  Guarulhos,  esperando  pelo voo de retorno a Londres. As duas últimas semanas foram passadas entre a Bahia e o Rio de Janeiro. Conversamos numa das noites em que eu estava no hotel, no Rio. Contei-lhe de um encontro que tive com os índios pataxós, numa visita a uma de suas aldeias em Santa Cruz Cabrália. Conversei muito com dois deles, andei por uma trilha em sua reserva e até almocei com eles. Foi uma experiência diferente. O que pude ver não passa do óbvio: nossos indígenas são pessoas como nós, porém com um estilo de vida bastante diferente. São menos corrompidos pela monetarização da vida e talvez componham uma civilização que nos mostre que outro modo de viver, que não tenha seus fundamentos nos valores do individualismo e da competitividade, é possível. 
     Houve  um  momento  em  que  fiquei  observando  um grupo de meninas que brincavam sob uma árvore. Aproximei-me delas e lhes pedi para tirar uma fotografia. Olhando esta imagem agora, passa-me pela cabeça uma comparação entre a infância delas e a sua. Falta-lhe a liberdade, o tempo, a fruição do momento, a proximidade com os elementos naturais que elas possuem. Por outro lado, você tem uma educação de boa qualidade numa escola particular de São Paulo, os confortos proporcionados pela tecnologia moderna, a oportunidade de ilustrar-se em conhecimentos valorizados e reconhecidos no mundo inteiro, em sociedades consideradas "avançadas". Porém muitas vezes passamos semanas inteiras sem fazer contato, em virtude de seus muitos compromissos com aulas extras, festas, colônias de férias e atividades de fim de semana. Sem falar no tempo que você utiliza em jogos eletrônicos. 
     Nascido  e  crescido  no  interior  de  Minas, tive uma infância, em muitos aspectos, parecida com a delas. Por isso tenho simpatia pelo modo como vivem, mas realmente tenho dúvida sobre se não estou idealizando-as, pois muitas vezes também me sentia um tanto revoltado com minhas carências materiais e, mais tarde, com o provincianismo em que vivia. Mas não importa saber qual infância é melhor. Parece-me que você está bem e é feliz em sua realidade. Isso é o que importa.

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Reencontrar Minas Gerais


     Estou  passando  estas  duas  semanas  últimas semanas de férias em Minas, na casa de minha mãe. Na semana passada, passei também alguns dias em Belo Horizonte, em Ouro Preto e no Caraça. Neste último, que eu costumava visitar com certa frequência nos tempos da faculdade e aonde não ia já há muito tempo, pude andar por trilhas na mata, ir a grutas e cachoeiras e estar próximo da vegetação tanto do cerrado quanto da Mata Atlântica, já que o lugar está no limite dos dois ecossistemas. À noite, houve uma surpresa quando as pessoas esperavam pela visita do lobo guará que costuma aparecer por ali para comer. Em vez dele, veio uma anta enorme, pisando fortemente sobre o chão com suas patas, quase como um cavalo. Ela parou por ali, entre as pessoas, e comeu os restos de carne e osso que os padres do local deixam para o lobo.
     Estes  são  os  últimos  dias  no Brasil,  antes  de retornar à Europa. Ainda devo passar pelo Rio de Janeiro próximo do fim de semana. Os pontos altos dessa breve temporada foi reencontrá-lo, bem como a minha família e meus amigos. Dei ainda uma palestra na USP, na Escola de Comunicações e Artes, que foi muito interessante pela participação dos alunos e o diálogo com eles. 
     Durante  um  passeio  pelo  campus,  você  me  disse  que também estudará na USP dentro de mais alguns anos. Será, para mim, uma alegria se isso acontecer, pois tenho orgulho de haver estudado lá. Minha vida mudou muito a partir dessa experiência, e sei que isso também acontecerá com você.

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Barrigas de ópera bufa

     Em  suas  crônicas,  para  dar  uma  ideia  de  uma barriga grande e protuberante, Nelson Rodrigues costumava chamá-la de "barriga de ópera bufa", numa alusão ao gênero de música lírica que zomba de burgueses quase sempre barrigudos em sua prosperidade pecuniária. Lembrei-me dessa expressão ontem à noite, quando cheguei com antecedência de mais de uma hora ao terminal rodoviário do Tietê, em São Paulo, antes de viajar para Minas. Sentado na área de espera, fiquei observando as pessoas que por ali passavam, os tipos mais diversos, gente de todo canto do país. Em meio a essa diversidade exuberante, uma característica me chamou muito a atenção: a grande quantidade de gente acima do peso considerado recomendável e saudável. A todo momento passavam autênticas barrigas de ópera bufa de um lado para o outro.
     Quando  eu  era  criança,  o  Brasil  era  uma  paisagem de magros. Os poucos gordos que se viam eram elegantes gordinhos de fundo genético, raramente obesos. Havia uma crise econômica que atravessou a segunda metade dos anos 1970 até meados dos 90, com menos variedades de alimentos e certa escassez. Muito especialmente, não havia toda essa rede de lojas de comidas rápidas nem o uso intensivo de gordura trans, além de o estilo de vida em geral ser diferente.
     Nos  últimos  15 anos,   porém,  houve  um crescimento econômico no país,  e muita gente que antes tinha de cavar a sobrevivência no improviso entrou no mundo do consumo, o que teve seu lado bom e democratizador. Porém muitos passaram a trabalhar fora de casa, tendo de comer no local de trabalho ou em suas proximidades, com pressa e sem maiores preocupações com a qualidade do alimento. E disseminou-se a ideia de que trabalhar muito, em si, é uma virtude. Daí o desgaste, o sedentarismo, a falta de atividades intelectuais e de lazer, a impossibilidade de se desenvolver uma atidade física ou esportiva regular. Como resultado, aí estão as barrigas de ópera bufa que hoje se destacam em nossa paisagem.
     De  maneira  alguma  me  identifico  com  o  fascismo da aparência que dita  que as mulheres devem ser esbeltas, e os homens, atléticos. Nem com a ideia de que a beleza pode ser enquadrada num biotipo específico ou em determinadas características de rosto ou corpo. Mas temos de repensar e criticar um sistema de valores e exigências de trabalho que não permitem que as pessoas possam cuidar melhor de sua saúde e ter uma vida com melhor qualidade.

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Meu alquimista

     Ontem,  quando  estávamos  almoçando,  perguntei-lhe a queima-roupa o que você quer ser quando crescer. Caí das nuvens ao ouvir a resposta: "Alquimista". Nunca imaginei que pudesse ter um filho alquimista e não sei onde você leu a palavra ou aprendeu sobre ela. Mas o fato é que ela o fascinou.
     No entanto, talvez  você  já  seja  um  alquimista.  Hoje à tarde, enquanto corria, eu girava pelo campus da USP ouvindo o genial Jorge Benjor no telefone amarrado a meu braço. Em certo momento, lá vinha ele definindo os alquimistas numa enxurrada de adjetivos: "Eles são discretos e silenciosos", "são pacientes, ativos e perseverantes", "evitam qualquer relação com pessoas de temperamento sórdido". Assim é o meu alquimista de dez anos que, desde que nasceu, tem transformado minha vida em ouro.

domingo, 9 de agosto de 2015

Respeita os oito baixo do teu pai

     Muitas  vezes,  quando  conversamos  pela  internet ou, o que é mais frequente, quando trocamos mensagens escritas, você gosta de me mostrar suas habilidades com o computador. Lá vêm sempre desenhos feitos por meio eletrônico, modificação de fotografias, jogos e toda uma série de aplicativos para se fazer de tudo um pouco. Hoje há máquinas e programas para quase tudo. Há um tal Minecraft de que você é fã e que não me atrai muito. De todo modo, vejo com interesse o que tem produzido com esses programas e websites e até já participei de jogos eletrônicos com você. Quando o encontro, sempre fico admirado com sua habilidade com o chamado smartphone que lhe dei há uns dois anos.
     Embora  tenha  grande  interesse  pelo desenvolvimento da computação e da internet, pertenço a outra geração, em que tudo era analógico. Possuo uma biblioteca com muitos livros, tenho ainda muitos discos, álbuns de fotografias impressas e prefiro me relacionar com as pessoas cara a cara. De todo modo, sei fazer relativamente bem umas poucas coisas no computador. Reconheço que o mundo mudou, mudei eu mesmo e me ajustei naturalmente àquilo que considero relevante nessa orgia de aparelhos e aplicativos com que convivemos hoje. E gosto de ver seu entusiasmo com os meios eletrônicos, chegando a incentivá-lo. Até que um dia, quando for mais maduro, possamos criticá-los juntos.
     Ao  encontrá-lo  após  alguns  meses  distante, entre outros presentes menos tecnológicos, trouxe-lhe um drone. Foi muito divertido irmos para o campus da USP e fazê-lo voar, tirar fotografias, chamar a atenção de pessoas que estavam por ali, especialmente meninos. E durante toda a semana, ao ver seu afã de me mostrar suas capacidades com os meios eletrônicos moderníssimos que fazem parte de seu dia a dia, lembrei-me de uma canção genial de Luiz Gonzaga em que ele conta que, após seu sucesso musical no Sudeste, retornou ao sertão nordestino com uma sanfona ultramoderna, de "fole prateado/ só de baixo, cento e vinte", pensando que impressionaria Januário, seu pai, e dele caçoaria. Então, um amigo da família dá-lhe um conselho:

           Luiz, respeita Januário
           Luiz, respeita Januário
           Luiz, tu pode ser famoso, 
           Mas teu pai é mais tinhoso
           E com ele ninguém vai, Luiz
           Respeita os oito baixo do teu pai!
           Respeita os oito baixo do teu pai!

     A  sanfona  de  Luiz  possui  120  baixos,  mas ele utiliza apenas dois para tocar, ao passo que Januário utiliza todos os oito baixos de seu velho e simples fole. Sinto que o choque de gerações, em nosso caso, é semelhante.

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Um intervalo em Lisboa

     Parti  cedinho  de  Londres  e estou agora no aeroporto de Lisboa, esperando por duas horas até tomar outro avião para São Paulo. A proximidade de reencontrar as cores, os sabores, os cheiros e a gente do Brasil é sempre muito vivificante. Um desembarque ideal incluiria tê-lo no aeroporto esperando por mim, para me dar o seu abraço e o seu beijo. Mas isso não vai acontecer, pelo menos nesta noite. Esse abraço e esse beijo terão lugar no próximo fim de semana.
     Ao  chegar  em  aeroportos  por  este  mundo,  quase sempre sozinho, me dá certa inveja daquelas pessoas que são esperadas por alguém com seus nomes escritos num papel. Lembro que uma vez cheguei a São Paulo, e havia uma moça portando uma folha tamanho ofício onde estava escrito: "Zózimo, eu te amo para sempre!". Como conhecemos bem o brasileiro, é bem possível que o tal Zózimo, esperado em Guarulhos como quem volta da guerra, tenha ido apenas passar dois dias a trabalho no Rio de Janeiro. 
     Se  há  quem  fantasie  possuir  uma  ilha, uma Ferrari ou viajar pelo espaço sideral, a minha fantasia é algo bastante simples: ter alguém esperando por mim na área de desembarque do aeroporto com meu nome escrito num pedaço de papel. Nem precisa do "eu te amo para sempre".

domingo, 2 de agosto de 2015

Condenados à liberdade

     Num  ensaio  sobre  que  atitude  assumir  diante da vida para se obter um mínimo de paz e satisfação, Plutarco conta que Alexandre, o Grande uma vez começou a chorar ao ouvir o filósofo Anaxarco discursar sobre a existência de um número infinito de mundos. Quando os amigos do imperador lhe perguntaram a razão de suas lágrimas, ele, que controlava um vastíssimo império, respondeu: "Vocês não acham há razão de sobra para chorar, se há um número infinito de mundos, e eu ainda não conquistei nem este em que estamos?"
     Assim  somos  nós  em  nossa  permanente  insatisfação com o que temos e o que já conquistamos. Se no tempo de Alexandre os homens ainda cultivavam certa grandeza de atitude e realizações, hoje, no império do consumo e do entretenimento, a insatisfação de quase todos é ainda maior que a do imperador macedônio. Como se não bastasse, ainda perdemos toda a magnitude de projetos dos homens livres da Antiguidade. Há, por toda parte, um enorme rebaixamento do nível intelectual e moral das pessoas, bem como de suas relações. Como a sucessão de mercadorias, a acumulação financeira ou a banalidade do entretenimento não são capazes de preencher um espírito vazio, convivemos hoje com essa legião de ansiosos, neuróticos de toda sorte, depressivos e viciados em drogas.
     Por  tudo  isso,  sempre  defendo  que  se  tenha  ao menos uma grande paixão. Pode ser por uma arte, um esporte, uma ciência, uma mulher ou até mesmo pelo cuspe à distância. Tal paixão, que deve ser sempre analisada criticamente e vivida dentro dos limites do razoável, irá expandir seu mundo e dar um sentido a sua vida, proporcionando-lhe densidade vital e experiências profundas. 
     Vivemos  em  sociedade  e  me  parece que somos muito mais determinados pela realidade em que estamos inseridos que livres para fazer escolhas autênticas. Participamos todos do império do consumo e do entretenimento, mesmo aqueles que se esforçam por recusá-lo. Porém, no mínimo podemos tentar conquistar o nosso mundo dentro da infinidade de mundos de Anaxarco. Ou inventá-lo. Isso não é nada fácil, mas é a tarefa de cada um de nós desde que nos emancipamos das tiranias e nos tornamos indivíduos, titulares de direitos e também cumpridores de uma vasta carga de deveres. Por falar em filósofos, outro deles, Jean-Paul Sartre, mais próximo de nós, expressou muito bem nossa condição ao escrever que "estamos condenados à liberdade".