domingo, 26 de junho de 2016

Nós dois nos parques

     Esta  escultura  de  parque  me  remeteu  hoje  a  nossos passeios pelos parques de Divinópolis, São Paulo e Belo Horizonte que frequentamos juntos por algum tempo. Lembrei-me do quanto você gostava de levar baldinhos e pás de plástico para brincar na areia e, mais tarde, de gangorras, escorregadores e brinquedos de subir e escalar. Sempre participei de suas brincadeiras e lhe dei liberdade para correr um risco controlado nos brinquedos mais perigosos.
     Recordo-me  ainda  de  nós  dois  levando  pão  velho para os parques, para dá-lo aos peixes das lagoas, que se juntavam nas margens para comerem os pedaços que você lhes jogava. E uma de suas atividades favoritas era jogar pedras sobre a água para ver as ondas que se formam.
     Para  além  da  liberdade  dos  amplos  espaços  dos parques, eles são também um lugar onde encontramos pessoas diferentes e onde culturas diversas se entrecruzam, o que é muito estimulante.
     Estou  sentindo  falta  desses  momentos  fruição  do tempo com você na gratuidade dessas atividades. Na próxima vez que nos encontrarmos, vamos passar um domingo no parque Ibirapuera. Levaremos inclusive a comida para um piquenique. Sem esquecer, claro, do pão para os peixes.

sexta-feira, 24 de junho de 2016

A miséria política do nosso tempo

     Acordo  com  um  rebuliço  pelo  país,  em  virtude  da votação de um referendo que decidiu pela saída do Reino Unido da União Europeia, que tem sido uma longa e difícil construção que se iniciou após o fim da Segunda Guerra Mundial. Esta é uma das mais significativas vitórias dos fascistas e populistas que em nosso tempo voltaram a vicejar pelo mundo afora, como se o século XX não tivesse existido e comprovado o perigo das soluções políticas fáceis. Neste caso, uma questão extremamente complexa e cheia de nuances foi decidida no simplismo do sim ou não por parte de eleitores manipulados pelo discurso do medo e a blitz alarmista da imprensa reacionária. Em breve o país já estará pagando muito caro por fazer a política ditada por suas elites.
     Por  falar  nisso,  esse  é  exatamente  o  cerne  da  bad trip pela qual o Brasil está passando neste momento. Muito mais grosseira, no entanto, a nossa oligarquia nem se preocupa mais com o disfarce democrático de um referendo e parte para o golpe de Estado, como estamos assistindo. Se ao menos a podridão que nos está sendo exibida todos os dias resultar na retirada de cena dos salafrários de todos os partidos envolvidos e, principalmente, fizer com que se promova uma ampla e participativa reforma do sistema, ela terá valido a pena. Mas o Brasil nos dá sempre muitos motivos para sermos pessimistas em relação a isso.
     Hoje  em  dia,  quando  as  redes  sociais  deram  voz  e publicidade aos imbecis, o homem público tornou-se também uma expressão deles. Qualquer idiota se sente apto para o poder e até mesmo o conquista. Basta ver a composição dos governos e dos parlamentos atualmente para se comprovar isso. E o pior é que até mesmo o nível dos homens mais poderosos do mundo está baixíssimo, o que é muito perigoso.
     Embora  não  tenha  expectativa  de  que  você  venha a se envolver diretamente na prática da política, espero vê-lo crescer como uma pessoa consciente e dotada de censo crítico. Muito especialmente espero que você jamais tenha a mínima identidade ou proximidade com fascistas de qualquer espécie ou proclamadores de soluções fáceis para a complexidade dos nossos problemas.

domingo, 19 de junho de 2016

Saudade na primavera

     Amanhece  um  domingo  de  sol  e  penso  em  você. Sinto saudade e gostaria de estar aí, para que estivéssemos juntos. Daqui a pouco vou sair para passar o dia fora, aproveitando este curto período de tempo bom por aqui. Como é fim de primavera, os parques ainda estão plenos de flores com seus perfumes. Até abelhas e borboletas resolveram aparecer.
     Penso  no  Brasil  e  desejo  de  retornar,  embora  nosso país esteja nesse atual fundo de poço, em que tudo de ruim parece estar acontecendo ao mesmo tempo: um governo ilegítimo, a propagação de ideias e ações fascistas, o esgoto da política vindo à tona, os três poderes da República completamente corrompidos, enorme instabilidade, recessão econômica, crise moral de muitos cidadãos comuns, epidemia de zica, desorganização dos jogos olímpicos do Rio de Janeiro... Mas essas infâmias são passageiras, e o Brasil é muito maior que o lixo político de Brasília e a inépcia da oligarquia tenta ditar os rumos do país. Vamos seguir em frente e vamos resistir a esse horrível surreal nosso de cada dia. E refaremos nosso caminho através da luta por verdadeira democracia.
     Há  bastante  tempo  não  recebo  notícias  suas.  Embora isso normalmente queira dizer que você está bem, fico chateado com sua atitude. De todo modo, viva bem o seu início de adolescência. Se estiver ao menos lendo bons livros, está tudo bem.

segunda-feira, 13 de junho de 2016

Tio Iraci

     Minha  irmã  Renata  acaba  de  me  telefonar  para informar que nosso tio Iraci, que chamávamos tão brasileiramente de Lalá, sofreu um enfarte há algumas horas e faleceu. Ele devia ter uns 67 ou 68 anos. Minhas irmãs e minha mãe almoçaram em sua casa ontem e o encontraram bem, sem nenhum sinal de que isso estava para acontecer. Sinto-me agora abatido por mais essa perda em minha família neste ano, que tem sido bastante cruel.
     Tenho  escrito  uma  coleção  de  contos  envolvendo problemas familiares, que espero que se transforme em um livro dentro de mais algum tempo. Há algumas semanas escrevi uma história inspirada num acontecimento que marcou o início de minha adolescência, justamente envolvendo meu tio Iraci. Quando mais jovem, ele era um Casanova de província. Tinha amantes em quase todos os bairros de Divinópolis e de outras cidades onde passava temporadas trabalhando. Por causa de suas aventuras e de uma grande irresponsabilidade, deixou vários filhos espalhados por este mundo, a maioria deles não reconhecidos.
     Como  era  um  homem  de  poucas  letras  num  tempo em que as pessoas ainda trocavam muitas cartas, ao saber que eu era bom aluno na escola, tio Iraci acabou fazendo de mim o secretário de seus amores. Eu devia ter 11 anos quando isso começou, durando pelos três ou quatro anos seguintes. Ele aparecia em nossa casa como quem vinha de visita a minha mãe e sua querida irmã, conversava fortuitamente e ficava por ali. Quando minha mãe se distraía ou se engajava em algum afazer doméstico, ele me puxava para um canto e me pedia que lesse a carta de alguma de suas namoradas em voz alta. Depois sacava caneta e uma folha de papel escondidas na camisa e me pedia que escrevesse a resposta, recomendando-me que enfatizasse o quanto ele estava sofrendo de paixão e não aguentando mais esperar pelo próximo encontro com aquelas divas, que costumavam também lhe mandar cartões perfumados, com desenhos de corações flechados e beijos de batom. E eu, nas minhas funções de Valmont de meu tio, escrevia respostas com o fim óbvio de seduzi-las. Como acontece com todo D. Juan, seus relacionamentos eram efêmeros e se desfaziam depois de ele conseguir o que desejava. 
     Como  compensação  por  meus  serviços,  de  vez  em quando tio Iraci me aparecia com um presente: uma bola, uma camisa, uma nota de bom valor para que eu a gastasse como que quisesse...
     Depois de algum tempo, quando eu já tinha uns 14 ou 15 anos, meu pai, que não via com bons olhos minha participação nas conquistas de meu tio, resolveu pôr um fim no que chamava de "aquela sem-vergonhice", proibindo-me de continuar escrevendo cartas para ele. Embora ainda tenha ido me encontrar na saída da escola, para que eu lhe escrevesse mais algumas cartas lancinantes, tio Iraci já estava começando o namoro que resultaria no seu casamento, que, contra todas as previsões de algumas línguas de cobra da família, foi bem-sucedido e durou pelo resto de sua vida. E, contrariamente aos temores de meus pais, ao crescer jamais vim a me tornar nenhum serial lover por causa do exemplo que tive na adolescência. E tive apenas um filho, que é reconhecido e muito amado.
     Há  alguns  anos  participei  de  um  almoço  na  casa de tio Iraci, em que sua família recebeu a visita de um de seus filhos, que cresceu no sul de Minas, criado somente pela mãe, com muitas dificuldades. O rapaz acabou se realizando como uma pessoa de bem. Fez universidade de Enfermaria, sendo hoje chefe deste setor em um hospital, além de cantor de música sertaneja. Até então os dois haviam se encontrado apenas uma vez, quando o rebento tinha cinco anos, em meados dos anos 1980, e foi visitado pelo pai. Foi bonito ver aquele reencontro e o abraço dos dois para enterrar qualquer ressentimento, podendo seguir bem a vida dali para frente. Sei que desde então eles permaneceram em contato.
     Tio  Iraci  era  também  um  faz-tudo,  sendo  sempre chamado às casas de seus irmãos para instalar portas, consertar fechaduras, colocar pisos, pintar paredes, resolver problemas com goteiras. Na sua juventude, era também brigão em bares e dado a alguns excessos, o que já o levou a passar uma ou duas noites preso e a cultivar uma sólida reputação como valentão municipal. Ainda durante minha adolescência, lembro-me de, após uma pendenga futebolística, um jogador adversário maior e mais forte ter ameaçado me bater. Desafiei imediatamente que o fizesse, informando-lhe de que depois meu tio Iraci acertaria as contas com ele. Foi o que bastou para que o valente da vez abaixasse a crista e me deixasse em paz, passando inclusive a me evitar durante o resto do jogo.
     Na  última  vez  em  que  estive  em  Divinópolis,  há seis meses, Lalá me telefonou, perguntando-me se eu iria a sua casa no domingo seguinte para um almoço. Eu já tinha outro compromisso com amigos e não pude ir. Dois dias depois cruzei o Atlântico de volta para a minha vida em Londres. Foi última vez que conversamos. Jamais voltaremos a almoçar juntos. Com sua morte hoje, meu mundo se torna mais pobre e mais triste. Que essas lembranças fiquem como uma espécie de última carta para ele, desta vez tendo-o como destinatário. Minha vida foi melhor e mais rica com a presença dele, na dimensão humana, demasiado humana de suas qualidades e seus defeitos.

domingo, 12 de junho de 2016

Uma esquina de malucos


     Passei a tarde de hoje na região dos grandes museus, em South Kensington, junto ao Hyde Park. Logo depois perambulei pelo parque. A certa altura, como estava perto da chamada Speakers' Corner, resolvi parar e ouvir os discursos dos vários oradores que ali se reúnem aos domingos para tratar de todos os assuntos, da crise do capitalismo ao sexo dos anjos. É uma das experiências mais pitorescas que se pode ter em Londres. Toda a multiplicidade cultural e ideológica da cidade ali se exprime. E os oradores, sobre seus banquinhos ou caixotes, soltam a língua, em geral falando mal do governo, exaltando suas religiões ou criticando os costumes contemporâneos. O problema é que, embora haja uma boa concentração de pessoas em torno deles, já que o lugar tornou-se inclusive uma atração turística, ninguém os ouve. É comum que seu discurso, que costuma já ser muito confuso, degenere para um diálogo de surdos com algum outro maluco na plateia que resolva debater, mas sendo totalmente fechado aos argumentos do outro. Ao menos hoje lá estava o bom humor esse orador anônimo propondo que não se acredite em ninguém, inclusive nele mesmo.
     A  Speakers'  Corner  existe  há  quase  150  anos,  e  em outras épocas ali discursaram personalidades como Karl Marx, Vladimir Lênin, William Morris e George Orwell. Hoje, porém, num tempo em que todo mundo é obrigado a ter opinião sobre tudo, especialmente sobre aquilo de que não entendem bulhufas, o lugar se tornou um sucesso para quem deseja dar os seus chutes sobre qualquer assunto fora das redes sociais e com uma audiência real.
     Ao  sair  dali,  voltei  para  casa  imaginando  um revolucionário lugar chamado Listeners' Corner, em que as pessoas se reunissem para ficar caladas e simplesmente ouvir, quem sabe discursos gravados de um Martin Luther King, de um Mandela, de um Che Guevara. Ou textos lidos em voz alta de um Montaigne, de um Spinoza, de um Nietzsche. Então partiriam dali para exercer cotidianamente a subversiva prática de ouvir os outros. Com isso, quantos casamentos seriam salvos, quantas amizades não se desfariam, quantos políticos e economistas teriam algum conteúdo em suas falas! E quantos pais e filhos se entenderiam e se respeitariam a despeito de suas diferenças de valores e estilos de vida!

quinta-feira, 9 de junho de 2016

Tempus fugit


     Estou passando dois dias no norte da Inglaterra, para um trabalho breve. Hoje, quando voltava para o hotel, deparei-me com este relógio de rua e sua solene advertência latina de que "o tempo voa". Em cima, a personificação alada da morte com sua foice que haverá de nos cortar o fio da vida quando for chegada a hora. Para além de uma óbvia admoestação contra a preguiça e a procrastinação, a frase me fez pensar em minha perambulação pela vida. Às vezes me parece inacreditável que eu já esteja há praticamente cinco anos vivendo longe do Brasil. Se nesse tempo tive a oportunidade de me recriar e muita coisa aconteceu, é de se considerar também o que não aconteceu. A distância me afastou de muita gente, renunciei à estabilidade de uma carreira numa de nossas universidades públicas, deixei do outro lado do Atlântico minha família, meus amigos, meus cachorros e meus livros. Por fim, fiquei definitivamente apartado de você, embora busquemos estar em contato e eu realize uma longa viagem duas vezes por ano, ficando alguns dias em São Paulo somente para reencontrá-lo. Eu que tantas vezes o carreguei no colo e depois nos ombros, em cada uma dessas ocasiões me surpreendo com seu tamanho, seus novos dentes, o formato de seu rosto, o comprimento de seus braços e pernas, as mudanças na sua voz, seus ares de mocinho. Depois de receber seu abraço e passarmos um fim de semana juntos, apesar da felicidade de partilhar uma fatia de vida com você, costumo retornar com um sentimento de que não o conheço muito bem. Mas exatamente porque o tempo voa e a morte empunha sua inexorável foice, quero que nossos momentos juntos, por efêmeros que sejam, possam ser vividos com a alegria capaz de nos fazer esquecer do próprio tempo e de nossa própria finitude, pois dessa forma serão momentos da eternidade.

domingo, 5 de junho de 2016

Travessia da crise

     Num  tempo  em  que  todo  mundo  posta  felicidade obrigatória, já que em realidade não a possuem, estou triste com toda a conjuntura que hoje envolve nossas vidas. Sinto sua falta, estou num processo de transição que vem durando mais do que eu desejo e não sei muito bem para onde estou indo. O caminho natural numa hora como essa seria voltar ao Brasil, mas vivemos um dos períodos mais abomináveis de nossa história, em que a oligarquia vira-lata roubou o poder político e instalou esse governo provisório que é uma pústula, os fascistas recebem respaldo de parte da classe média e as forças de Tânatos aumentam ainda mais a violência e a insegurança que fazem parte do nosso cotidiano. Mesmo assim tenho ímpetos de deixar tudo aqui a qualquer momento e ir reencontrá-lo, participar mais de perto de sua educação, refazer minha vida no Brasil. Não estou satisfeito com a vida que estou vivendo e preciso de algo mais significativo em meio à situação de crise que vivenciados tanto no plano pessoal quando nas altas esferas nacionais. Alea jacta est.

quarta-feira, 1 de junho de 2016

Por que lhe escrevo

     Passo  muito  tempo  sem  vê-lo  e  às  vezes  muito tempo sem que sequer façamos contato. Por isso lhe escrevo. Um dia olharemos para trás e veremos aqui registros de um tempo difícil em que fomos obrigados a estar tão distantes por causa dos acidentes da vida. 
     Mas  não  lhe  escrevo  apenas  por  isso.  Há  um aspecto narrativo na identidade de todos nós. Quem eu sou é inseparável da minha história, da narrativa de minha vida, algo que me posiciona hoje em relação a um passado, uma família, um bairro, uma cidade, uma comunidade, um país, uma tradição, uma cultura e, em última instância, à sociedade global. Uma vez que estas pequenas narrativas deste já longo período de minha vida estão interligadas com a sua própria história, elas também poderão lhe servir um dia, talvez, para uma compreensão de sua própria identidade. 
     Tudo  isso  vai  na  contramão  do  individualismo  radical da sociedade de consumo que temos hoje, em que tudo é feito para se gastar e se criar novas necessidades num ciclo infinito que sempre recomeça, sem sentido e sem história. Por isso narrar é também resistir. Por isso narro e resisto.