segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Lá e cá


     Nestes  dias  na  casa  de  minha  mãe,  imerso  no provincianismo do interior de Minas, tenho tido um sentimento de haver me tornado um estranho em minha terra natal, onde vivi até os 23 anos, sendo também obviamente um estranho na terra estrangeira onde tenho hoje meu endereço. Mudei eu, mudou minha terra natal. Mas prefiro pensar como os antigos latinos: Ubi bene ibi patria.
     Este  foi  um  ano  de  muitas  viagens  para  lugares distantes em várias partes do mundo, com muitas descobertas de novos estilos de vida e diferentes formas de organizar a vida. Mas pude ver que por todo lado essas grandes variações são coisas relativamente superficiais, pois nossos sonhos, nossos planos, nossas expectativas são muito parecidos. Em essência, o ser humano é o mesmo em todos os lugares.
     Dentro  de  mais  alguns  dias,  retornarei a Londres, a minhas corridas às margens do Tâmisa, ao frio de janeiro, ao convívio com meus alunos. E voltarei também a meus planos de viagens para 2015: Índia, Mongólia, Irã, China, Eslovênia, Letônia, Tunísia... O mundo está sempre nos chamando.
     Quando chego a um novo país,  a  um lugar diferente, quando me relaciono com as idiossincrasias de pessoas de culturas diversas, uma de minhas primeiras preocupações é comprar um cartão-postal e lhe enviar, a fim de compartilhar com você um pouco de minhas descobertas e experiências na terra nova. Gostaria que chegasse logo o tempo de sua independência, para que possamos fazer algumas viagens juntos. Isso será a conjugação de dois prazeres, o da própria viagem e o de estar juntos, tal como no tempo em que vivíamos juntos e viajávamos pelos limites do bairro e das ruas próximas com você sentado sobre meus ombros. Aquele foi um tempo de grandes descobertas e de conversas memoráveis.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Véspera de Natal na cidade natal

     Agora  pela  manhã,  justamente  após  passar algumas horas mergulhado na leitura de Os Demônios, de Dostoiévski, parei numa passagem em que membros de uma organização criminosa discutem sobre um triplo assassinato e um incêndio criminoso cometido na cidadezinha onde vivem, nas imediações de São Petersburgo. O que eu não imaginava é que, fechando o livro para descansar um pouco os olhos, presenciaria e faria parte de um episódio que parece tirado das páginas do grande escritor russo, que tanto tratou da loucura dos homens e do caos da vida em suas obras.
     Ao  ir  da  biblioteca  para  o  quarto,  ouvi,  vindo da rua, uma voz de mulher gritando por socorro. Quando cheguei à entrada da casa, diante da movimentada rua onde mora minha família, vi um homem sair correndo de uma loja de móveis que fica quase em frente e alguns motoqueiros partindo em sua perseguição. Foi uma tentativa de roubo ao estabelecimento. Um pouco abaixo, o sujeito foi agarrado pelos motoqueiros, agredido e imobilizado no chão, a cerca de 100m da casa de minha mãe, diante de uma floricultura. Em questão de minutos, houve uma aglomeração de pessoas em torno do criminoso, que estava estendido no chão, e o trânsito tornou-se lento, num irresistível voyeurismo de nossos motoristas diante da violência.
    Chamaram  a  polícia,  mas  os  homens  dessa imponderável instituição simplesmente não compareceram. Em vez disso, após cerca de 20 minutos, vieram dois carros do Corpo de Bombeiros. Nesse meio tempo, me aproximei da turba que cercava o ladrão. Tratava-se evidentemente de um coitado de cerca de 30 anos, vestido em andrajos e descalço, a própria imagem de todas as privações. Diante de guirlandas natalinas penduradas na entrada da floricultura, alguns de nossos melhores e mais angelicais cidadãos lhe dirigiam terríveis palavrões, proclamavam que se deveria matar um tipo como aquele e lhe desferiam pontapés. Acabei intervindo, batendo boca e trocando empurrões com um Charles Lynch de província que o estava chutando. Houve uma divisão entre os que eram pró e os que eram contra descarregar violência contra o sujeito ali deitado. Até que os bombeiros chegaram, socorreram brevemente aquele indesejável e colocaram-no em seu carro, levando-o para não se sabe onde, talvez para uma delegacia de polícia. 
     Assim é agora o Natal divinopolitano.

domingo, 21 de dezembro de 2014

Mais um retorno de Natal

     E  de  repente  vim  para  o  Brasil.  Cheguei já às vésperas do Natal e tive de viajar diretamente para Minas, devendo encontrá-lo somente em janeiro, já depois do Dia de Ano Novo. Tenho sempre um sentimento profundo toda vez que retorno, não importa quantas vezes isso tenha acontecido nos últimos anos. Onde quer que eu tenha estado, o Brasil está comigo, e voltar é também um reencontro comigo mesmo, com minha formação, meu presente e meus projetos.
     Após  uma  súbita  mudança  de  planos  para o fim do ano, chego à casa de minha mãe e, ao descarregar duas grandes malas - em boa parte cheia de livros - no quarto que ainda tenho por aqui, vejo no porta-retratos sobre a cômoda uma imagem em que você me dá um beijo. Estou feliz ante a perspectiva de reencontrá-lo em breve e tenho algumas surpresas do Velho Mundo para meu menino. Dentro de algumas semanas, São Paulo que nos aguarde!

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Correndo na amplidão
















     Olhando  esta  fotografia  hoje,  tirada da janela de um ônibus em viagem pela zona rural do Marrocos, há pouco mais de um mês, me lembrei de suas temporadas na casa de minha mãe, em Divinópolis, quando íamos para os bairros novos, cujas terras haviam sido preparadas havia pouco tempo para a construção de novas moradias. Naquelas amplitudes ao ar livre, também corríamos por entre a poeira e a terra vermelha do interior de Minas, subíamos e descíamos barrancos, lutávamos sobre montes de areia, algumas vezes caminhávamos na chuva.
     De  volta  a  nossas  vidas  em  cidades  grandes, com o Oceano Atlântico de entremeio, esta é uma boa memória de sua infância e de minha experiência de pai. Gostaria neste momento de que estivéssemos novamente em Minas e na casa de minha mãe. Nossos fins de tarde seguramente teriam dessas correrias na amplidão desértica, agora com você mais rápido e mais forte. Será que me venceria em nossas disputas de 50m rasos?

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

O fim do ano

     O  ano  já  está bem perto do fim. Gostei de 2014. Estou num bom momento de minha vida e tenho tido oportunidade de fazer coisas interessantes, de descobrir novos lugares e conhecer novas pessoas. Também tem sido um ano em que, se não tenho publicado muita coisa, ao menos tenho podido ler livros muito bons. A propósito, sempre que conversamos, costumo lhe perguntar que livro está lendo. Como resposta, geralmente recebo interessantes resumos de histórias de aventura, obras com adivinhações e trava-línguas, narrativas com personagens infanto-juvenis atualmente em voga.
     Há  alguns  dias,  fui  bem  surpreendido quando você me contou que agora tem um blog e que está escrevendo regularmente uma série de recomendações culturais, esportivas e de lazer ou simplesmente contando episódios marcantes do seu dia a dia. Fiquei feliz ao ler seus pequenos textos, que possuem uma linguagem correta, bem articulada e fluente, com ideias muito coerentes. Se eu tiver um filho escritor, serei o mais orgulhoso dos pais. 
     Vi que na última entrada você tratava do título do Galo na Copa do Brasil, falando em mim, em nossa troca de mensagens e em nossa comemoração. 
     Que  em  2015  as  coisas  continuem correndo bem e que possamos estar mais próximos e nos comunicar mais.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Um coração simples


     Anteontem  estive  na  Casa  da  Ilustração,  tendo escrito aqui sobre as lembranças de nossos passeios sem rumo pelas ruas que um dos desenhos ali expostos me provocou. Agora há pouco, remexendo na estante a fim de separar alguns livros para enviar para o Brasil, encontrei este seu desenho, enviado para mim no mês passado, por ocasião de meu aniversário. Se eu elogiava a simplicidade expressiva do desenho visto no museu, tenho de elogiar a ternura da simplicidade do seu coração, em que pai e filho estão unidos para sempre. Este é também o meu coração. 

sábado, 6 de dezembro de 2014

Uma ilustração de pai e filho


     Há  em  Londres  todo  tipo  de  museu. Vivendo aqui há alguns anos e já conhecendo todas as grandes instituições, tenho agora explorado as pequenas. Algumas são muito interessantes. Hoje, por exemplo, estive na Casa da Ilustração, que possui uma excelente e muito criativa coleção de desenhos, boa parte deles feitos para livros destinados a crianças e adolescentes. 
     Esta  foi  uma  visita  que  gostaria  de  ter  feito  com você, que adoraria as ilustrações ali expostas. Esta, por exemplo, muito expressiva na simplicidade de suas linhas, me fez lembrar de nossos passeios pelas ruas de Divinópolis, São Paulo e Belo Horizonte. Geralmente andamos assim, de mãos dadas, em especial nas ruas das duas metrópoles. Como o menino do desenho, você tem essa curiosidade pelas coisas do mundo, sobre as quais sempre me faz inúmeras perguntas. E eu sempre as respondo, ainda que tenha de temperar minhas explicações com alguma fantasia.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Por que lhe escrevo

     Por  que  lhe  escrevo?  Talvez  pela  vida inteira que nos foi roubada. Talvez pela triste e enorme distância que hoje nos separa. Talvez para elaborar a raiva e a frustração que já senti, fechando definitivamente todas as feridas da alma. Talvez ainda porque a palavra escrita se mantém, e um dia, quando você for maior, poderá compreender que jamais o abandonei. 
     Hannah  Arendt,  ao  tratar  de  um  momento  em  que a humanidade havia dado livre curso à besta-fera que existe em nós e racionalmente cometido atos da maior brutalidade, escreve que só humanizamos o mundo quando ele se torna objeto de discurso. Portanto, só podemos humanizar o que está acontecendo no mundo e em nós mesmos quando falamos sobre isso. E é no processo de falar sobre isso que aprendemos a ser humanos, pois ao falar partilhamos o mundo com outras pessoas.
     Portanto  lhe  escrevo  para  partilhar  o  mundo  com você, para ser o pai possível nestas circunstâncias, para reforçar e estreitar nossos laços, que, a despeito de todas as adversidades que enfrentamos, jamais se partiram.

sábado, 29 de novembro de 2014

Acidentes e planos para o fim do ano

     Conversamos  ontem  à  noite,  e  eu  soube que você está no hospital, após um acidente na escola. Outro menino bateu a cabeça contra a região da sua boca, causando-lhe um grande corte no lábio superior. Fiquei preocupado com você e desejei estar aí. Iria visitá-lo e dar-lhe o meu abraço, animando-o.
     Infelizmente  não  nos  encontraremos  neste Natal que se aproxima, pois terei de viajar ao Oriente mais uma vez, e minhas atividades na universidade onde trabalho recomeçarão assim que eu voltar de lá. Mas estaremos juntos em abril, quando poderei passar um mês entre São Paulo e Minas Gerais.
     Estou  com  muita  saudade  de  você.  Em dezembro devo ir à Tailândia e à Índia. Serão viagens a lugares fantásticos, mas, como sempre acontece, sentirei sua falta e imaginarei o que você diria diante dos templos, das celebrações, dos tipos humanos, da comida local.

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Campeão do Brasil


     Na noite de ontem, o Galo tornou-se campeão da Copa do Brasil derrotando na finalíssima, no Mineirão, o nosso maior rival, um time azulzinho de Belo Horizonte, por 1x0, gol de Diego Tardelli. Fiquei até tarde acompanhando o primeiro tempo da partida, que começou à meia-noite no horário daqui. Valeu a pena, pois nosso gol saiu aos 47 minutos do primeiro tempo.
     Durante  todo  o  dia  de  ontem  trocamos  mensagens pelo telefone, na expectativa de o Atlético ganhar mais um título de campeão. E você me disse que iria assistir ao jogo pela televisão, em São Paulo, vestindo sua camisa do Galo.
     Fico  feliz  pelo  fato  de  o  time  que  nos  une  estar muito bem, com muitos jogadores inspiradores, vários deles com 19, 20 anos.
     Me  lembro  de  algumas  oportunidades  que  tivemos  de assistir a jogos do Galo juntos, vestindo a camisa. Quando nosso time fazia gol, nos abraçávamos e dizíamos em coro, punhos fechados: "Raça! Raça! Raça!"
     Não  pude  ficar  acordado  para  acompanhar  o  segundo tempo do jogo de ontem. Mas logo cedo, quando acordei. Corri para o computador, para verificar o resultado. Galo 1x0 e campeão. A primeira coisa que fiz foi enviar uma mensagem para o seu telefone: "Raça! Raça! Raça!".

domingo, 23 de novembro de 2014

Retratos num domingo de chuva


     Logo antes do fim de semana, trouxe para casa um livro que mantinha em meu escritório na universidade há algumas semanas. Trata-se de uma série de retratos de Steve McCurry, o célebre fotojornalista da revista National Geographic. Neste domingo muito chuvoso e muito frio, não saí de casa, como costuma acontecer, pois é o dia de aproveitar as muitas atrações culturais de Londres, a vitalidade de seus parques ou mesmo simplesmente perambular pelas ruas. Mas valeu a pena ficar aqui, pois as imagens de McCurry me tocaram fundo. As pessoas ali mostradas vivem em muitas partes do mundo, a maioria em regiões pobres e que enfrentaram guerras e outras calamidades nas últimas décadas, em especial no Oriente. 
     Os  muitos  tipos  de  fisionomia,  cor  de  pele, formato de rosto, conformação corporal ali expostos mostram a evidente beleza e dignidade do ser humano, a despeito das muitas referências à violência e ao sofrimento por que várias pessoas ali retratadas passaram. Três coisas me chamaram a atenção no livro: a beleza muito original dos afegãos, a elegância da África negra e as muitas crianças em situações extremamente desfavoráveis. Os olhos de alguns dos fotografados me fizeram permanecer diante de suas fotos por vários minutos, imaginando seus sentimentos no instante em que sua imagem foi capturada e também sua história de vida. Ao contrário do que a publicidade e o liberalismo contemporâneo nos dizem, há muitas formas de ser bonito e muitas alternativas para ser feliz, esse imperativo do nosso tempo. Essa amplitude dos horizontes da vida é, sem dúvida, muito enriquecedora.

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Da gagueira

     Hoje  um  aluno  do  King's  College  bateu  à  porta  de meu escritório e pediu para conversar comigo sobre o que deve fazer para conseguir realizar estudos de pós-graduação no Brasil. Logo no início da conversa, percebi que ele era gago. Aí está uma coisa curiosa: moro há três anos na Inglaterra, morei quase dois anos nos Estados Unidos e nunca tinha visto um gago falando inglês.     
     Para  Eugene  O'Neill,  deixamos  sempre  tantas coisas por dizer às pessoas próximas de nós que a gagueira acaba por se tornar nossa "eloquência nativa" num mundo em que vemos tudo como se estivéssemos envoltos por uma grossa neblina. Nelson Rodrigues, cujo pai era gago, diz em suas memórias que cresceu com a ideia de que os gagos é que estão certos, e os bem-articulados, errados. Já Noel Rosa escreveu um famoso samba sobre um gago apaixonado tentando expressar sua dor de cotovelo após ser abandonado, terminando seu trôpego desabafo com uma maldição à mulher antes querida. Aristóteles e Machado de Assis eram gagos...
     Não  sei  por  que  entrei  hoje  no  tema da gagueira. Talvez porque, como O'Neill, eu tenha pensado em tantas coisas não ditas entre nós, em virtude da separação e da distância. Talvez porque estes fragmentos não passem de um gaguejar em meio à névoa que nos encobre neste mundo tão louco, tão injusto e muitas vezes tão imprevisível, tão difícil de ser expresso na linguagem humana, que é tão precária e tão incapaz de capturá-lo.

sábado, 15 de novembro de 2014

Futebol menino


     Fui  hoje  cortar  o  cabelo  na  região do Wandsworth Common, onde morei por um breve período em meados do ano passado. Ao cruzar o parque na manhã fria de outono, vi que vários grupos de meninos mais ou menos de sua idade se preparavam para jogar futebol. Naquele momento, pensei em duas coisas. Em primeiro lugar, imaginei que se você estivesse ali ficaria animado e muito falante. E jogaria muito melhor que os inglesinhos, especialistas em chutões e correrias. Sei o quanto você tem boa técnica e habilidade com a bola. Faria grandes jogadas e muitos gols, e eu ficaria orgulhoso de você. 
     Mas  ao  passar  por aquele  gramado tão bem cuidado, pelos campos com traves e marcações, técnicos e todo um suporte de instrutores, muitas bolas de primeira categoria, meninos já equipados como jogadores profissionais, pensei em minha própria infância e em como comecei a jogar futebol no campinho de terra vermelha do bairro São Sebastião, em Divinópolis (que nem sei se ainda existe), quase sempre descalço, com péssimas bolas de borracha, solto e sem instrução de técnico, exposto a bate-bocas e brigas relativamente frequentes. Somente um pouco mais tarde entrei para um clube, ainda precário, onde passei a disputar campeonatos e a sonhar em ser jogador profissional.
     Você  faz  parte  de  outro  tempo,  de  outra realidade cultural e mesmo espacial, possui muito melhores condições materiais do que eu tinha na sua idade. Me alegro que as coisas sejam assim. Mas é sempre uma felicidade quando vejo nossas muitas fotos juntos, com você ainda bem pequeno, no campinho da Sidil, perto de onde minha mãe possuiu uma casa há alguns anos. Ali você de fato começou a jogar, e eu fui seu instrutor nos fundamentos básicos do jogo. 
     Por causa das circunstâncias da vida, atualmente só o encontro duas vezes por ano, quando vou ao Brasil. É sempre uma felicidade levá-lo para o campus da USP, onde passamos algumas horas jogando juntos. É como se isso nos resgatasse da saudade e da vida que estamos perdendo neste distanciamento forçado.

terça-feira, 11 de novembro de 2014

A praça é do povo em Marrakech


     Estou passando alguns dias no Marrocos. É a primeira vez que venho à África. Hoje caminhei bastante pelas ruazinhas estreitas da parte antiga de Marrakech, um verdadeiro labirinto onde me perdi várias vezes. Até que cheguei à praça Djmeaa El-Fna, que é um lugar muito peculiar onde se aglomera, o dia todo, uma variada multidão. Além dos visitantes, há vendedores de toda sorte de comida local, encantadores de serpentes, músicos berberes, artistas de rua, contadores de história, macacos amestrados, pequenas encenações teatrais, comerciantes de bugigangas, mendigos, crianças trabalhando, cães e gatos vagabundos, camelos e toda uma ambientação muito vívida. Se uma girafa me aparecesse caminhando tranquilamente por ali, não me surpreenderia. É como se a gente voltasse a uma praça da Idade Média.
     Tenho  acordado  sempre  muito  cedo por causa de um canto de louvor a Allah e um chamado aos muçulmanos para as primeiras orações do dia. Todas as mesquitas realizam o chamado em uníssono através de um sistema de alto-falante.
     Às vezes até chegam conversando comigo em árabe, pois me pareço com eles. Ainda mais pelo fato de eu estar usando um roupão típico daqui. Gosto desse burburinho de pessoas que se encontram e de uma cultura não massificada nem padronizada pelo modo de vida americano. As cores, os sabores, os sons, os cheiros, a paisagem, tudo remete a algo original e a uma cultura muito forte. É um país pobre, com graves problemas sociais. Me toca especialmente quando vejo crianças e velhos muito desamparados. Mas é um cultura autêntica, um povo digno e orgulhoso do que é e do que possui.
     Ontem tomei um ônibus e fiz uma viagem de quase três horas até a cidade litorânea de Essaouira. No caminho, fui vendo a paisagem árida e as pequenas fazendas muito esparsas pelo caminho, com vários pequenos pastores de rebanhos de cabras e carneiros. Em Essaouira também encontrei toda uma agitação de pessoas se encontrando, conversando, trocando experiências e lutando pela vida. 
     Se você estivesse aqui, iríamos nos perder no labirinto da cidade velha de Marrakech, experimentar a comida dos árabes, caminhar pela zona portuária de Essaouira, ver os encantadores de serpente em suas peripécias com najas e cascavéis, contemplar as cordas, os sopros e as percussões da música berbere. 
     Há  alguns  dias  você  me  contou  que sua nota em Geografia, na escola, foi 96, realmente um feito impressionante que me deixou muito orgulhoso. Só falta agora completar suas lições com perambulação pelas belezas e misérias deste mundo, vivenciando a Geografia para além das páginas dos livros, o que é uma experiência ainda mais profunda.

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Ruídos

     Em  seu  livro  Parerga  e  Paralipomena,  Schopenhauer escreve todo um capítulo sobre os ruídos. Segundo o filósofo alemão, o ouvido possui uma natureza passiva, recebendo, na maioria das vezes, sons que não escolhemos e que não queremos ouvir. Estes, para ele, eram profundamente irritantes. Contudo, sendo um homem muito sensível à música, considerava que ela é capaz de provocar um efeito tão imediato, inefável e penetrante em nosso espírito que chega a resultar inclusive na elevação de nosso ânimo. Assim, essa forma de arte seria, para ele, superior às outras, pois, enquanto estas apenas reproduzem sombras, a música daria expressão a essências.
     No  entanto,  a  condição  passiva  do  ouvido  possuiria também um lado muito negativo. A seu ver, isso ocorreria, por exemplo, quando nossa capacidade de pensar está em ação e sofre uma interrupção por parte de um som inesperado. Isso causaria um enorme transtorno, já que todo o encadeamento de nossas ideias seria rompido pelo ruído intruso e impertinente, e nosso pensamento ficaria paralisado. Schopenhauer abominava tanto esses barulhos que chegou a escrever que "a quantidade de ruído que uma pessoa é capaz de suportar sem se incomodar é inversamente proporcional a sua capacidade intelectual e pode ser considerada como uma medida aproximada de suas faculdades mentais".
     Me  lembrei  desse  texto  hoje,  no  fim  da tarde, quando me exercitava correndo pelas margens do rio Tâmisa e passava junto a um heliporto que fica em Battersea, o bairro onde moro. De imediato devo dizer que detesto helicópteros justamente pelo ruído insuportável que emitem. Chego a evitar passar por perto daquele heliporto em alguns horários de mais movimento de pousos e decolagens. Me recordo também de que em São Paulo, morando no Butantã, nas proximidades da Marginal Pinheiros, o barulho dos helicópteros de emissoras de rádio e televisão, especialmente no início da manhã e no fim da tarde, era realmente uma tortura. E o excesso de ruído emitido por todo lado na cidade talvez explicasse porque eu costumava me sentir frequentemente exasperado na Pauliceia.
     Nunca  tolerei,  desde  a  adolescência, os clubes noturnos onde a juventude se reúne para ter seus ouvidos estuprados, geralmente por uma música de péssima qualidade. Nesses lugares, não se pode sequer conversar, pois ninguém ouve ninguém e há de se gritar muito alto para tentar se fazer ouvir. Certamente Schopenhauer tem razão quanto à capacidade intelectual dos que não se incomodam nessa situação infernal.
     Neste  momento  mesmo,  enquanto  escrevo, o fluxo de meus pensamentos é interrompido por explosões de fogos de artifício na minha vizinhança, não sei a propósito de quê. Há já umas três horas que tais ruídos assediam esta região a cada cinco minutos. Haja paciência!
     Sei  que  você  é  um  menino  calmo  e  educado,  muito ligado à leitura e à música, possuindo boa familiaridade com o violão. Espero que continue nessa trilha e que o silêncio, as lentas mas profundas conquistas, a capacidade de concentração sejam qualidades que venha a cultivar por toda a vida.

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

O outono e a instabilidade


     Estamos no auge do outono no hemisfério norte. O tempo está instável, com dias amenos e dias muito frios, dias de sol e dias de chuva praticamente sem transição de uns para os outros. As folhas das árvores estão assumindo vários tons de amarelo e vermelho, sendo que muitas já começam a cair. Os dias estão escurecendo mais cedo, e tudo é preparação para a chegada do inverno.
     Neste momento, já desejo a chegada da segunda semana de dezembro, quando ficarei longe do frio por um mês. Mas infelizmente é provável que eu não possa ir ao Brasil, tendo de partir para a Ásia por algumas semanas. Assim, terei de reencontrá-lo somente alguns meses mais tarde, em abril. Em meados de janeiro estarei de volta a Londres, já em pleno inverno, para enfrentar mais uma vez o frio terrível que faz aqui. 
     Tenho sentido a sua falta, especialmente porque não temos tido contatos muito frequentes. Sei que você está bem, mas eu seria mais feliz se pudéssemos ao menos conversar um pouco uma vez por semana. Contudo, bola pra frente e vamos enfrentar honestamente os desafios que a vida nos propuser.

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Uma cidade de todos nós


     Acabo de retornar de uma noite no Almeida Theatre, que fica na região norte de Londres, onde assisti a uma excelente montagem de Nossa Cidade, de Thornton Wilder, uma de minhas peças favoritas. Já assisti a muitas encenações do texto de Wilder, no Brasil, nos Estados Unidos e agora na Inglaterra. Gosto de verificar que soluções cênicas foram encontradas pelo diretor e pelos atores. Mas vou ao teatro especialmente pela excelência e pela poesia profunda do texto. E sempre saio com lágrimas nos olhos e uma sensação de que sou uma pessoa diferente depois de assistir a essa peça.
     A história se passa entre 1901 e 1913, numa cidadezinha localizada no nordeste dos Estados Unidos. Apresentando um microcosmo do ciclo da vida de todos nós, o texto enfatiza o que há de essencial na existência humana, mostrando que mesmo nos acontecimentos mais cotidianos há algo de eterno e muito precioso que, no engajamento diário em nossos afazeres, não percebemos.
     Alguns diretores costumam conceber Nossa Cidade de maneira romântica e sentimental. De minha parte, porém, vejo nela uma peça trágica na medida em que lida com uma compreensão da condição do homem em sua jornada na Terra num nível mais profundo. A peça inclusive termina com o personagem George chorando, desconsolado, sobre o túmulo de sua esposa Emily, o que um crítico apontou ser "o lamento mais universal de todos, decorrente do fato de que nós, as pessoas que amamos, todos os seres vivos morrem". Mas há algo de eterno em cada um de nós, algo maior que nos liga a toda a humanidade e que nos proporciona um sentido para a vida. É disso que o texto trata.
     Um dia gostaria de assistir a Nossa Cidade a seu lado. Os personagens, os lugares e os acontecimentos da peça encontrarão identificação com muitas coisas que você viu e viveu em suas temporadas no interior de Minas. O que se mostra nessa obra é uma cidade universal, que pertence a todos os países, a todas as culturas.

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Bárbaros excluídos e bárbaros excludentes

     Conversamos brevemente ontem pela internet, e você me contou que teve de abandonar sua escolinha de futebol porque nela estão ocorrendo arrastões por parte de criminosos que vivem nas redondezas. Apesar de estar muito consciente do gritante fracasso da segurança pública no Brasil, em todos os níveis de governo, minha reação foi de perplexidade. Como pai vivendo não apenas separado de você mas também num outro canto do mundo, fico muito preocupado, pois não tenho muitas condições de protegê-lo dos perigos de uma cidade como São Paulo.
    Os ataques desses bárbaros não surpreendem, no entanto. Fazem naturalmente parte de um sistema segregador e excludente que foi sendo construído por nossas elites econômicas e que hoje é imitado pelas classes médias, de onde saem seus ideólogos, hoje estrelas do jornalismo, da publicidade e até da universidade. Não tenho dúvida de que este extrato arrumadinho de nossa sociedade é ainda mais bárbaro que o daqueles outsiders que fazem arrastões nas praças de esporte da zona sudoeste da Pauliceia.
     Essa polarização da nossa sociedade, que criou duas bem definidas categorias de cidadãos que nunca se comunicam e que manifestam sentimentos de estranhamento, desconfiança e medo quando se encontram, só poderia ter resultado nessa degradação do espaço público, no refúgio dos bem-postos na fortaleza e no isolamento de seus apartamentos, na ira dos excluídos, dos indesejáveis, dos desconectados. 
      Fui menino no interior de Minas no anos 1970 e tenho tido a oportunidade de viajar por muitos lugares neste mundo. Gostaria de lhe dizer que as coisas não foram sempre assim, nem são sempre assim em todos os lugares, apesar de certo sistema mundial que tende a ampliar as desigualdades entre ricos e pobres por todo lado. Por isso, esteja sempre aberto à alteridade e considere cada pessoa, por mais diferente que ela seja de você, como um ser humano que deve, por simples imperativo ético, ser tratado com dignidade e respeito. Encontre gente diferente daquelas que pertencem aos grupos sociais de que você faz parte e dialogue com elas. Não aceite a injustiça e a exclusão de ninguém, lute contra elas onde quer que venha a atuar. Somente assim poderemos um dia restaurar condições mínimas de civilização.

domingo, 26 de outubro de 2014

Do ateísmo à brasileira

     Há dias eu lhe escrevia aqui sobre os perigos da religião e invertia uma famosa frase atribuída a Dostoiévski, propugnando que se Deus existe, tudo é permitido. Lembrei disso ao abrir há pouco minha carteira e me deparar com uma oração de São Miguel, uma estampa de Santa Luzia e outra de Santo Expedito, além de uma medalhinha de Nossa Senhora e outra com o rosto de Cristo, tudo obra de minha mãe. Se essas coisas realmente nos protegem, definitivamente posso ficar tranquilo. Nenhum mal me atingirá. 
     Não tenho fé e estou certo de que, se Deus existe, trata-se no mínimo um omisso. Ou de um criador que nos abandonou completamente à própria sorte e à mercê dos tiranos e aproveitadores deste mundo. No entanto, essas figuras sagradas de um catolicismo popular e folk que habitam minha carteira são algo muito brasileiro que me conecta com minha origem, com minha cultura e com a gente pobre mas digna de que descendo e à qual estarei eternamente ligado. Portanto carrego-as comigo por elas possuírem esse significado profundo. Do mesmo modo, sinto-me bem quando, vivendo sozinho do outro lado do Atlântico, minha mãe me conta ao telefone que está rezando por mim. Aquilo realmente me protege e me engrandece, porém muito mais pela força de meu vínculo com minha mãe que pelos poderes das orações e dos santos que ela evoca.
    Escrevendo isso, me recordo agora de um poema de Drummond em que ele diz algo mais ou menos assim: "Os ateus brasileiros levam sempre uma santinha no bolso/ Nossos comunas, quando morrem, a família reza a missa de sétimo dia e de trigésimo". É verdade, e isso revela mais uma vez nossa flexibilidade e nossa abertura de espírito.

domingo, 19 de outubro de 2014

Necrópole


     Não muito longe de minha casa, do outro lado do rio, fica o Cemitério de Brompton, que também funciona como uma espécie de parque, pois as pessoas também vão lá para correr, andar de bicicleta, ler ou simplesmente passar o tempo. Os esquilos e pássaros que vivem entre às árvores e os túmulos adicionam vida a esse local dedicado aos mortos.
     Passei por lá nesta tarde e neste domingo de outono. Andei por algumas ruas e li vários epitáfios. A julgar por eles, todos ali enterrados foram uns anjos em vida. Nenhum canalha, nenhum egoísta, nenhum mentiroso, explorador dos outros, ladrão, tirano ou simplesmente chato, tal como abundam no mundo dos vivos.
     Ao passar perto da capela onde se velam os mortos, vi algo muito estranho para nossos padrões culturais. Num carro fúnebre, rodeado pelos parentes e amigos do morto, havia um caixão fechado, muito colorido e totalmente estampado com uma profusão de pequenas flores. Achei-o um tanto kitsch e nada funéreo. 
     Passeando pela iconografia convencional daquela cidade dos mortos, com seus crucifixos, anjos, uma ou outra estrela de Davi, mãos que apontam para o céu, fiés prostrados aos pés de santos, pensei na vida, com seus descaminhos. Há vários anos estou longe de você, sendo que há três estou vivendo longe do Brasil. Às vezes sinto que tenho perdido muito e que nada das coisas boas que estou vivendo aqui valem a pena de fato. Outras vezes penso que foi saudável e renovador me distanciar dos problemas que tinha de enfrentar em São Paulo para simplesmente poder ser seu pai e tê-lo a meu lado. 
   Hoje a vida vai passando, e você está crescendo. Costumamos nos encontrar duas vezes por ano, não por muito tempo. A morte é uma permanente perspectiva para todos nós, e nosso tempo se conta regressivamente. Ao pensar nisso, fico triste, mas ao mesmo tempo tenho de aceitar aquilo que não posso mudar. Porém, desejo ao menos que nossos curtos momentos juntos sejam eternos, que nossos precários contatos a distância sejam felizes, que a vida que nos for possível viver juntos seja densa.

domingo, 12 de outubro de 2014

Lembranças no Dia das Crianças


     Acabo de me lembrar de que hoje é o Dia das Crianças no Brasil. Na semana passada, você me pediu que lhe enviasse algumas fotos de você quando bem pequeno. Talvez tenha tido em mente preparar alguma coisa para esta ocasião. Ao repassar essas fotos para lhe mandar, pude ver como vivemos momentos felizes ao longo dos poucos anos em que pudemos estar juntos.
  Meu pensamento viaja agora por algumas breves temporadas em que você esteve em Divinópolis, na casa de minha mãe, durante um longo tempo que tive de passar por lá após nossa experiência em Belo Horizonte. Me lembro de seus passeios sentado em meus ombros, de nossos jogos e brincadeiras no campinho de futebol nas proximidades, dos cachorros de rua que costumávamos assustar, de você dando pão aos peixes da lagoa, de minhas histórias e meu beijo antes de você dormir. Havia ainda as peças que pregávamos em meu sobrinho Vinícius quando saímos nós três pelas ruas da cidade. Ele devia ter uns 11 ou 12 anos, e você, uns três ou quatro. Gostávamos de conspirar para, quando ele estivesse distraído, sairmos correndo e nos esconder em algum canto de rua, de onde ficávamos observando-o. Achando-se perdido e sem saber retornar para casa sozinho, ele ficava desesperado, enquanto nós dois ríamos em nosso esconderijo. Me recordo até de algumas vezes em que você mesmo me propôs, falando-me ao ouvido: "Vamos fazer covardia com o Vinícius!". 
    Alguma coisa inexplicável faz com que crianças e cachorros sempre gostem de mim imediatamente. E eu deles, com quem tenho tido relacionamentos de muita confiança e muito aprendizado. Em nosso caso, foi uma felicidade brincar com você naqueles momentos, levando a vida com alegria e alumbramento. Que você preserve esse espírito ao longo de sua jornada, mesmo quando chegar o momento de ser sério e produtivo.

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Entre a saudade e a indignação

     De vez em quando sou acometido por uma forte saudade do Brasil e das nossas coisas. Tenho consciência de nossos problemas e da oligarquia bastarda que controla o país, mas é difícil viver tanto tempo longe da vibração, das cores, dos cheiros, dos sons e dos sabores brasileiros. Outro dia, provando um improvisado pão de queijo em Londres, comentei que aquilo era a madeleine que me reconduzia a meu tempo perdido, à maneira de Proust. Mas muito especialmente sinto falta das pessoas, de nossos abraços, de nosso senso de humor, de nossos apelidos e nossos diminutivos. Talvez a chegada do frio e o ataque de um forte resfriado que peguei por aqui na semana passada intensifiquem a falta que o Brasil me faz neste momento. 
     Aliás, talvez este nem seja o momento ideal para se estar no Brasil, com o processo eleitoral para a presidência da República entrando na reta final e a baixaria sem freios dos políticos. Sem falar na baixaria ainda maior dos jornalistas engajados nas campanhas. E o fardo de ter de tolerar esse nauseabundo Aécio Neves, um cretino juramentado que está no segundo turno em grande parte devido aos votos de São Paulo e de regiões ultrarreacionárias como o Triângulo Mineiro e estados do centro do país. Esse personagem representa o que há de mais retrógrado em Minas e o que há de mais miserável na política brasileira. Que alguém dessa laia tenha chegado ao segundo turno das eleições para a presidência é um sinal evidente de nossa pobreza institucional. Aguardemos ao menos que os votos decisivos do segundo turno tenham um mínimo de lucidez.

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Abolir o grande outro

     É muito citada uma frase atribuída a Dostoiévski, mas que nunca aparece literalmente em sua obra: "Se Deus não existe, tudo é permitido". Em geral, são pessoas que nunca leram o grande escritor russo que a mencionam como uma apologia da fé e como a essência da possibilidade de realizarmos um mínimo de civilização.
     Há alguns anos perdi completamente a fé, se é que algum dia tive alguma. Diante da monumental quantidade de estupidez, alienação, violência, exploração e loucura que há milênios se têm praticado em nome de Deus, me parece que a conclusão óbvia é justamente que se Deus existe, tudo é permitido. Por isso, tenho horror às religiões, em especial na sua forma institucionalizada. Como escreveu Mencken a respeito de uma das versões do cristianismo institucionalizado, o protestantismo, sua maior contribuição à humanidade foi uma prova definitiva de que Deus é um chato.
     Talvez eu esteja escrevendo isso para lhe dizer que tome cuidado com essa praga. Tenha a coragem de ser você mesmo e jamais fazer parte de qualquer forma de rebanho, ainda que isso possa significar algum isolamento temporário. Do mesmo modo, esteja atento a essa forma de religião sem Deus comumente praticada por ateus que substituem o grande outro pelo poder da humanidade, da ciência, de um sistema político redentor, de alguma substância, do líder infalível ou do guru intelectual. É preciso aprender a viver sem esse tremendo fardo sobre nossas costas. 

sábado, 4 de outubro de 2014

Um tigre no inconsciente

     Não sei até que ponto aquilo que lemos, vemos ou sentimos no decorrer de um dia influencia nossos sonhos. Mas o fato é que tive um estranho pesadelo na noite passada.
     Ontem, quando ia para o trabalho de metrô, li num jornal uma notícia sobre um indiano que pulou na área onde fica um tigre, num zoológico de seu país. Como era de se esperar, o animal o atacou e o matou. Havia até uma foto angustiante da fera se aproximando e do rapaz se encolhendo contra um muro. Os tabloides ingleses, em seu sensacionalismo barato, não se caracterizam por muita sutileza nessas coisas.
     Mas vamos ao sonho. Nele eu e você estávamos numa região desértica. Escurecia. Parece que tentávamos encontrar o caminho de volta para um lugar seguro. Em certo momento, vimos ao longe uma alcateia formada por quatro ou cinco lobos e nos escondemos. Eu buscava protegê-lo dos perigos da noite e de um lugar tão inóspito. Até, ao sairmos do esconderijo, vimos que um tigre enorme corria em nossa direção. Sem mais tempo de fuga, peguei um pedaço de pau e disse a você que fugisse e se escondesse. Acordei quando partia para o duelo desigual com besta, com o fim de ao menos desviar-lhe a atenção de você.
     O que algo assim significará? Por que carregamos em nosso inconsciente esse mundo desconhecido e às vezes tão assustador?

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Uma carta de Kafka em Praga


     Acabo de chegar de Praga, uma cidade de impressionante beleza, muito bem cuidada por seus moradores, com prédios, pontes e monumentos muito bem conservados e muito bem harmonizados na paisagem. Esse é um lugar aonde gostaria de retornar com você um dia.
   Talvez o momento mais marcante desta estadia na República Tcheca tenha sido o encontro com uma carta. Já a mencionei algumas vezes por aqui. Trata-se de uma longuíssima correspondência, com 103 páginas manuscritas, que Franz Kafka escreveu a seu pai entre os dias 10 e 19 de novembro de 1919, quanto tinha 36 anos, motivado pela reação fria dele ao anúncio de seu noivado com Julie Wohryzek. Em sua missiva, o grande escritor denuncia o autoritarismo de seu progenitor, o comerciante Hermann Kafka, expondo uma profunda mágoa contra quem ele se refere como "tirano", "regente", "rei" e "Deus". Para Kafka, a opressão paterna teria arruinado sua autoestima e feito com que ele desenvolvesse uma personalidade frágil e derrotista. Mas o escritor também faz um mea-culpa, apontando seu próprio retraimento e sua falta de iniciativa como fatores que contribuíram para a manutenção do abismo que se abriu entre pai e filho.
   Max Brod, o amigo que salvou a obra de Kafka do esquecimento, conta que ele entregou a carta a sua mãe, para que ela a repassasse a seu pai. No entanto, ela nunca a entregou ao marido, retornando-a para o filho alguns dias depois.
     Li esse texto há vários anos, sendo tocado de modo muito intenso. Desde então, volto a ele de vez em quando. Não tive uma boa relação com meu pai, que foi sempre um homem muito distante, muito egoísta e muito estranho. Se ainda estivesse vivo e eu lhe escrevesse uma carta, ela teria por certo passagens semelhantes à de Kafka. Por isso, estar diante do manuscrito do escritor tcheco no museu a ele dedicado foi para mim algo muito significativo. 
   Sendo agora pai eu mesmo, gostaria de construir uma vida e um relacionamento muito diferentes com meu filho. Apesar de hoje vivermos em dois lados opostos do Atlântico, quero contribuir para que você tenha uma boa autoestima e confiança em si mesmo. Que eu possa protegê-lo dos males do mundo e expressar meu amor também na forma de abraços e de um diálogo em que troquemos experiências, visões de mundo e muitas histórias. E quando um dia você me escrever uma carta, que ela fale com carinho das coisas que vivenciamos juntos, ainda que tenhamos tido pouco tempo para isso, em virtude dos rumos que minha vida vem tomando.

sábado, 20 de setembro de 2014

Uma noite com Joan Baez

     Acabo de retornar de um show de Joan Baez. Já passei muitas horas escutando suas canções. Nesta semana mesmo fui correr ouvindo-a no telefone celular. Ela está hoje com 73 anos, a mesma idade de minha mãe. Além de admirá-la como grande artista, gosto da coerência de seus posicionamentos políticos, que em grande medida coincidem com os meus. A cantora norte-americana é uma pessoa de destaque que participou de contestações políticas durante os tão idealizados anos 1960 e que não se tornou reacionária entre os anos 80 e 90, como muitos de sua geração. Não bastasse a admiração por ela como artista, ainda acho-a uma mulher muito bonita.
     Baez não possui mais a energia da juventude. Canta sentada a maior parte do tempo e tem de trocar o violão a cada nova canção, pois aparentemente o suporte do instrumento lhe pesa sobre os ombros. Mas continua tendo uma voz poderosa, e seu canto é arrebatador. Com pleno domínio do que faz, ela interpretou grandes canções, como "Diamonds and rust", "Gracias a la vida", "Imagine" e "Forever young". No final o público se pôs de pé para uma grande ovação, o que é muito raro entre o público britânico, que é excessivamente comedido.
     Durante o show, me chamou a atenção um dos músicos que acompanham a cantora. Só me lembro de seu primeiro nome: Dirk. É um jovem multi-instrumentista que passou pelo violão, o banjo, o violino, o piano, o contrabaixo, o acordeom e a percussão, tocando todos com maestria. Pensei que você, que vem tendo seus primeiros contatos com o violão e já sabe tocar algumas músicas, gostaria de vê-lo. E eu gostaria de ter meu menino ao meu lado num momento como esse.

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Um cartão do Dia dos Pais


     Cheguei ontem à noite da Escandinávia e me esqueci de verificar o que havia para mim na caixa de correio. Hoje pela manhã, no entanto, passei por lá e tive uma surpresa dessas que fazem os olhos não resistirem às lágrimas. Entre dois livros que comprei à distância e outras duas correspondências, havia o seu cartão do Dia dos Pais, que recebi com um mês de atraso. Aí está ele, pleno de sua ternura e sua pureza. Foi um momento da eternidade quando li suas palavras tão simples mas tão essenciais. Vou guardá-lo comigo para sempre. Como já lhe disse várias vezes, jamais o abandonei. Tenho tido várias confirmações de que você também nunca me abandonou. Que esse amor, esse respeito e essa alegria possam nos acompanhar ao longo da vida.

domingo, 14 de setembro de 2014

Um encontro com Kierkegaard em Copenhague


     Acabo de retornar da Dinamarca, que foi a última etapa de minha estadia de duas semanas na Escandinávia. Gostei muito de lá, pois, dos três países, é o que ainda preserva um ligeiro caos virtuoso, muita vida nas ruas e muita socialização. Alguém já havia me dito que os dinamarqueses são os latinos da Escandinávia. Talvez seja verdade, pois são realmente um pouco mais informais e mais expansivos. 
     Há dois dias, eu passava pela região próxima do porto, quando me deparei com uma praça Søren Kierkegaard. Imediatamente fui transportado pelas leituras de algumas obras do filósofo dinamarquês que me marcaram muito em certa etapa de minha vida, tais como Temor e Tremor, O Conceito de Angústia, As Obras do Amor e O Desespero Humano.
     Nesta semana, lhe mandei um cartão postal de Copenhague, escrevendo que espero que esteja indo bem na escola e que esteja lendo bons livros. Quando retornar ao Brasil, provavelmente dentro de seis ou sete meses, gostaria de conversar com você sobre isso.

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Num subúrbio da Noruega


     Estou  agora  na  Noruega.  Me  lembro  de  um interessantíssimo  capítulo das memórias de Nelson Rodrigues em que nosso grande dramaturgo, a propósito de uma viagem de seu amigo Otto Lara Resende à Escandinávia, compara o norueguês ao brasileiro, concluindo exagerada e euclidianamente que "o norueguês é um bobo". Isso porque, a seu ver, todos os noruegueses se parecem em sua frieza e em sua formalidade, e o excesso de desenvolvimento os teria desumanizado. Nós outros, com todos os nossos problemas, ainda ousamos algo diferente e original em nossa forma de ser, de se comportar, de se socializar. Tanto assim que, tão logo Otto Lara chega de volta ao Brasil, é abraçado por um desconhecido nas ruas do Rio de Janeiro com um efusivo "Otto, meu amor!". Daí a conclusão de Nelson: "O desenvolvimento não é a solução".
     Claro  que,  com  essa  história,  o  memorialista  está criticando nossos eternos paladinos do desenvolvimento como panaceia. Como estou há pouco tempo por aqui, devendo partir depois de amanhã, não tenho muitos elementos para julgar os noruegueses numa comparação conosco. Aparentemente são distantes, mas a Noruega de hoje, ao menos em Oslo, me parece bastante múltipla culturalmente, com um significativo número de imigrantes que pouco se parecem com os louros noruegueses de muitas gerações. Talvez ao menos nisso ela tenha se transformado, tornando-se muito mais interessante. 
     Andei hoje pelo subúrbio de Oslo, onde há muitas casas grandes e bonitas, além de um processo de urbanização que me parece ter sido muito bem planejado e muito bem conduzido. No entanto, não vi quase ninguém nas ruas, cujo silêncio sepulcral só era quebrado pelos passarinhos ou por um carro que passava de vez em quando. Mas não vou falar mal de um país que produziu grandes artistas como o dramaturgo Henrik Ibsen, o pintor Edvard Munch ou o compositor Edvard Grieg. 
     Gostaria de saber o que você, que vive no caos cotidiano de São Paulo, pensaria de um lugar como este.

sábado, 6 de setembro de 2014

Das crianças de Estocolmo


     Estou passando esta semana em Estocolmo, uma cidade muito bonita com suas muitas águas que contornam várias ilhas. Estou impressionado pela efervescência cultural da capital sueca e a polidez de seu povo. Seu Museu da Fotografia é o melhor do gênero que conheço.  
     Sempre que passo perto dos parques da cidade - há um bem junto do lugar onde estou hospedado -, vejo uma algazarra de crianças brincando, sempre muitas, o que já me fez comentar que o futuro da Suécia está garantido. A agitação da meninada naturalmente me faz pensar em você, que é tão sociável e tão educado. Se estivesse por aqui, seguramente participaria das brincadeiras e se entenderia com seus louros colegas de geração das proximidades do polo norte, a despeito de não falar sua língua. E partiríamos juntos numa viagem de barco ou de balão, nos aventurando em meio à beleza das construções e da natureza da cidade.

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Filho de peixe...

     Ontem  conversamos  pela  internet  através  de  um programa de comunicação instantânea, eu em Bangkok, você em São Paulo. Na noite anterior, eu havia ido jogar futebol com um grupo de europeus e americanos que vivem na Tailândia, como tenho feito nestas semanas que estou passando aqui, neste fim de férias de verão na universidade onde trabalho, antes do começo das aulas na Europa. Tenho jogado bem e feito muitos gols, mas nesta semana acabei por fazer um golaço de bicicleta. Fiquei muito feliz, pois havia três ou quatro anos que não fazia um gol de bicicleta. Por esta façanha, você me chamou de craque brasileiro no exterior.
     Mas, quando chegou sua vez, você me contou que também fez um golaço jogando em sua escola, tendo driblado dois adversários e chutado forte no ângulo direito do goleiro. Foi a minha vez de ficar muito impressionado e de chamá-lo de craque brasileiro no Brasil. Como dizem por aí, "filho de peixe peixinho é".

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Encontros com a beleza no Camboja


     Passei os últimos quatro dias no Camboja, na cidade Siem Reap e suas imediações. Fiquei fascinado com os templos que circundam a região, a maioria deles construídos entre os séculos IX e XII d.C. Aqui está Bayon, onde grandes rostos foram esculpidos sobre pedras enormes. Quando se pensa nessa época de ouro da civilização khmer, é ainda mais chocante ver a situação do Camboja atual, país que recentemente sofreu muito numa guerra brutal contra o imperialismo americano e que posteriormente foi assolado por décadas de tirania de cunho maoísta. Ainda se pode ver um número significativo de pessoas que ficaram cegas ou perderam pernas e braços em explosões de minas, essa arma abominável que governos criminosos ainda utilizam em seus conflitos militares. 
     Hoje a maioria avassaladora da população do Camboja é miserável. No entanto, como a maior das misérias é a espiritual, pude encontrar um povo que mantém sua dignidade e preserva uma inocência que nós, ocidentais, já perdemos há muito tempo. Isso se percebe no trato das pessoas e, em especial, no jeito das muitas crianças que andam pelas ruas e sítios arqueológicos do país.
     Em Siem Reap estive diante de coisas lindíssimas. Ontem mesmo, no fim da tarde, pude contemplar um pôr de sol de folhinha no topo do templo Pre Rup. Por mais ou menos uma hora, ao longe, o céu assumiu um vasto amarelo avermelhado em torno do sol. Se você estivesse aqui comigo, na certa comentaria sobre a beleza da cena e me faria perguntas sobre as idiossincrasias dos astros. Mas no fim, por longo tempo, apenas viveríamos a poesia viva e gratuita da natureza diante dos nossos olhos.

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

O que nos une

     Nesta longa temporada longe de casa, sempre penso em você e quero saber como está e o que tem feito. De minha parte, sigo com meu trabalho, minhas leituras e meus escritos, o futebol uma vez por semana, a vida que prossegue dentro da "normalidade" possível. Costumo receber por e-mail alguns comunicados de sua escola, com informes sobre procedimentos em relação aos alunos e convocatórias para reuniões de pais. Nunca pude estar presente a uma delas, primeiramente pelos conflitos que tinha de enfrentar no Brasil e depois simplesmente pela enorme distância de nosso país após minha decisão de emigrar para viver e trabalhar no Reino Unido, afastando-me por alguns anos de indignidades e misérias com as quais era obrigado a conviver. Hoje vejo que, apesar do risco de perdê-lo, foi uma decisão acertada. Eu precisava me reconstruir em outro lugar, e, durante estes anos que já correm apressados, nunca nos afastamos. 
     Nos muitos lugares por onde tenho passado, sua voz, sua inocência e sua ternura me acompanham. Sempre lhe envio cartões postais de países diversos, com paisagens diversas, escrevendo-lhe brevemente sobre o meu estado de espírito no momento. Coloco-os no correio para você como um lembrete de que continuo sendo seu pai e que isso jamais nos poderá ser tirado. O sentido de passado, presente e futuro que isso implica, bem como a força de ancestralidade e continuidade que nos une, nos tornam mais humanos e justificam nosso engajamento nos afazeres do dia a dia.

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Um homem


     "Póngase sereno y apunte bien: va usted a matar a un hombre". Conforme o verdugo que matou Che Guevara, esta foi a última frase dita por ele no dia 9 de outubro de 1967, quando o grande herói latino-americano foi executado por fantoches bolivianos a serviço da Central de Inteligência dos Estados Unidos. Sim, naquele dia mataram realmente um homem de verdade, alguém que talvez não tivesse espaço e não fosse ouvido num tempo como o nosso, em que o pensamento único triunfou no jornalismo, no debate público e, em vasta medida, na própria universidade. Naquele dia mataram um homem que nunca aceitou a injustiça e a opressão dos ricos sobre os pobres nem a injustiça da ordem política e econômica mundial, envolvendo-se pessoalmente em guerras na América e na África, no então chamado Terceiro Mundo. Um homem que foi grande e digno até mesmo nos muitos erros que cometeu. Seu verdugo recorda ter ficado muito nervoso, tonto e hesitante diante de "um Che grande, muito grande, enorme".
     Acabo de ouvir um discurso que Che Guevara fez na Assembleia Geral das Nações Unidas em 1964. Com extraordinária eloquência, ele critica a potência imperialista do norte e seus lacaios que infestam o poder na América Latina, defendendo a liberdade dos povos e seu direito à autodeterminação. Algum tempo depois ele sairia pelo Congo e pela Bolívia - de forma um tanto quixotesca - tentando exportar a Revolução. Acabaria sendo capturado e assassinado miseravelmente em La Higuera, povoado às margens da selva boliviana. Quase de imediato o Che se tornou um dos maiores mitos do século XX e uma força inspiradora para os que lutam por liberdade e justiça. Mas ironicamente sua imagem foi canibalizada pelo mercado, que o transformou num ícone pop, presente numa infinidade de produtos de toda sorte, muitas vezes consumidos por gente que não tem ideia do que ele representa. 
     De minha parte, sempre quis ter feito algo grande na vida, que ainda está aí aberta, vasta e plena de possibilidades. A força inspiradora de Che Guevara será para sempre uma referência no mínimo para uma existência que recuse a futilidade e o vazio de nossa época. Que você possa crescer com uma clara consciência da injustiça e da violência que nos cercam e à qual todos nós estamos submetidos, ainda mais num país como o Brasil, que jamais as aceite nem seja conivente com elas. E que seja íntegro, apaixonado e generoso onde quer que venha a atuar. Essa é a verdadeira homenagem que podemos prestar a um homem como Che Guevara, que, em realidade, nunca morreu. Segue vivíssimo em cada um que deseja uma realidade melhor que esta que aí está.

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Uma carta

     Ontem à noite trocamos mensagens por telefone, e você me pediu a confirmação de meu endereço, pois pretende me escrever uma carta. Será um grande prazer receber uma correspondência sua, e ficarei esperando por ela com ansiedade. Contudo, como nunca me escreveu assim antes, fiquei com certa preocupação em relação ao que você tem a me dizer, pois pode estar enfrentando percalços ou problemas sérios. Espero que as coisas estejam bem e que sua carta venha a me contar sobre sua evolução, sobre o que tem feito, sobre o que tem sentido.
     De minha parte, estou bem. Passo por um período de longas viagens pelo mundo, estando agora na Tailândia e devendo visitar o Camboja, a Suécia, a Noruega e a Dinamarca até meados de setembro, quando começam as minhas aulas em Londres e devo me manter por lá por alguns meses. Tais viagens têm me proporcionado alguns encontros maravilhosos com a alteridade, com a história, a cultura e as artes de outros povos e outras civilizações, com outras formas de organizar a vida. Após alguns anos de muito sofrimento e falta de perspectivas, logo após nossa separação, tenho sido afortunado por poder desenvolver uma atividade que envolve essa liberdade de ação e esse internacionalismo. Tenho sido uma pessoa mais flexível e de mentalidade mais ampla por causa dessas experiências. Mas sempre sinto falta de você ao meu lado. Um dia o trarei para ver comigo o que de melhor tenho visto e vivido em diferentes recantos deste mundo. Então estas experiências estarão completas.

domingo, 3 de agosto de 2014

Da vastidão da vida


    Num período de duas semanas estive no Brasil, na Inglaterra e agora estou na Tailândia, ou seja, em doze dias estive em três continentes: América, Europa e Ásia. Estou um pouco cansado, com sono e fome bastante fora de hora apropriada. 
    Quando vinha no avião, voando por cima de nuvens carregadas sobre o céu asiático, olhei pela janela e vi esta formação dramática composta por água em forma de vapor. A imagem capturou meu olhar por longo tempo, em virtude de sua grandeza e seu mistério.
     Já retornei ao trabalho e vou preparando as coisas para o ano acadêmico europeu, que se inicia em setembro. Tenho pensado muito em meu menino. Desejo que você também retorne a suas aulas com alegria e sede de conhecimento. Sempre lhe pergunto como vão as coisas na escola e tento acompanhá-lo para que seja um aluno responsável. Sei que está indo bem, mas gostaria de poder ter um papel mais ativo e mais próximo em sua educação, sugerindo leituras e lendo com você, fazendo seus deveres com você, discutindo coisas relacionadas a seus estudos. Mas a vida nos separou de tal forma que jamais me acostumarei, mas sei que tenho de aceitar. Contudo, nossas possibilidades são vastas como essa amplidão de nuvens, e tudo está em constante movimento. Nada será para sempre como agora. Isso é uma lufada de esperança.

quarta-feira, 30 de julho de 2014

Um peso no meu peito

     Nestes dias de sol no verão do hemisfério norte, caminho por Londres, vejo os amplos gramados nos parques e penso em você. Sei que também está tendo as suas férias de julho no inverno paulistano, mas não sei o que está fazendo, como tem passado os seus dias, se tem lido bons livros e ampliado seus horizontes. Se estivesse comigo, teríamos muito assunto para conversar, muitas histórias para viver e para contar, muitas brincadeiras para fazer. Sua falta me pesa neste momento.

sexta-feira, 25 de julho de 2014

Nosso derramamento barroco


     Há algumas semanas, nestas férias de julho, andei pelas cidades históricas de Tiradentes, São João del Rei, Ouro Preto e Mariana, todas em Minas Gerais. Em minha adolescência e nos tempos do curso de graduação, eu visitava muito esses lugares, onde no século XVIII aconteceu o que poderíamos chamar de o nosso Renascimento. Naquela época eu ia muito a essas cidadezinhas inspiradoras para estudar a arte barroca e os acontecimentos históricos que ali se deram. Pude agora, depois de cerca de 20 anos, rever nos altares, nas paredes, nos museus de arte sacra o quanto somos um povo dramático, que vive intensamente a sua dor. Os Cristos crucificados do nosso barroco possuem sempre feridas enormes e abertas, com sangue escorrendo aos borbotões. A Virgem Maria e todas as outras mães são exibidas sempre em sacrifício absoluto por seus filhos. Os santos prediletos são os que sofreram martírios. E São Francisco, que num de seus milagres adquiriu os estigmas de Cristo, é cultuado obsessivamente. 
     Os reflexos disso são muito claros em nossa psicologia. Toda vez que telefono para minha mãe, lá vem sempre um rosário de seus infortúnios, que ela tem o prazer de me contar. Recentemente, num jogo de futebol, um colega que ficou algum tempo sem receber um passe sentiu-se como se os outros jogadores estivessem fazendo um complô contra ele. E a forma como reagimos à derrota massacrante da Seleção Brasileira na semifinal da última Copa do Mundo, quando nos sentimos uns párias, uns vira-latas, diz tudo. Isso para não falar nas cenas de melodrama a que sempre assistimos nas despedidas em nossos aeroportos.
     Para Nietzsche, essa é uma reação de covardes que pretendem dominar psicologicamente os fortes através da exibição de sua fraqueza, visando angariar piedade por parte destes, que deveriam, ao contrário, dar vazão a sua vontade de potência. Mas o próprio filósofo alemão, que era um homem de profunda sensibilidade estética, ficaria extasiado diante de uma obra do Aleijadinho. Mas isso já é outro assunto...

terça-feira, 22 de julho de 2014

Nossa linguagem afetiva


     Acabo de chegar a Londres, proveniente do Brasil, após uma longa e cansativa jornada noite adentro, passando ainda por Madrid. Na semana passada, ainda como rescaldo da Copa do Mundo, eu estava no Rio de Janeiro, tendo finalizado as férias em Paraty. Nesta última cidade passei por um lugar com esta placa: "Casa da Dindinha". Me lembro de que assim eu chamava minha avó materna, com esse termo afetuoso e cheio de ressonância da linguagem dos escravos negros. Algo tão Brasil profundo. Sempre penso nessas palavras e nessas coisas quando estou fora do país. Você mesmo me chama de "papai", o que automaticamente torna a minha paternidade muito mais carinhosa e muito mais gentil.

quarta-feira, 9 de julho de 2014

Papo de bola

     Em tempo de Copa do Mundo no Brasil, passei o último fim de semana em Belo Horizonte, cidade onde você nasceu. Os dois anos em que vivi ali não foram muito felizes, mas ao menos estivemos muito próximos ao longo de seus dois primeiros anos de vida e partilhamos juntos muitas histórias e muitas brincadeiras. Escrevo, porém, porque uma coisa que presenciei na capital de Minas me fez lembrar de algo vivido com você em São Paulo há cerca de dois anos. 
     No domingo passado, peguei um ônibus para a cidade de Brumadinho, onde fica o Inhotim, misto de museu de arte contemporânea e jardim botânico. Perto de mim, alguns rapazes, entre eles um alemão, um indonésio, um singapurense e um com aparência de árabe conversaram todo o tempo em inglês, em alto volume, sobre futebol, as melhores seleções, os melhores jogadores, os acontecimentos marcantes da Copa do Mundo. Como sou um tímido, não entrei no debate. Durante o processo, me veio à mente um dia de sábado em São Paulo, em que o busquei para passar um fim de semana comigo. No meio de uma viagem de ônibus, começamos a conversar sobre quem era o melhor jogador do mundo naquele momento. Você dizia que era Ronaldinho, jogador que estava realmente bem no Atlético, e eu defendia que ele já fora o melhor, mas que naquele momento Messi era melhor. Um rapaz que nos ouvia entrou na conversa, defendendo que o argentino era o melhor dos dois, mas, apesar de estar em minoria e contra a posição de seu pai, você reafirmou que Ronaldinho era melhor. Até que outro rapaz nas proximidades posicionou-se a seu lado. E o resto da viagem foi essa mesa redonda improvisada. Gostei de ver sua autenticidade e sua opinião própria. Que possa manter esse espírito para o resto da vida.

terça-feira, 8 de julho de 2014

Humilhados em nossa própria casa

    Nossos olhos acabaram de testemunhar algo inacreditável: na semifinal da Copa do Mundo no Brasil, perdemos vergonhosamente para a Alemanha, tomando uma goleada de 7x1. Isso é uma humilhação para todos nós que acreditamos ser os melhores do mundo quando o assunto é futebol - ainda mais numa Copa em nosso país. Contudo, a derrota faz parte da vida e sempre aprendemos muito com os grande fracassos. Tendemos sempre a valorizar em excesso nossas grandes individualidades, negligenciando a organização e a estratégia. E o que ocorreu nesta tarde foi exatamente um espetáculo de estratégia e organização em que fomos os bobos da corte. A necessidade de valorizarmos mais esses aspectos - seja no futebol, seja nos processos de nossa sociedade - é a grande lição que nos fica do vexame mundial por que passamos hoje. 
     Na tristeza que estamos sentindo, e que compartilhamos com quase toda a nação, me lembro de uma frase de teor bíblico numa crônica de Carlos Drummond de Andrade: "Bem-aventurados os que não entendem nem aspiram a entender de futebol, porque deles é o reino da tranquilidade".

sábado, 21 de junho de 2014

Alguns estabelecimentos e seus nomes


     Divinópolis é uma cidade do interior onde ainda se encontram muitas coisas típicas do Brasil profundo e bem-humorado. Algo interessante são os nomes de alguns estabelecimentos comerciais ou suas caracterizações. Perto da casa de minha mãe, por exemplo, fica o Forte Gás, com esse acento no "o" e essa pintura modernista no muro. Numa rua onde costumo correr quando estou por aqui, nas proximidades do rio Itapecerica, está o Zuiudo's Bar, com esse genitivo inglês e dois olhos enormes na decoração da casa. Quando eu vivia aqui, na adolescência, havia o Bar Sem Nome, o Bar Budo, o Bar dos Pobres e o Pingo no i. Havia ainda uma lojinha de tatuadores chamada Paranoia Tatoo, com paranoicos grafites na fachada. Uma vez, andando pela periferia da cidade, me lembro de ter visto um salão de beleza chamado Entra Feia e Sai Bonita. Nesta semana mesma passei por certo Churrasquinho Velório do Boi. E algum tempo atrás havia por estas paragens um negócio dedicado à vendia fogos de artifício chamado Bin Laden Bombas, nada politicamente correto.
     No tempo em que você vinha muito a Divinópolis e passava temporadas na casa de sua avó, costumava me pedir que eu o colocasse sentado em meus ombros para que fôssemos "ver a cidade". Muitas vezes o fizemos, passando perto de lugares assim, que tinham muito a ver com o bom humor de nossas conversas e o espírito alegre daqueles dias.

quinta-feira, 19 de junho de 2014

Suavidade na vida

     Acabo de ler um livrinho luminoso do filósofo francês contemporâneo Pascal Bruckner, que tem por título Le Marriage d’Amour a-t-il Échoué?. Como o título indica, trata-se de uma reflexão sobre os porquês de tantos casamentos fracassados hoje em dia, bem como das formas alternativas de viver a vida e se relacionar que estão sendo criadas nas últimas décadas. Ao final de sua exposição, numa passagem que pode ser lida para muito além dos impasses do casamento, Bruckner arremata: “O que é necessário inventar hoje em dia é um hedonismo não mercantil, que não dispense a surpresa, o equilíbrio, a ponderação e seja, antes de tudo, uma arte de viver com os outros, e não o gozo por si só. (...) As melhores armas nesse processo são a indulgência e a delicadeza: perdoemos nossas respectivas fraquezas, sem ferir aqueles a quem amamos. Agradeçamos a eles por existirem e nos aceitarem como somos. Chamo a isso suavidade na vida.”
     Tais palavras me caíram bem neste momento em que, após tantos anos de fúria e tantos conflitos desgastantes, estou em busca justamente de indulgência, delicadeza e suavidade. De sua parte, muitas vezes tenho escrito aqui sobre o quanto gostaria de vê-lo crescer com uma mentalidade que despreze os valores mercantis hoje em voga, inclusive o hedonismo associado à compra disso e daquilo, e a adequação aos estereótipos midiáticos desta época obscura. De nossa parte, em nossa relação de pai e filho, espero que possamos desenvolver a capacidade de aceitação de que fala o escritor francês, coisa que, de minha parte, em minha impulsividade e ênfase, ainda preciso trabalhar e amadurecer.