quinta-feira, 12 de julho de 2012

A última conversa

     Me lembro da última vez em que conversamos. Foi no fim do ano passado. Deixei com sua babá alguns presentes para você e também uma carta em que me despedia, contava-lhe da tristeza que sinto por nosso afastamento e lhe dizia que estava de partida para muito longe.
     Em seguida fui para o centro de São Paulo, onde tinha de pegar um novo passaporte. Eu estava saindo do metrô quando recebi um telefonema. Era você, que chorava muito e me perguntava para onde eu iria. Não resisti e também me pus a chorar em plena Rua Barão de Itapetininga, por onde está sempre passando uma multidão. Disse-lhe que passaria a viver na Europa dentro de mais alguns dias. Conversamos por mais algum tempo, e você inocentemente me disse que queria vir morar comigo.
     Hoje faz exatamente seis meses que cheguei a Londres e aqui me estabeleci por tempo indeterminado. Tenho um bom emprego como professor numa ótima universidade, sou muito respeitado aqui e, depois de ter tido de enfrentar tantas porcarias, estou bem. Tenho a sorte de poder fazer o que gosto, de viver num lugar tão rico de história, arte e cultura, de aprender muitas coisas novas e enfrentar desafios estimulantes. Tenho até feito sucesso como centroavante nos campeonatos de futebol que tenho disputado por aqui. Mas há em mim um grande vazio. Penso em você todos os dias, sofro por nem sequer saber como você está, me lembro de você a propósito de meninos que encontro nos parques da cidade ou nas ruas por onde saio para correr nos fins de tarde. Mas mantenho a esperança de que vai chegar o tempo de você realmente vir morar comigo e realizar outra ruptura na sua vida. Se há alguma justiça no universo, esse dia há de chegar.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Seu caderno

     Deixei em minha casa em São Paulo um caderno de capa dura que foi uma espécie de diário de nossa convivência nos últimos meses em que pudemos nos encontrar. Nele registrei suas frases mais marcantes, seus gostos e suas extravagâncias, suas descobertas, nossos passeios e afazeres, seu perfil e sua visão de mundo de criança. Há coisas engraçadas e coisas muito pitorescas. Mas infelizmente, antes mesmo da metade desse caderno ser preenchida, muitas folhas ficaram em branco. Esta parte representa, como diz um de nossos grandes poetas, "a vida inteira que podia ter sido e que não foi". Fomos separados, enfrentei os piores momentos de minha vida, busquei me afastar diante do risco vir a cometer alguma atrocidade, segui adiante, vim para bem longe.
     Hoje tenho consciência de haver emergido de uma espécie de inferno. Tive de enfrentar o desemprego e a falta de perspectivas, uma depressão, dificuldades econômicas, um não saber para onde me virar. Mas o pior de tudo foi ter de fazer face a muita sujeira, foi ter de negociar com a canalhice. Passou.
     Espero que ainda não seja tarde demais para que eu possa lhe ensinar a medir o valor das pessoas apenas por suas qualidades humanas, a não tomar jamais o dinheiro como medida de todas as coisas nem a injustiça como coisa normal, a jamais baratear os seus sonhos em nome de uma domesticidade ordinária. Se eu puder influenciá-lo nessa direção, considero que meu papel de pai terá sido bem cumprido.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Uma continuidade perdida?

     Ontem eu estava assistindo a um jogo do Galo, que finalmente está com um bom time depois de tantos anos de vacas magras. Vencemos a Portuguesa por 2x0 e assumimos a liderança isolada do Campeonato Brasileiro. 
     Me recordo de uma vez que você estava comigo em meu apartamento no Butantã. Assistíamos a um jogo entre Atlético X São Paulo pela televisão, numa quarta-feira à noite. Nessa ocasião, o Galo também venceu por 2x0. Quando saíram os gols, nos abraçamos e vibramos juntos. Falavam mais alto as nossas origens mineiras e a raça atleticana. Como diz o hino: "Jogamos com muita raça e amor".
     Uma das coisas que considero mais tristes nesta nossa separação é a falta de continuidade entre pai e filho. Nem sei mais se você continua jogando futebol, como fazia frequentemente e com tanta alegria junto comigo. Nem sei se as camisas do Galo que lhe dei não foram jogadas no lixo. Nem sei se o amor à literatura, que procurei instigar em você, a esta altura não terá se perdido. Quantos livros eu li para você! Quantas histórias contei para você! Cheguei mesmo a publicar um livrinho para você, em que reconto literariamente as lendas e os mitos da tradição popular brasileira.
     Mas aconteça o que acontecer, sei que há muito de mim na sua personalidade. Como eu, você tem um jeito sério mas bem-humorado de ser. Seu jeito de olhar é exatamente o meu. E tudo indica que, como eu, terá forte personalidade. 
     Uma das coisas que mais nos faltaram foi a oportunidade de irmos ao estádio juntos, para assistir a um jogo do Galo. Uma vez cheguei a comprar os ingressos, para irmos ver um Atlético X Corinthians no Pacaembu. Mas na hora de pegá-lo em sua casa, as coisas desandaram, e tive de retornar sozinho. Sentindo muita raiva, dei os ingressos para dois amigos corintianos e também não fui ver o jogo. 
     O tempo passa, tudo muda. Um dia, você haverá de tomar consciência das coisas e julgar as razões de toda a vida que perdemos.

domingo, 8 de julho de 2012

Vésperas de uma viagem

     Nesta manhã de domingo, estou me preparando para uma viagem que farei ao leste da Europa a partir do próximo fim de semana. Ficarei dezessete dias entre a Rússia, a Finlândia, a Estônia, a Ucrânia e a Alemanha. Tenho grandes expectativas especialmente em relação à Rússia, pais que aprendi a admirar por causa de sua literatura, que é extraordinária.
     Nestes momentos em que começo a arrumar as malas para viajar, sempre me lembro de você e penso no quanto seria bom tê-lo comigo. Nesta turnê, por exemplo, eu teria tanta coisa a lhe mostrar, tantos lugares para passear com você sentado nos meus ombros! Mas tenho a esperança de que ainda viajaremos juntos dentro de mais alguns anos, quando você for mais independente e tiver condições de fazer a escolha sobre de que lado quer ficar. 

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Do garoto de Chaplin ao meu garoto



     Este é, para mim, um dos melhores filmes de todos os tempos. Impossível não ficar abalado de beleza e comoção com essa história de pai e filho tão forte e tão delicada. Como diz a legenda de apresentação: "A picture with a smile - and perhaps, a tear". E a música do filme também é excelente. Chaplin e Jack Coogan, o garoto, nunca mais serão esquecidos por quem os vê nesta filmagem de 1921. Além disso, no meu caso em particular, encontrei muitas identidades entre esse garoto e o filho com quem pude conviver durante alguns anos.

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Uma aprendizagem


     Há mais ou menos um mês estive em Paris, e este foi um momento em que pensei em você. Bem ao lado da Catedral de Notre-Dame há sempre um bando de passarinhos muito mansos, acostumados à horda de turistas que por ali passam todos os dias. Andando por lá, coloquei algum farelo de pão na palma da mão e a estendi. Imediatamente este aí veio e pousou sobre ela para comer. Se você estivesse aqui comigo, por certo se divertiria muito com esses passarinhos. Essa gratuidade e esse encantamento foram das coisas mais profundas que aprendi com você.

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Uma carta de pai para filho

     Há poucos dias, terminei de traduzir as cartas de Sacco e Vanzetti, dois anarquistas italianos que foram acusados, nos Estados Unidos, por um crime que não cometeram, tendo passado sete anos presos e enfrentado julgamentos vergonhosos que terminaram com sua condenação à morte. E foram executados por eletrucussão em agosto de 1927, não pelo crime de que eram acusados, mas pela intolerância reacionária, o preconceito assassino e a burrice direitista, infelizmente ainda muito presentes nos dias de hoje. Sua história não pode ser esquecida e tem muito a dizer ao Brasil de hoje. Por isso minha tradução deve ser publicada ainda neste ano.
     As cartas de Sacco e Vanzetti, escritas na prisão, constituem um depoimento comovente, ao mesmo tempo que contêm profundas reflexões sobre política. Uma delas, que trata da relação entre pai e filho, me toca muito diretamente e gostaria de reproduzi-la aqui. Cinco dias antes de sua execução, debilitado por uma longa greve de fome em protesto pela ignomínia do processo que resultou na sua condenação à pena capital, Nicola Sacco escreveu esta carta para seu filho Dante, então com 13 anos:

18 de agosto de 1927. Penitenciária Estadual de Charlestown

MEU QUERIDO FILHO E COMPANHEIRO:

Desde a hora em que o vi pela última vez, tenho pensado em lhe escrever esta carta, mas a extensão de minha greve de fome e a ideia de que eu não conseguiria me expressar adequadamente me fizeram adiar este propósito.
Há alguns dias, encerrei a greve de fome. Tão logo o fiz, pensei novamente em lhe escrever, mas achei que não teria força suficiente para terminar a carta de uma só vez. No entanto, faço questão de que ela esteja escrita antes do momento de nos levarem para a sala de execução, pois estou convicto de que farão isso assim que a Justiça se recusar a nos proporcionar um novo julgamento. Dessa maneira, entre sexta-feira e segunda-feira que vem, se nada de novo ocorrer, vão nos eletrocutar logo após a meia-noite do dia 22 de agosto. Portanto, aqui estou eu com você de novo, pleno de amor e com o coração aberto, tal como ontem.
Nunca pensei que nossas vidas inseparáveis pudessem se partir, mas parece que estes sete anos dolorosos fizeram isso conosco, apesar de não terem mudado o grande amor que nos une. Ele permaneceu tal como era. Mais. Diria que o sentimento inefável e recíproco que nos une é hoje maior que no passado. É de fato um amor imenso, pois, como se pode ver, ele está firme não somente nos momentos de alegria mas também nos momentos de tristeza. Lembre-se de uma coisa, Dante: nós temos demonstrado isso e, modéstia à parte, temos orgulho desse sentimento.
Como temos sofrido durante este longo calvário! Nós protestamos hoje tal como protestamos ontem. E protestaremos sempre pela nossa liberdade.
Se encerrei a greve de fome dias atrás, foi porque em mim não havia mais sinal de vida. Ontem protestei com uma greve de fome como hoje protesto pela vida, para não ser assassinado.
Eu me sacrifiquei tanto porque queria voltar a abraçar sua irmãzinha Ines, sua mãe, nossos amigos e nossos companheiros de luta. Hoje, meu filho, a vida começa a ser revivida lenta e calmamente, mas sem horizontes, com tristeza e com a perspectiva da morte.
Meu menino, após sua mãe ter me falado tanto em você e de eu ter sonhado com você noite e dia, foi uma enorme felicidade encontrá-lo finalmente e termos conversado como sempre fazíamos. Eu lhe disse muita coisa durante a visita e ainda tenho muito a lhe dizer, mas pude ver que você seguirá sendo o mesmo rapaz afetuoso e leal a sua mãe, que tanto o ama. Não quero mais ferir a sua sensibilidade, pois tenho certeza de que continuará a ser a mesma pessoa e se lembrará do que eu lhe disse. Mas o que vou lhe dizer agora vai mexer com seus sentimentos. Por favor, não chore, Dante, pois muitas lágrimas têm sido derramadas, sua mãe as tem chorado durante estes sete anos, mas elas em nada melhoraram as coisas. Sendo assim, meu filho, em vez de chorar, seja forte a ponto de poder consolar sua mãe. Quando quiser distraí-la nas horas de desalento, vou lhe dizer o que fazer. Leve-a para dar um passeio pelo campo, colhendo umas flores aqui e ali e descansando à sombra das árvores, sentindo a harmonia dos córregos e a tranquilidade da mãe natureza. Ela vai gostar de fazer isso, e vocês haverão de estar bem. Lembre-se sempre de uma coisa, Dante: no jogo da felicidade, não a conquiste somente para você, esteja do lado dos fracos que também a procuram e ajude-os, nunca se esqueça dos humilhados e ofendidos, pois entre eles você encontrará seus melhores amigos. Eles são os companheiros que lutam e às vezes tombam tal como seu pai e Bartolo lutaram e tombaram para que a liberdade fosse uma prerrogativa de todos os trabalhadores. Essa luta por uma vida digna se fará com amor, e você será verdadeiramente amado.
Sua mãe me contou as coisas que você andou dizendo durante os dias terríveis em que eu estava no corredor da morte. Fiquei muito feliz com o que ouvi, pois suas falas mostram que você será o rapaz que eu sempre sonhei ter como filho.
Portanto, aconteça o que acontecer nos próximos tempos, mesmo se nos matarem, você não deve se esquecer de olhar para os companheiros de luta com gratidão, tal como olha para as pessoas mais queridas, pois eles o amarão tal como amam cada um dos camaradas que tombam pelo caminho. Seu pai, que é tudo na vida para você, seu pai, que tanto o ama, seu pai que conhece nossos companheiros e sua nobre lealdade (que é também a minha), o sacrifício supremo que eles estão fazendo pela nossa liberdade, seu pai, que lutou ao lado deles e sabe que eles são a última esperança de que sejamos salvos da eletrocussão, seu pai sabe que você compreenderá no futuro a grandeza de lutar com os pobres contra os ricos por segurança e liberdade, meu filho.
Pensei muito em você quando estava no corredor da morte. Às vezes me chegavam as vozes das crianças no playground, onde tudo era vida e alegria de estar livre. Isso a poucos passos das paredes que continham a agonia de três almas dilaceradas. Essas vozes me lembravam você e sua irmã Ines, e eu desejava vê-los a todo instante. Mas foi melhor que você não tenha vindo me visitar na antessala da morte, pois, do contrário, teria assistido ao horrível espetáculo de três homens em agonia esperando para ser eletrocutados, e eu não sei qual seria o efeito disso num menino da sua idade. Se você não fosse muito impressionável, no entanto, a memória desse infame acontecimento poderia até ser algo muito útil no futuro, quando você puder exibir para o mundo a vergonha deste país no que se refere a essa perseguição cruel e a essa morte injusta. Sim, Dante, hoje eles podem crucificar nossos corpos, como estão fazendo, mas não podem destruir nossas ideias, que permanecerão vivas para a juventude do futuro.
Quando falei em três homens em agonia, me referia também a um homem que estava conosco, cujo nome é Celestino Madeiros. Ele deve ser eletrocutado no mesmo dia que eu e Vanzetti. Madeiros já havia estado por duas vezes naquela famigerada sala de execuções, que devia ser destruída pelas marretas do verdadeiro progresso. Aquele lugar abominável envergonhará para sempre o futuro dos cidadãos de Massachusetts. Deviam jogá-lo no chão e construir uma fábrica ou uma escola para esse monte de órfãos que estão por aí.
Dante, mais uma vez lhe digo para amar e consolar sua mãe e as outras pessoas queridas. Tenho certeza de que com a sua coragem e a sua bondade elas se sentirão menos desoladas. E nunca deixe de amar seu pai, pois... ah, meu filho, como eu tenho pensado em você.
Mande as minhas melhores lembranças, meu amor e meus beijos para a Inesinha e para sua mãe. 

           Com o abraço mais afetuoso de

                                   SEU PAI E SEU COMPANHEIRO