sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Uma cidade de todos nós


     Acabo de retornar de uma noite no Almeida Theatre, que fica na região norte de Londres, onde assisti a uma excelente montagem de Nossa Cidade, de Thornton Wilder, uma de minhas peças favoritas. Já assisti a muitas encenações do texto de Wilder, no Brasil, nos Estados Unidos e agora na Inglaterra. Gosto de verificar que soluções cênicas foram encontradas pelo diretor e pelos atores. Mas vou ao teatro especialmente pela excelência e pela poesia profunda do texto. E sempre saio com lágrimas nos olhos e uma sensação de que sou uma pessoa diferente depois de assistir a essa peça.
     A história se passa entre 1901 e 1913, numa cidadezinha localizada no nordeste dos Estados Unidos. Apresentando um microcosmo do ciclo da vida de todos nós, o texto enfatiza o que há de essencial na existência humana, mostrando que mesmo nos acontecimentos mais cotidianos há algo de eterno e muito precioso que, no engajamento diário em nossos afazeres, não percebemos.
     Alguns diretores costumam conceber Nossa Cidade de maneira romântica e sentimental. De minha parte, porém, vejo nela uma peça trágica na medida em que lida com uma compreensão da condição do homem em sua jornada na Terra num nível mais profundo. A peça inclusive termina com o personagem George chorando, desconsolado, sobre o túmulo de sua esposa Emily, o que um crítico apontou ser "o lamento mais universal de todos, decorrente do fato de que nós, as pessoas que amamos, todos os seres vivos morrem". Mas há algo de eterno em cada um de nós, algo maior que nos liga a toda a humanidade e que nos proporciona um sentido para a vida. É disso que o texto trata.
     Um dia gostaria de assistir a Nossa Cidade a seu lado. Os personagens, os lugares e os acontecimentos da peça encontrarão identificação com muitas coisas que você viu e viveu em suas temporadas no interior de Minas. O que se mostra nessa obra é uma cidade universal, que pertence a todos os países, a todas as culturas.

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Bárbaros excluídos e bárbaros excludentes

     Conversamos brevemente ontem pela internet, e você me contou que teve de abandonar sua escolinha de futebol porque nela estão ocorrendo arrastões por parte de criminosos que vivem nas redondezas. Apesar de estar muito consciente do gritante fracasso da segurança pública no Brasil, em todos os níveis de governo, minha reação foi de perplexidade. Como pai vivendo não apenas separado de você mas também num outro canto do mundo, fico muito preocupado, pois não tenho muitas condições de protegê-lo dos perigos de uma cidade como São Paulo.
    Os ataques desses bárbaros não surpreendem, no entanto. Fazem naturalmente parte de um sistema segregador e excludente que foi sendo construído por nossas elites econômicas e que hoje é imitado pelas classes médias, de onde saem seus ideólogos, hoje estrelas do jornalismo, da publicidade e até da universidade. Não tenho dúvida de que este extrato arrumadinho de nossa sociedade é ainda mais bárbaro que o daqueles outsiders que fazem arrastões nas praças de esporte da zona sudoeste da Pauliceia.
     Essa polarização da nossa sociedade, que criou duas bem definidas categorias de cidadãos que nunca se comunicam e que manifestam sentimentos de estranhamento, desconfiança e medo quando se encontram, só poderia ter resultado nessa degradação do espaço público, no refúgio dos bem-postos na fortaleza e no isolamento de seus apartamentos, na ira dos excluídos, dos indesejáveis, dos desconectados. 
      Fui menino no interior de Minas no anos 1970 e tenho tido a oportunidade de viajar por muitos lugares neste mundo. Gostaria de lhe dizer que as coisas não foram sempre assim, nem são sempre assim em todos os lugares, apesar de certo sistema mundial que tende a ampliar as desigualdades entre ricos e pobres por todo lado. Por isso, esteja sempre aberto à alteridade e considere cada pessoa, por mais diferente que ela seja de você, como um ser humano que deve, por simples imperativo ético, ser tratado com dignidade e respeito. Encontre gente diferente daquelas que pertencem aos grupos sociais de que você faz parte e dialogue com elas. Não aceite a injustiça e a exclusão de ninguém, lute contra elas onde quer que venha a atuar. Somente assim poderemos um dia restaurar condições mínimas de civilização.

domingo, 26 de outubro de 2014

Do ateísmo à brasileira

     Há dias eu lhe escrevia aqui sobre os perigos da religião e invertia uma famosa frase atribuída a Dostoiévski, propugnando que se Deus existe, tudo é permitido. Lembrei disso ao abrir há pouco minha carteira e me deparar com uma oração de São Miguel, uma estampa de Santa Luzia e outra de Santo Expedito, além de uma medalhinha de Nossa Senhora e outra com o rosto de Cristo, tudo obra de minha mãe. Se essas coisas realmente nos protegem, definitivamente posso ficar tranquilo. Nenhum mal me atingirá. 
     Não tenho fé e estou certo de que, se Deus existe, trata-se no mínimo um omisso. Ou de um criador que nos abandonou completamente à própria sorte e à mercê dos tiranos e aproveitadores deste mundo. No entanto, essas figuras sagradas de um catolicismo popular e folk que habitam minha carteira são algo muito brasileiro que me conecta com minha origem, com minha cultura e com a gente pobre mas digna de que descendo e à qual estarei eternamente ligado. Portanto carrego-as comigo por elas possuírem esse significado profundo. Do mesmo modo, sinto-me bem quando, vivendo sozinho do outro lado do Atlântico, minha mãe me conta ao telefone que está rezando por mim. Aquilo realmente me protege e me engrandece, porém muito mais pela força de meu vínculo com minha mãe que pelos poderes das orações e dos santos que ela evoca.
    Escrevendo isso, me recordo agora de um poema de Drummond em que ele diz algo mais ou menos assim: "Os ateus brasileiros levam sempre uma santinha no bolso/ Nossos comunas, quando morrem, a família reza a missa de sétimo dia e de trigésimo". É verdade, e isso revela mais uma vez nossa flexibilidade e nossa abertura de espírito.

domingo, 19 de outubro de 2014

Necrópole


     Não muito longe de minha casa, do outro lado do rio, fica o Cemitério de Brompton, que também funciona como uma espécie de parque, pois as pessoas também vão lá para correr, andar de bicicleta, ler ou simplesmente passar o tempo. Os esquilos e pássaros que vivem entre às árvores e os túmulos adicionam vida a esse local dedicado aos mortos.
     Passei por lá nesta tarde e neste domingo de outono. Andei por algumas ruas e li vários epitáfios. A julgar por eles, todos ali enterrados foram uns anjos em vida. Nenhum canalha, nenhum egoísta, nenhum mentiroso, explorador dos outros, ladrão, tirano ou simplesmente chato, tal como abundam no mundo dos vivos.
     Ao passar perto da capela onde se velam os mortos, vi algo muito estranho para nossos padrões culturais. Num carro fúnebre, rodeado pelos parentes e amigos do morto, havia um caixão fechado, muito colorido e totalmente estampado com uma profusão de pequenas flores. Achei-o um tanto kitsch e nada funéreo. 
     Passeando pela iconografia convencional daquela cidade dos mortos, com seus crucifixos, anjos, uma ou outra estrela de Davi, mãos que apontam para o céu, fiés prostrados aos pés de santos, pensei na vida, com seus descaminhos. Há vários anos estou longe de você, sendo que há três estou vivendo longe do Brasil. Às vezes sinto que tenho perdido muito e que nada das coisas boas que estou vivendo aqui valem a pena de fato. Outras vezes penso que foi saudável e renovador me distanciar dos problemas que tinha de enfrentar em São Paulo para simplesmente poder ser seu pai e tê-lo a meu lado. 
   Hoje a vida vai passando, e você está crescendo. Costumamos nos encontrar duas vezes por ano, não por muito tempo. A morte é uma permanente perspectiva para todos nós, e nosso tempo se conta regressivamente. Ao pensar nisso, fico triste, mas ao mesmo tempo tenho de aceitar aquilo que não posso mudar. Porém, desejo ao menos que nossos curtos momentos juntos sejam eternos, que nossos precários contatos a distância sejam felizes, que a vida que nos for possível viver juntos seja densa.

domingo, 12 de outubro de 2014

Lembranças no Dia das Crianças


     Acabo de me lembrar de que hoje é o Dia das Crianças no Brasil. Na semana passada, você me pediu que lhe enviasse algumas fotos de você quando bem pequeno. Talvez tenha tido em mente preparar alguma coisa para esta ocasião. Ao repassar essas fotos para lhe mandar, pude ver como vivemos momentos felizes ao longo dos poucos anos em que pudemos estar juntos.
  Meu pensamento viaja agora por algumas breves temporadas em que você esteve em Divinópolis, na casa de minha mãe, durante um longo tempo que tive de passar por lá após nossa experiência em Belo Horizonte. Me lembro de seus passeios sentado em meus ombros, de nossos jogos e brincadeiras no campinho de futebol nas proximidades, dos cachorros de rua que costumávamos assustar, de você dando pão aos peixes da lagoa, de minhas histórias e meu beijo antes de você dormir. Havia ainda as peças que pregávamos em meu sobrinho Vinícius quando saímos nós três pelas ruas da cidade. Ele devia ter uns 11 ou 12 anos, e você, uns três ou quatro. Gostávamos de conspirar para, quando ele estivesse distraído, sairmos correndo e nos esconder em algum canto de rua, de onde ficávamos observando-o. Achando-se perdido e sem saber retornar para casa sozinho, ele ficava desesperado, enquanto nós dois ríamos em nosso esconderijo. Me recordo até de algumas vezes em que você mesmo me propôs, falando-me ao ouvido: "Vamos fazer covardia com o Vinícius!". 
    Alguma coisa inexplicável faz com que crianças e cachorros sempre gostem de mim imediatamente. E eu deles, com quem tenho tido relacionamentos de muita confiança e muito aprendizado. Em nosso caso, foi uma felicidade brincar com você naqueles momentos, levando a vida com alegria e alumbramento. Que você preserve esse espírito ao longo de sua jornada, mesmo quando chegar o momento de ser sério e produtivo.

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Entre a saudade e a indignação

     De vez em quando sou acometido por uma forte saudade do Brasil e das nossas coisas. Tenho consciência de nossos problemas e da oligarquia bastarda que controla o país, mas é difícil viver tanto tempo longe da vibração, das cores, dos cheiros, dos sons e dos sabores brasileiros. Outro dia, provando um improvisado pão de queijo em Londres, comentei que aquilo era a madeleine que me reconduzia a meu tempo perdido, à maneira de Proust. Mas muito especialmente sinto falta das pessoas, de nossos abraços, de nosso senso de humor, de nossos apelidos e nossos diminutivos. Talvez a chegada do frio e o ataque de um forte resfriado que peguei por aqui na semana passada intensifiquem a falta que o Brasil me faz neste momento. 
     Aliás, talvez este nem seja o momento ideal para se estar no Brasil, com o processo eleitoral para a presidência da República entrando na reta final e a baixaria sem freios dos políticos. Sem falar na baixaria ainda maior dos jornalistas engajados nas campanhas. E o fardo de ter de tolerar esse nauseabundo Aécio Neves, um cretino juramentado que está no segundo turno em grande parte devido aos votos de São Paulo e de regiões ultrarreacionárias como o Triângulo Mineiro e estados do centro do país. Esse personagem representa o que há de mais retrógrado em Minas e o que há de mais miserável na política brasileira. Que alguém dessa laia tenha chegado ao segundo turno das eleições para a presidência é um sinal evidente de nossa pobreza institucional. Aguardemos ao menos que os votos decisivos do segundo turno tenham um mínimo de lucidez.

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Abolir o grande outro

     É muito citada uma frase atribuída a Dostoiévski, mas que nunca aparece literalmente em sua obra: "Se Deus não existe, tudo é permitido". Em geral, são pessoas que nunca leram o grande escritor russo que a mencionam como uma apologia da fé e como a essência da possibilidade de realizarmos um mínimo de civilização.
     Há alguns anos perdi completamente a fé, se é que algum dia tive alguma. Diante da monumental quantidade de estupidez, alienação, violência, exploração e loucura que há milênios se têm praticado em nome de Deus, me parece que a conclusão óbvia é justamente que se Deus existe, tudo é permitido. Por isso, tenho horror às religiões, em especial na sua forma institucionalizada. Como escreveu Mencken a respeito de uma das versões do cristianismo institucionalizado, o protestantismo, sua maior contribuição à humanidade foi uma prova definitiva de que Deus é um chato.
     Talvez eu esteja escrevendo isso para lhe dizer que tome cuidado com essa praga. Tenha a coragem de ser você mesmo e jamais fazer parte de qualquer forma de rebanho, ainda que isso possa significar algum isolamento temporário. Do mesmo modo, esteja atento a essa forma de religião sem Deus comumente praticada por ateus que substituem o grande outro pelo poder da humanidade, da ciência, de um sistema político redentor, de alguma substância, do líder infalível ou do guru intelectual. É preciso aprender a viver sem esse tremendo fardo sobre nossas costas. 

sábado, 4 de outubro de 2014

Um tigre no inconsciente

     Não sei até que ponto aquilo que lemos, vemos ou sentimos no decorrer de um dia influencia nossos sonhos. Mas o fato é que tive um estranho pesadelo na noite passada.
     Ontem, quando ia para o trabalho de metrô, li num jornal uma notícia sobre um indiano que pulou na área onde fica um tigre, num zoológico de seu país. Como era de se esperar, o animal o atacou e o matou. Havia até uma foto angustiante da fera se aproximando e do rapaz se encolhendo contra um muro. Os tabloides ingleses, em seu sensacionalismo barato, não se caracterizam por muita sutileza nessas coisas.
     Mas vamos ao sonho. Nele eu e você estávamos numa região desértica. Escurecia. Parece que tentávamos encontrar o caminho de volta para um lugar seguro. Em certo momento, vimos ao longe uma alcateia formada por quatro ou cinco lobos e nos escondemos. Eu buscava protegê-lo dos perigos da noite e de um lugar tão inóspito. Até, ao sairmos do esconderijo, vimos que um tigre enorme corria em nossa direção. Sem mais tempo de fuga, peguei um pedaço de pau e disse a você que fugisse e se escondesse. Acordei quando partia para o duelo desigual com besta, com o fim de ao menos desviar-lhe a atenção de você.
     O que algo assim significará? Por que carregamos em nosso inconsciente esse mundo desconhecido e às vezes tão assustador?