sexta-feira, 29 de junho de 2012

Um violinista para a eternidade


     Sou um admirador da arte da fotografia. Mantenho em meu computador uma grande coleção de trabalhos dos grandes fotógrafos e eu mesmo procuro tirar algumas fotografias com pretensões estéticas.
     Esta é, para mim, uma das fotos mais comoventes e mais plenas de poesia e humanidade. Toda vez que a vejo, é como se me transformasse numa pessoa um pouco melhor. Foi tirada pelo húngaro André Kertész, em 1921, na cidade de Abony, em seu país natal. Numa Europa arrasada pela Primeira Guerra Mundial, o cenário é de pobreza e desolação. Numa rua de terra batida, empoeirada e irregular, um carro que passou momentos antes deixou a marca de linhas paralelas que atravessam a cena da parte frontal até o fundo, direcionando nosso olhar não somente para o acontecimento que se desenvolve na área frontal mas também para a área mediana e para o fundo. 
     Tudo indica que o violinista ambulante, miseravelmente vestido, com uma bengala pendurada no braço esquerdo, traz consigo, à sua esquerda, o filho adolescente com seus pés descalços. Este, que recolhe os níqueis doados pela audiência do pai, olha para frente, cheio de relutância e um tanto desconcertado por ter de acompanhar o alquebrado músico em sua performance pelas ruas. O violinista pisa sobre a linha deixada pelo automóvel, que pode ser interpretada como uma metáfora da fronteira de um mundo a outro, de um tempo a outro, de uma condição a outra. O filho ainda não o fez, mas, apesar de sua evidente relutância, está prestes a também cruzar a fronteira, pois não há outra alternativa. E esse cruzamento se faz através da música tocada pelo pai com toda a dignidade que transparece em sua expressão facial.
     Na parte intermediária da cena, já do outro lado da fronteira, o menino que caminha sozinho na direção da dupla é a própria imagem da inocência e da pureza. Ao mesmo tempo, talvez seja alguém destinado ao abandono e à solidão, já que não se veem sinais da presença de seus pais. Ele vem para o primeiro plano ao mesmo tempo atraído pela música e olhando para alguma coisa que se passa atrás do violinista e seu filho. Sua presença no enquadramento perfeito da imagem ressalta a profunda humanidade das pessoas mostradas, com quem solidarizamos de imediato, não pela exposição de sua condição de miseráveis, mas por sua dignidade e pela aura de bondade que emanam. 
     Ao fundo, bastante desfocadas, duas pessoas estão diante de uma casa com uma fachada branca, conversando perto de uma árvore, como a reforçar seus laços sociais como forma de enfrentamento de um tempo difícil. 
     Toda vez que vejo esta foto, ela me toca como um poema de Drummond, um filme de Chaplin, um drible de Garrincha. E me dá a certeza de que a grande e verdadeira miséria é a de espírito.

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Uma história na chuva

     Londres é uma cidade que possui um verão bastante chuvoso. O atual tem sido muito úmido, sobrecarregado por uma chuvinha fina que dura dias e dias, parando por algumas horas e retornando em seguida. Nesta época, as nuvens se movimentam muito no céu.
     Hoje cheguei do trabalho por volta das 17h00 e saí para correr debaixo de chuva e vento. Enquanto corria, me lembrei de uma vez, há uns quatro anos, em que você estava comigo, em meu apartamento no Butantã, num fim de ano. Estava chovendo e saímos para almoçar num restaurante próximo. Você ia no meu colo, e eu segurava o guarda-chuva. De repente, um vento forte virou nosso guarda-chuva pelo avesso, quebrando algumas barbatanas e nos deixando desprotegidos. Você se assustou e começou a chorar, mas corri para debaixo de uma marquise, arrumei o guarda-chuva e pudemos seguir nosso caminho. Um pouco adiante, vimos um ônibus passar sobre uma grande poça d'água e jogar longe uma água lamacenta, com o que você se divertiu muito, abrindo um vasto sorriso. Definitivamente, se houvesse neste mundo gente capaz de rir assim de um acontecimento como este, não estaríamos neste descalabro.

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Uma estátua em Versalhes


     Há cerca de duas semanas, estive em Paris, por razões acadêmicas, e aproveitei para ficar alguns dias e fazer alguns passeios por lá. Entre tantas coisas belas existentes na capital da França e suas imediações, esta estátua nos jardins do Palácio de Versalhes me fez pensar em você e desejar sua presença a meu lado. Há poucos anos, eu também o pegava dessa maneira. 
    Se você estivesse em Paris comigo, eu iria lhe mostrar muitas coisas interessantes da cultura francesa e lhe explicaria algumas coisas relacionadas à arte e à cultura. Mas tenho a esperança de que isso vai ocorrer dentro de mais alguns anos, quando você for adolescente e puder tomar a decisão de ficar comigo.

domingo, 24 de junho de 2012

Futebol de pai para filho

    Joguei futebol ontem contra um time de poloneses que jogam muito duro, dão muitos chutões e muitos carrinhos. Para piorar, havia chovido horas antes e o campo estava molhado. Meu time ganhou de 5x1, e fiz quatro gols. Mas acabei levando uma tremenda bolada na mão e quase quebrei o pulso, que agora está um pouco inchado e doendo bastante.
     Esse jogo me fez lembrar de uma vez em que o levei para me ver jogar na USP, pelo time da FFLCH. Você ficou sentado com os reservas de nosso time. Naquele dia ganhamos por 3x1, e eu fiz dois gols, depois dos quais corri até o banco para abraçá-lo. E você ficou falando para meus colegas que seu pai era muito bom de bola. Lembrando hoje esse episódio, eu lhe digo que correr para abraçá-lo foi muito melhor do que fazer os gols. Quem me dera poder tê-lo na beira do campo sempre que eu jogasse. E quem me dera um dia estar na beira do campo e vê-lo jogar. E lhe dar o meu abraço depois do jogo.
     Nem sei se você está jogando futebol depois que fomos separados. Meu pai foi zagueiro, eu saí atacante, você - que parece ter um ótima condução de bola e excelente passe - talvez seja craque do meio-campo. Isso se é que ainda está sequer jogando.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

O farol


     Esta é uma história plena da poesia do relacionamento entre pai e filho. Sempre que a vejo, meus olhos se enchem d'água e fico pensando em você. Durante o tempo em que estivemos juntos, fizemos muitas coisas semelhantes às que fazem os personagens deste desenho animado chinês e tivemos um relacionamento como o desse pai e desse filho.
     E o ciclo da vida se completa e se renova. Ficam para sempre as coisas boas que fizemos juntos, os momentos felizes que tivemos, não burrice e a frivolidade dos que só pensam em dinheiro e nos adornos da vaidade.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Duas mãos


     Estas são nossas mãos, numa foto tirada há seis anos, quando você ainda era bebê. Considero esta imagem linda, plena de poesia, cheia de amor. Hoje sua mão está bem maior e você se transformou num rapazinho bonito, falante e inteligente. Mas há muito que nossas mãos foram separadas. No entanto, tudo muda, e o tempo de nos reencontrarmos haverá de chegar. E as coisas, tal como estão hoje, se transformarão muito.

terça-feira, 19 de junho de 2012

Carta ao filho

Arthur Rabelo:                                                              

     Seis meses atrás, vim morar na Inglaterra. Trabalho em Londres, onde sou muito respeitado e muito valorizado em minha atuação como professor e muito valorizado por minha produção intelectual. Estou bem aqui, seguindo a minha vocação e fazendo o que gosto. 
     Vir para cá foi uma das melhores coisas que me aconteceu. Vivendo em São Paulo, frequentemente eu era acometido por ondas de fúria e vontade de cometer coisas bárbaras por causa de tanta coisa nojenta que tive de enfrentar nos últimos anos, coisas essas que o transformaram num órfão de pai vivo.
     Logo que cheguei a Londres, aluguei um quarto numa casa de família inglesa, para passar os primeiros tempos. A dona do imóvel, Jill Drower, com quem eu sempre conversava, ao ouvir a história de nossa separação num dia em que tomávamos chá no fim de tarde, me recomendou que escrevesse um blog em que relatasse meus sentimentos acerca da distância e dos danos que essa situação tem causado a mim e a você. Eu lhe disse que iria pensar a respeito. Por fim, achei uma boa ideia e resolvi fazê-lo, com a condição de não expor a minha nem a sua imagem.
     Um dia você vai crescer, vai tomar consciência das coisas e vai querer saber de seu pai, que foi obrigado a se afastar e posteriormente aceitar este exílio em que vivo agora.
     Desde que saí da casa onde morávamos, em Belo Horizonte, em 2007, não houve um só dia em que eu não pensasse em você, em que não me lembrasse das muitas coisas boas que pudemos fazer no pouco tempo em que vivemos juntos.
     Hoje você está com sete anos, um rapaz bonito e inteligente. No meu sofrimento destes últimos anos, aprendi que terei de esperar que você cresça um pouco mais e se torne independente. Então poderá vir até mim e será recebido com amor. Mas também chegará um momento em que você terá de fazer uma escolha. Se for por mim, estará apenas e inteiramente comigo. Vamos deixar que o tempo, esse vencedor de todas as coisas, resolva a situação.