sábado, 28 de maio de 2016

Um cachorro eternizado em Edimburgo






     Passei  os  últimos  três  dias  em  Edimburgo,  que  é  uma das cidades mais bonitas e mais bem cuidadas onde já estive. Sua área central, que é patrimônio cultural da humanidade pela Unesco, está muito bem preservada e bem cuidada. E os bairros são muito bem urbanizados e cheios de flores nesta época do ano. 
     Quando  caminhava  pela  parte  antiga  de  Edimburgo,  hoje pela manhã, pensei nas cidades históricas do Brasil. Na última vez em que estive em Ouro Preto, por exemplo, fiquei indignado com pichações e grafites numa das igrejas barrocas da cidade, que está fechada já há anos. Como se não bastasse, seu adro tornou-se um ponto de encontro de consumidores de drogas.
     É  impressionante  como  o  Brasil,  que  sobrecarrega seus cidadãos de impostos, possui cidades tão desconfortáveis e mantém seu patrimônio cultural de modo tão precário. Como sabemos todos, os recursos que deveriam ser utilizados para promover o bem comum em realidade financiam a farra das quadrilhas de políticos corruptos que tomaram conta dos centros de poder em todos os níveis. Neste momento em que as misérias de nossos homens públicos estão sendo expostas e fica muito clara a necessidade de reformas estruturais no país, temos mais uma chance de sairmos do fundo do poço em que nos encontramos através de mudanças em direção a uma sociedade verdadeiramente democrática.
     Voltando a Edimburgo, outra coisa que me impressionou é que a cidade é cheia de histórias, várias delas sensacionais. Uma que me marcou e de que vou me lembrar por muito tempo é a desse cachorro, chamado Bobby, que hoje está imortalizado nesta estátua diante da entrada da igreja de Greyfriars, na área central. Ele pertencia a John Gray, um policial que atuava como vigilante noturno, de quem foi inseparável por cerca de dois anos. Até que, em 1858, Gray morreu de tuberculose, sendo enterrado no adro da igreja de Greyfriars. A partir de então, Bobby passou 14 anos ao lado do túmulo de seu dono, sendo alimentado pelo jardineiro do cemitério, por outras pessoas da cidade que por ali passavam e pelos donos do restaurante que fica ao lado da igreja. O cão morreu em 1872. Embora muitos desejassem que ele fosse enterrado no túmulo de John Gray, isso não pôde acontecer, pois os restos do dono estavam em terreno consagrado, para onde apenas humanos poderiam ser enviados após a morte. A solução foi enterrá-lo numa área não consagrada do cemitério, diante da igreja e a 70 metros da sepultura de Gray. Um ano depois da morte do animal, inaugurou-se a estátua em homenagem a sua lealdade e devoção. 
     Eu,  que  tenho  um  casal  de  golden  retrievers  no Brasil, cuidados por minha mãe e minhas irmãs, conheço bem a proverbial fidelidade do cachorro, que é o santo dos bichos.

terça-feira, 24 de maio de 2016

Uma cidade partida


     Desde  ontem  estou  na  Irlanda  do  Norte.  Sua capital não é muito grande, mas é uma cidade partida. No Brasil, nossas cidades também costumam ser partidas por regiões. Entre o centro e a periferia, vive a classe média, com alguns enclaves da classe alta. O centro geralmente está povoado por mendigos, dependentes de drogas e moradores de rua. Na periferia vivem os pobres abandonados pelo Estado e expostos a toda sorte de insegurança. 
     Aqui,  no  entanto,  a  separação  é  entre  católicos  e protestantes, numa atitude nada cristã. O centro da cidade é o lugar onde muitos trabalham e todos se misturam. Mas os bairros são muito claramente divididos entre católicos e republicanos pró-Irlanda de um lado, protestantes e monarquistas unionistas britânicos de outro. As ruas de cada uma dessas regiões, que ainda são separadas por um muro, são povoadas pela bandeira da Irlanda, de um lado, e do Reino Unido, do outro. Murais ingênuos, com uma estética triunfalista e provinciana, decoram cada um dos lados, exaltando a maravilha de se fazer parte de um lado ou de outro. Essa é a grande realização da religião neste país, que até um passado recente assistiu a conflitos gravíssimos entre católicos e protestantes, com muitas mortes. Ainda hoje, em certa época do ano, há marchas em que um lado passeia pelo território do outro com bandeiras, símbolos religiosos e músicas marciais, num ato de clara provocação.
     Mas  não  vou  registrar  aqui  somente  esse  lado ridículo do ser humano, que está presente em todos os lugares. Os conflitos entre torcedores de futebol no Brasil, por exemplo, não ficam atrás do que ocorre aqui em desrespeito e estupidez. Embora sem muitos atrativos, Belfast é uma cidade bem cuidada, sem muita disparidade social entre seus moradores e com boa qualidade de vida. As regiões rurais e parques montanhosos em seu entorno são espetaculares. Hoje caminhei muito, visitei museus, experimentei da comida típica da região de Ulster, onde fica Belfast. E as pessoas com quem tenho conversado, não me importando nada se são católicos ou protestantes, têm sido sempre muito simpáticas comigo. Aliás, o modo como falam inglês é bastante peculiar. Meu ouvido reconhece claramente algo bastante diferente dos sotaques londrinos e americanos, com os quais estou acostumado. Às vezes não entendo alguma palavra ou frase e tenho de pedir para repetir. O mundo é realmente cheio de novidades e está sempre a nos proporcionar descobertas.

domingo, 22 de maio de 2016

Enfim bom tempo

     Depois  de  uns  oito  meses  de  mau  tempo,  com  frio, escuridão e um chuvisquinho insistente, finalmente chegamos ao auge da primavera e temos tido dias quentes e claros. Até o sol resolveu aparecer. Assim, as flores promoveram uma explosão de cores e cheiros, as folhas das árvores renasceram e os muitos parques daqui estão cheios de vida, com muitos encontros entre as pessoas e muita coisa acontecendo. Este é o período do ano de que mais gosto por aqui.
     Passei  o  dia  em  Richmond,  que  é  o  bairro  de  que mais gosto em Londres e onde quase fui morar há cerca de três anos. Os parques da região são muito bonitos e bem cuidados. Gostaria muito de passar um domingo com você por lá. Jogaríamos futebol, andaríamos de bicicleta, faríamos piquenique e descansaríamos debaixo de uma árvore, batendo um papo, despreocupados das horas e dos compromissos da semana.
     Amanhã  cedinho  partirei  para  a  Irlanda  do  Norte e depois para a Escócia. Farei um trabalho como intérprete agora que terei de colecionar alguns bicos esporádicos até reencaminhar minha vida profissional. Depois do trabalho aproveitarei para conhecer esses lugares, que me parecem muito interessantes. Após cinco anos vivendo em Londres, será a primeira vez que conhecerei os outros países do Reino Unido. Será uma experiência enriquecedora. Vou enviar-lhe cartões-postais de lá.

sexta-feira, 20 de maio de 2016

O pai que eu quero ser

     Acabo  ficar  bastante  tocado  pela  leitura  do  romance  O Filho de Mil Homens, do português Valter Hugo Mãe, que conta a história de um pescador que chega aos 40 anos sem filhos e que, com o tempo, constrói para si uma família não convencional, vencendo os preconceitos de um vilarejo de mentalidade tacanha e conservadora através da aceitação de figuras marginalizadas pela comunidade por possuírem alguma deformação física ou comportamental. Crisóstomo, o protagonista, encontra a felicidade por meio da compaixão e do perdão, amando as outras pessoas como elas são, pois todos temos nossa dignidade e somos parte de uma grande teia humana. Uma passagem na página 188 da edição brasileira resume bem o espírito do livro:

     O  Crisóstomo  disse  ao  Camilo:  todos  nascemos  filhos  de  mil  pais e de mil mães, e a solidão é sobretudo a incapacidade de ver qualquer pessoa como nos pertencendo, para que nos pertença de verdade e se gere um cuidado mútuo. Como se os nossos mil pais e mais as nossas mil mães coincidissem em parte, como se fôssemos por aí irmãos, irmãos uns dos outros. Somos resultado de tanta gente, de tanta história, tão grandes sonhos que vão passando de pessoa a pessoa, que nunca estaremos sós.

     Sem teorizar superficialmente à maneira da autoajuda, o escritor nos mostra que a felicidade está na aceitação do que se pode ser, o que não anula a possibilidade de nos aperfeiçoarmos. E o grande agente de transformação das pessoas é o amor, através do qual encontramos a possibilidade de pacificação conosco e com os outros, pois somos todos, ao mesmo tempo, pais e mães, filhos e filhas de uma enorme e variada família: a humanidade.
     Encontrei em Crisóstomo uma figura muito inspiradora, o homem que eu gostaria de ser. Quanto a você, quero vê-lo crescendo com o sentimento e a consciência de que, para além de ser meu filho, é também um "filho de mil pais e mil mães". Que para sempre respeite a dignidade das outras pessoas como parte de um todo a que você mesmo pertence e que será pobre e degradado se elas forem tratadas como coisas. Só assim você jamais estará sozinho.

terça-feira, 17 de maio de 2016

Marcas da fatalidade

   
     Em  meados  da  semana  passada,  no  fim  de  tarde,  eu terminava uma corrida na margem do rio quando de repente me deparei, já perto de casa, com um grande engarrafamento de carros e a polícia fechando toda uma quadra da rua. Os curiosos de sempre se juntavam pelas beiradas. Perguntei o que havia ocorrido, e me disseram que se tratava de um acidente envolvendo um motoqueiro. No dia seguinte passei pelo mesmo lugar ao fim de outra corrida e encontrei esses buquês de flores amarrados a um poste no local do acontecimento. Imediatamente parei e fiquei em silêncio como manifestação reverência e respeito, pois isso quer dizer que houve uma fatalidade no local. Ao chegar em casa, busquei obter mais detalhes nos jornais da cidade e soube que um rapaz de 37 anos ali perdeu a vida após a colisão de sua motocicleta com uma van. É estranho que algo tão grave tenha ocorrido numa rua estreita e não tão intensamente movimentada do bairro.
     Assim  os  ingleses  marcam  os  lugares  da  cidade  onde ocorreram fatalidades. Alguns deles mantém permanentemente flores, fotografias e mesmo objetos da pessoa que ali perdeu a vida, mantidos pela família. Encontro esses memoriais em vários pontos da cidade, sendo muitos deles resultado de acidentes envolvendo ciclistas.
     Lembro-me  das  cruzes  que  marcam,  nas  estradas brasileiras, os acidentes fatais. E de nossas áreas urbanas, como muitas vezes vi em São Paulo após tragédias envolvendo motoqueiros, recordo-me das velas acesas que sempre aparecem no local dessas fatalidades como uma forma anônima de compaixão.
     De  minha  parte,  busco  evitar  ao  máximo  me  expor  aos perigos do trânsito das cidades grandes. Tenho bicicleta por aqui, mas só a uso para ir à área central pela margem do rio, onde não se partilha a rota com os carros. Tenho de entrar nas ruas somente num pequeno trecho em que há uma ciclovia. Mesmo assim, mantenho sempre olhos atentos nos carros, especialmente nos caminhões, virando à esquerda. E em São Paulo nem em pesadelo eu ando de bicicleta em meio a toda aquela irresponsabilidade no trânsito. Por outro lado, em lugar nenhum do mundo eu subo sobre motocicleta, esse veículo programado para cair e que deixa as pessoas tão expostas.
     Quanto  a  você,  que  já  vai  entrando  na  adolescência, não vou lhe permitir, nem depois de adulto, que ande de bicicleta em São Paulo nem de motocicleta em lugar nenhum do mundo.

sábado, 14 de maio de 2016

Um novo ciclo


     Neste  fim  de  ano  acadêmico  europeu,  é  chegada  a hora de encerrar um ciclo e deixar o trabalho no qual estive empenhado durante os últimos cinco anos. Há algum tempo eu vinha tendo conflitos com o neoliberalismo da universidade, a absoluta mercantilização do ensino que oferecem e o fanatismo do politicamente correto que ali reina. Como não estava feliz, chegado o fim de meu contrato, ficou decidido que ele não seria renovado e que eu partiria mais uma vez para outro desafio, já que minha vida tem se feito na instabilidade de ciclos que duram quatro, cinco, seis anos.
     Sei  que  voltarei  a  enfrentar  dificuldades  por  algum tempo, mas não tenho medo de encarar os desafios da vida e me renovar. Tudo indica que sairei de Londres. Há inclusive a possibilidade aportar do outro lado do mundo ou mesmo de retornar ao Brasil, a despeito do que nossa oligarquia vira-lata tem cometido no país ultimamente.
     Já  estou  envolvido  numa  ciranda  de  despedidas.  Os alunos foram os primeiros a organizar uma noite numa churrascaria brasileira do West End, junto à zona teatral da cidade. Houve discursos, agradecimentos, presentes e um cartão com mensagens de vários deles. Sei que os colegas professores também estão preparando algo do mesmo tipo.
     Até  conseguir  voltar  para  a  universidade,  a  um departamento com outros valores, vou atuar temporariamente como tradutor e intérprete, usando o português, o espanhol e o francês, línguas que consigo manejar bem. Não pretendo ficar nisso muito tempo, mas terei de suprir o custo de viver numa das cidades mais caras do mundo enquanto me mantiver por aqui.
     Ainda  sem  saber  o  que  vou  fazer  nos  próximos tempos, neste momento tenho ganas de chutar tudo e ir vê-lo, já que terei alguns dias ou mesmo semanas sem nada que me prenda aqui.

terça-feira, 10 de maio de 2016

Coleções

     Quando  menino,  eu  tinha  o  costume  de  colecionar coisas. Sem nunca ter feito isso com muito método nem muito esforço, cheguei a ter coleções de bolinhas de gude, de selos, de notas e moedas brasileiras e de outros países, de álbuns de figurinhas das Copas do Mundo de 1982, 1986 e 1990. Durante anos, quando eu era pequeno, meu pai comprava sempre, todo mês, a revista da National Geographic em sua versão brasileira. Eu sempre lia as reportagens e sonhava conhecer aqueles lugares exóticos, guardando as revistas e organizando-as cronologicamente. Recordo-me de uma estante cheia delas, com suas lombadas amarelas. 
     Com  o  passar  do  tempo  e  os  novos  engajamentos da adolescência, fui perdendo o interesse pelas coleções e me envolvendo com outras coisas. Hoje minha única coleção, da qual me esmero em cuidar, proteger e manter a boa qualidade, é a de meus livros. Estão agora em aproximadamente cinco mil volumes que ocupam todo um cômodo na casa de minha mãe até que eu volte a ter a minha própria casa.
     Mas  continuo  sensível  aos  colecionadores.  Tanto  que para mim uma das personagens mais fascinantes e mais comoventes da literatura é Laura Wingfield, personagem de Tennessee Williams na peça The Glass Menagerie, uma moça cuja ocupação é colecionar animais de vidro, sendo seu preferido um unicórnio que simboliza ao mesmo tempo sua autenticidade e sua fragilidade.
     Lembro-me  de  você  pequenino  montando  uma  coleção de carrinhos em miniatura que eu lhe comprava toda vez que passávamos por certas lojas de brinquedos, supermercados e até mercearias. Eram produzidos por uma empresa americana chamada Hot Wheels, e em seu quarto havia dezenas deles. Não sei se ainda os tem. Mas, nas duas últimas Copas do Mundo, sei que você completou os álbuns com as figuras dos jogadores de todas as seleções, tal como eu fazia muitos anos atrás.
     Que  as  coleções  feitas  na  infância  lhe  ensinem  a organização, a persistência e a concentração, qualidades tão importantes neste tempo em que, mais que nunca, "tudo o que é sólido desmancha no ar".

sexta-feira, 6 de maio de 2016

Livros para você



     Recebi  hoje  uma  carta  da  Editora Unicamp, informando-me de que minha tradução da obra Cartas de Sacco e Vanzetti será publicada por eles. Fiquei feliz, pois há muito tempo eu vinha procurando uma editora para esse trabalho, que, por não ter apelo comercial, foi recusado por muitas delas. Além disso, a editora da Universidade de Campinas tem prestígio e um catálogo de alta qualidade.
     Aguardarei  agora  a  publicação,  que  deve  acontecer dentro de alguns meses. E, como sempre faço com meus trabalhos, eu lhe darei um exemplar. 
     Como  você  já  está  entrando  na  adolescência  e desenvolvendo-se intelectualmente, tenho aqui comigo, para também lhe dar de presente na próxima vez em que nos encontrarmos, a Antologia Poética de Carlos Drummond de Andrade, a Antologia Poética de Vinicius de Morais e a coletânea Estrela da Vida Inteira, de Manuel Bandeira. A poesia é algo fundamental para sua educação, para sua inteligência e para a sua sensibilidade. Já está na hora de iniciar-se na obra desses três grandes poetas.

quarta-feira, 4 de maio de 2016

Um sonho

     Tive, na noite passada, um sonho estranho. Houve um problema com sua escola, que veio a proibir pais ausentes em seus eventos por mais de um ano de voltar a frequentá-los. Isso me atingia diretamente, bem como a vários outros pais de seus colegas, que protestavam contra o moralismo do estabelecimento. 
     Embora  esteja  muito  longe  e  de  todo  modo  não  possa acompanhar presencialmente seu desenvolvimento escolar, em especial tomando parte em reuniões e celebrações, sempre busco saber como seus estudos estão se processando, incentivo-o a se desenvolver intelectual e culturalmente, dou-lhe aconselhamento e coloco-me à disposição para ajudá-lo em suas lições. Nunca deixei de ser seu pai. Ainda assim acordei com uma sensação de saudade e tristeza pela incapacidade de lhe oferecer mais que isso.

domingo, 1 de maio de 2016

Pão de queijo com caviar

     Tenho  uns  amigos  russos  aqui  que  sempre  trazem suas latinhas de caviar, importadas de seu país, toda vez que nos encontramos. E toda vez que me encontram pedem que eu faça um bom volume de pão de queijo, pois consideram-no a maior das delícias. Como sempre que vou ao Brasil trago muitos saquinhos com a farinha já pronta, também sempre tenho os ingredientes para o pão de queijo à mão. Assim, nessas reuniões há uma improbabilíssima mistura de pão de queijo mineiro cortado ao meio e recheado com caviar russo. Por incrível que pareça, dá muito certo. Costumo brincar, chamando a iguaria de pão-de-queijóvski
     É a globalização!