domingo, 27 de novembro de 2016

Presença

     Lembro-me  de  que,  no  romance  A  Cartuxa  de Parma, um inconsolável Fabrice del Dongo, ao não mais ver sua amada Clélia todos os dias, declara: "Falta-nos um ente, e tudo se despovoa". Já houve momentos em que me senti como o personagem de Stendhal diante da ausência de meu filho. Hoje, no entanto, sinto que sua falta é que tudo povoa. Esta é uma visão talvez mais otimista ou mais madura da situação em que, há já vários anos, fomos obrigados a nos submeter. É incrível que já estejamos separados há quase dez anos e que minha ausência do Brasil já dure cinco anos. Mas espero em breve poder estar de volta a São Paulo e poder ser um pai mais presente e mais próximo agora que você inicia sua adolescência e talvez precise de uma figura de autoridade por perto. Porém desejo exercer uma autoridade flexível e negociada, embora firme. Que nossa relação seja marcada pela simplicidade, a sinceridade e alegria. 
     Não  vejo  a  hora  de  reencontrá-lo  depois  de  um  ano e meio de uma enorme distância física entre nós. Você me conta que tem guardados três presentes para mim: do Dia dos Pais, do meu aniversário e do Natal. Estou ansioso para recebê-los juntamente com seu abraço e seu beijo. Também chegarei com algo diferente para o seu Natal, que espero poder ser passado na casa de minha mãe neste ano, se as negociações para isso não gorarem.
     Quero  então  que  meus  dias  sejam  povoados  pela sua presença.

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Da aversão à inteligência

     Há  alguns  dias  eu  escrevia  aqui  sobre  o protagonismo que os ignorantes, preconceituosos e excludentes vêm adquirindo na cultura online e que já tem tido consequências políticas muito sérias na forma da eleição de políticos e plataformas que se sustentam exatamente na ignorância, no preconceito e na exclusão. Uma consequência natural desse estado de coisas é a aversão à inteligência que estamos assistindo hoje no mundo inteiro e que no Brasil assume uma de suas expressões mais grotescas.
     Desde  muito  pequeno,  cresci  admirando  as  pessoas inteligentes e talentosas, sendo estimulado a me inspirar nelas e a levar a sério os meus estudos, pois o conhecimento era a única maneira de navegar por este mundo com qualidade e poder inclusive transcender minha condição social de membro de uma família pobre em uma cidade provinciana e desimportante. Meus professores, que eram as pessoas de saber formal mais próximas de mim, eram pessoas extremamente respeitadas. 
     O  que  eu  jamais  imaginei  é  que  chegaria  um  dia em que o saber em sua dimensão crítica seria tão vilipendiado, que intelectuais críticos seriam atacados bestialmente online e insultados nas ruas, que artistas, cientistas, pesquisadores seriam identificados como "vagabundos", que ostentar a burrice, a ignorância e os preconceitos tornasse alguém popular em seu círculo de amizade e angariasse muitos votos para políticos populistas de todos as tendências ideológicas. E pensar que já há mais de 25 séculos Platão propôs que fôssemos governados por um rei-filósofo, que até recentemente ser talentoso ou esforçado era uma distinção muito atrativa!
     Claro  que  essa  voga  da  obtusidade  é  passageira  e típica de um momento de grave crise como o que estamos vivendo. Por isso espero que você não se deixe levar por essa onda de tapados, que valorize seus estudos, a crítica de seus valores, as trocas intelectuais e os diálogos em que se fala e se ouve (fale menos, ouça mais). E que os homens e mulheres que reverencia sejam as pessoas inteligentes que realmente fazem diferença neste mundo.

domingo, 20 de novembro de 2016

Da cultura online


     Tudo  indica  que  estamos  vivendo  o  fim  de  uma  era e o nascimento de outra. Eu ainda sou de uma geração que se educou lendo livros e revistas impressos, ouvindo discos de vinil, assistindo a filmes no cinema, indo ao teatro, sonhando em possuir uma grande biblioteca. Meus professores eram autoridades intelectuais que eu respeitava e admirava. Tinha horário marcado em casa para estudar diariamente e sempre encontrava meus amigos pessoalmente, sendo as ruas, praças, campos de futebol e escolas lugares muito importantes onde minha geração vivenciava sua sociabilidade.
     Hoje  tudo  se  faz  pela  internet.  O  computador  e  o telefone celular se transformaram nos grandes mediadores da educação e da sociabilidade das novas gerações (e também da minha, pois quase todos tiveram de se adaptar aos novos tempos). Muitas vezes admiro uma figura como a minha mãe, que ainda vive em outra época. Não sabe mexer no computador, não entende nada de telefones celulares sem teclas e uma vez até achou que se tratava de algo condenável quando lhe perguntei o que ela faria se pegasse o meu sobrinho twittando por aí.
     Você  já  nasceu  na  era  da  internet  massificada  e inclusive tem com ela uma relação diferente da minha. Nada tenho contra os avanços tecnológicos. No caso da internet especificamente, só desejo que você venha a ter com ela uma relação crítica e ponderada, já que ela é ao mesmo tempo uma expressão do gênio e da bestialidade humana. Se considerarmos apenas o Youtube, por exemplo, quantos filmes extraordinários, quantos programas fantásticos produzidos no mundo inteiro, quantos vídeos originais... e ao mesmo tempo quanta tolice, quanta mentida difundida como verdade, quanta vulgaridade!
     Algo  que  sempre  me  irrita  é  como  as  pessoas  mais desqualificadas hoje em dia pensam que são obrigadas a ter opinião sobre tudo, emitindo juízos absolutamente desprovidos de conteúdo e raciocínio crítico. O pior é que parecem ter a ilusão de que isso é democracia e participação política. Ainda pior é o anonimato a proteger a boçalidade dos racistas, dos sexistas, dos fascistas, dos fanáticos de todos os matizes. Há muito deixei de ler essas pérolas da estupidez humana e decidi ficar fora das redes sociais. Preferirei sempre empenhar o meu tempo na companhia dos livros e do estudo no sentido clássico do termo. 
     Você  também  está  fora  das  redes  sociais,  e  o  livro é seu companheiro frequente. Isso já é muita coisa para que se eduque para lidar de forma inteligente com essa cultura online na medida em que for crescendo e adquirindo sua independência.

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Ser alguém

      Há  vários  anos  fui  muito  marcado  pela  leitura  do romance O Falecido Mattia Pascal, de Luigi Pirandello, que trata de um tema pelo qual o escritor italiano tinha obsessão: a construção da identidade e a necessidade que temos de representar papéis sociais. Depois de haver sido declarado morto por engano, o protagonista do livro resolve aproveitar-se da situação para fugir de uma vida medíocre e opressiva, mudando sua aparência, assumindo outra identidade e partindo para uma perambulação de cidade em cidade. De início ele desfruta de enorme liberdade, desprendido de compromissos e obrigações. Porém, depois de certo tempo, sobrevém a necessidade de se relacionar com as pessoas e fazer algo significativo. Chega a estabelecer-se em Roma, a se apaixonar por uma mulher da cidade e viver com ela uma história de amor, mas, por não poder contar-lhe a verdade, decide forjar uma segunda morte e voltar a sua cidade natal como o falecido Mattia Pascal, para desfazer-se da farsa em que vinha vivendo fazia vários anos. A essa altura, porém, tudo havia mudado também em seu local de origem, e Mattia perde tudo o que tinha: a primeira mulher, seu meio de vida, todas as referências que compunham sua humanidade. Até que ele termina não sendo ninguém.
     Neste  momento  de  transição  para  uma  vida  nova  no Brasil - que nunca abandonei e nunca deixei de amar -, lembro-me da história de Pirandello. No decorrer da vida, tenho me mudado muitas vezes de cidade, de país, de relacionamentos que se pretendiam duradouros. Nessas ocasiões, tenho tido de assumir novos papéis sociais e novas identidades, mas sem renunciar a minhas raízes. Sou um brasileiro aberto ao mundo e um menino do interior de Minas. Entretanto, como as obras de Pirandello demonstram o tempo todo, nossa identidade vem à tona a partir do que fazemos e das relações que desenvolvemos com os outros. Por isso retornarei para você, para meus amigos, para o café da tarde na companhia de minha mãe, para minha biblioteca, para meu trabalho como professor e pesquisador, para o futebol de sábado na USP. E voltarei enriquecido pelas experiências destes últimos cinco anos fora do país. Tudo isso me faz ser alguém, e ser alguém significa simplesmente ter importância para você e para as pessoas queridas, além de poder fazer algo minimamente significativo. Nisso se resume minha expectativa em relação à vida nova que terei no Brasil.

terça-feira, 15 de novembro de 2016

Despedida

     Nestes  últimos  dias,  tenho  estado  em  ritmo  de despedida. Na semana passada, almocei com minha amiga Ayley, nesta semana encontrei alguns de meus ex-alunos para um café e amanhã tomarei um vinho com o casal de amigos Jill e Conti. No sábado passado, um carpinteiro que trabalhava em outra casa onde morei e com quem eu partilhava meu almoço, quando cozinhava por lá mesmo, trouxe de sua casa um almoço que preparou, desta vez para partilhá-lo comigo antes de eu ir embora. Ainda no sábado, joguei futebol em Hackney, no nordeste da cidade, como tenho feito ao longo destes anos. Talvez tenha sido a última vez que encontrei os companheiros de bola daqui. Meu time ganhou de 6x2 e fiz 5 gols. Desconfio até que, para serem gentis e generosos em minha despedida, os adversários relaxaram na marcação e me deram muito espaço, para que eu pudesse jogar bem e fazer vários gols. Ao final, vieram me abraçar e desejar boa sorte. Ganhei até um beijo na testa, dado por meu amigo italiano Fonz.
     Embora  esteja  animado  com  a  volta  ao  Brasil  e  a perspectiva de estar próximo de você e participar mais de sua vida, sinto alguma tristeza ao me lembrar de tantas coisas boas vivi aqui e tantas pessoas marcantes que cruzaram meu caminho nesta etapa de minha vida. Quando corria à margem do rio Tâmisa, ontem à tarde, fui pensando nessas coisas a partir do momento em que ouvi "Gracias a la vida" ao telefone, cantada por Elis Regina. Tal como na canção, só posso dar graças à vida pelas oportunidades que tenho tido. Por muito tempo, quando fui estudante e pouco depois de me graduar, eu não poderia nem sonhar elas fossem acontecer.

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Uma queda anunciada


     Acordo  um  pouco  mais  tarde  do  que  o  normal,  por haver me deitado tarde ontem, e vou ao computador verificar o resultado das eleições para presidente dos Estados Unidos, cujos dois principais candidatos estavam praticamente empatados. Foi com desolação que soube da vitória de Donald Trump, um bárbaro que não escondeu sua grosseria durante a campanha e fez uso do populismo e do histrionismo mais reles. Este é o ápice de um ano infausto em que as forças políticas mais retrógradas, eivadas de fascismo, conseguiram manipular as massas despolitizadas através da mentira e de um discurso redentor de solução fácil de nossos problemas. Aí estiveram a grande imprensa a serviço das oligarquias para lhes dar suporte e a inconsciência das redes sociais para reverberar o vazio desses "formadores de opinião" na forma de mais um entretenimento. Embora essa loucura toda vá certamente resultar no crescimento das desigualdades, no aprofundamento do preconceito e da exclusão, na radicalização dos conflitos e aumento da violência, em mais invertebração das sociedades, criminalização da pobreza, desmoralização da educação, ataque aos direitos da cidadania, deslegitimação do passado, substituição do valor pelo preço, talvez haja no atual emburrecimento do mundo algo de positivo: o apodrecimento da velha ordem herdada do século XX deve mesmo ser necessário para que ela caia definitivamente e seja substituída por outra que ainda está por ser criada. 
     Torna-se  cada  vez  mais  claro  que  a  democracia representativa como a temos hoje é um sistema fracassado em todos os quadrantes da Terra. É preciso buscar aperfeiçoar e desenvolver as formas de democracia participativa e regulamentar os meios de comunicação, estabelecendo com clareza os seus limites.
     Penso agora na "Parábola dos cegos", de Pieter Bruegel, o Velho, que nos remete à cegueira dos que caminham, em vida, seguindo os outros e não buscando seu próprio caminho. A trajetória miserável que a inconsciência política escolheu de forma tão indubitável - da qual o Brasil é um exemplo dos mais grosseiros - representa perfeitamente um tempo em que estamos sendo guiados por cegos. Como na conclusão da parábola cristã, a queda será inevitável. Resta saber de onde cairemos, se conseguiremos nos levantar e o que faremos depois.

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Assuntos

     Tentamos  conversar  ao  menos  uma  vez  por  semana, embora você às vezes seja muito relapso ou esteja muito envolvido com seus estudos em casa. Geralmente batemos um papo pelo Skype na segunda-feira, às 6 da tarde para você e às 10 da noite para mim. Gosto de ouvi-lo e também de falar, mas procuro ouvir mais que falar. Em geral nossas conversas - à distância e também quando nos encontramos - passeiam por uma ampla gama de assuntos: viagens, livros, esportes, filmes, música, fotografia, jogos eletrônicos, lembranças, gastronomia, humor, o que estamos fazendo ou vamos fazer, amigos, pessoas da família, escola, animais, problemas brasileiros, saudade, lugares em São Paulo e Minas, dificuldades e desafios, perigos, novidades... Essas trocas de ideias e experiências nos mantêm juntos como pai e filho, como boas referências neste mundo em que tanto se fala e pouco se diz, em que tanto se escuta e pouco se ouve.

sábado, 5 de novembro de 2016

Profissões

     Quando  você  era  um  bebê,  pouco  tempo  depois  de nascer, sempre que algum amigo vinha nos visitar, eu gostava de brincar mostrando-o deitado no berço, enquanto dormia, e dizer: "Veja, ali está dormindo um revolucionário escritor, um controvertido diretor de cinema, um impetuoso centroavante". Claro que eram projeções de pai. 
     Em  agosto  do  ano  passado,  quando  o  encontrei  pela última vez, você me disse que gostaria de ser um alquimista. E há alguns meses, numa conversa à distância, disse que pretende ser chefe de cozinha. E quando me conta sobre seus jogos de futebol, embora não seja um centroavante, como eu, relata seus gols e assistências como meio-campo, revelando-se um excelente jogador. Seja o que for em que vier a se tornar, eu o apoiarei e saberei que o fará com amor. Neste momento, alegro-me pelo fato de minhas profecias de recém-pai já terem se realizado ao menos em sua atração pelas atividades criativas e pelo esporte.
     Eu,  que  praticamente  não  tenho  uma  carreira  e costumo navegar por umas três ou quatro profissões diferentes (professor, tradutor, editor, comerciante), gostaria que você tivesse caminhos mais fáceis, mais estáveis e mais rapidamente compensadores que os que tenho tido. Mas este não é o momento de tratar desse assunto. Que por agora você esteja apenas brincando, aprendendo bem as coisas básicas e desfrutando de seus 11 anos.

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Para caminhar nas trevas


     Neste  que  é  um  dos  piores  momentos  da  história brasileira, em que o país foi tomado de assalto pelos canalhas e em que o grosso das pessoas tem exibido o mais boçal analfabetismo político, costuma-se pensar no papel transformador da cultura como antídoto à tacanhice. Por isso espero que você esteja lendo bons livros, assistindo a bons filmes, vendo boas exposições, dialogando com as pessoas, revisando e criticando aquilo em que você acredita. Uma das coisas que mais me inquietam na separação e na distância em que vivemos é não saber muito bem como você vem sendo criado, que valores tem partilhado, o que tem feito, com quem e como tem dialogado, se de fato convive com a enorme variedade de gente e culturas que caracteriza o Brasil e que se mostra de forma evidente numa megalópole como São Paulo. Assim que eu puder retornar à cidade, quero levá-lo comigo para experimentar muitas coisas para além do casulo de mediania e provincianismo das classes médias. E vamos ler juntos, conversar muito, fazer coisas juntos e juntamente com gente que pensa e faz coisas diferentes e criativas. Espero poder ter um quarto para você em minha casa, com uma estante para seus livros e uma escrivaninha onde poderá sentar-se para ler, escrever, concentrar-se. Para lá você poderá vir quando quiser e poderá permanecer por quanto tempo desejar. Então resgataremos um pouco da vida inteira que temos perdido em virtude das desilusões do passado e das necessidades do presente.