segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Lá e cá


     Nestes  dias  na  casa  de  minha  mãe,  imerso  no provincianismo do interior de Minas, tenho tido um sentimento de haver me tornado um estranho em minha terra natal, onde vivi até os 23 anos, sendo também obviamente um estranho na terra estrangeira onde tenho hoje meu endereço. Mudei eu, mudou minha terra natal. Mas prefiro pensar como os antigos latinos: Ubi bene ibi patria.
     Este  foi  um  ano  de  muitas  viagens  para  lugares distantes em várias partes do mundo, com muitas descobertas de novos estilos de vida e diferentes formas de organizar a vida. Mas pude ver que por todo lado essas grandes variações são coisas relativamente superficiais, pois nossos sonhos, nossos planos, nossas expectativas são muito parecidos. Em essência, o ser humano é o mesmo em todos os lugares.
     Dentro  de  mais  alguns  dias,  retornarei a Londres, a minhas corridas às margens do Tâmisa, ao frio de janeiro, ao convívio com meus alunos. E voltarei também a meus planos de viagens para 2015: Índia, Mongólia, Irã, China, Eslovênia, Letônia, Tunísia... O mundo está sempre nos chamando.
     Quando chego a um novo país,  a  um lugar diferente, quando me relaciono com as idiossincrasias de pessoas de culturas diversas, uma de minhas primeiras preocupações é comprar um cartão-postal e lhe enviar, a fim de compartilhar com você um pouco de minhas descobertas e experiências na terra nova. Gostaria que chegasse logo o tempo de sua independência, para que possamos fazer algumas viagens juntos. Isso será a conjugação de dois prazeres, o da própria viagem e o de estar juntos, tal como no tempo em que vivíamos juntos e viajávamos pelos limites do bairro e das ruas próximas com você sentado sobre meus ombros. Aquele foi um tempo de grandes descobertas e de conversas memoráveis.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Véspera de Natal na cidade natal

     Agora  pela  manhã,  justamente  após  passar algumas horas mergulhado na leitura de Os Demônios, de Dostoiévski, parei numa passagem em que membros de uma organização criminosa discutem sobre um triplo assassinato e um incêndio criminoso cometido na cidadezinha onde vivem, nas imediações de São Petersburgo. O que eu não imaginava é que, fechando o livro para descansar um pouco os olhos, presenciaria e faria parte de um episódio que parece tirado das páginas do grande escritor russo, que tanto tratou da loucura dos homens e do caos da vida em suas obras.
     Ao  ir  da  biblioteca  para  o  quarto,  ouvi,  vindo da rua, uma voz de mulher gritando por socorro. Quando cheguei à entrada da casa, diante da movimentada rua onde mora minha família, vi um homem sair correndo de uma loja de móveis que fica quase em frente e alguns motoqueiros partindo em sua perseguição. Foi uma tentativa de roubo ao estabelecimento. Um pouco abaixo, o sujeito foi agarrado pelos motoqueiros, agredido e imobilizado no chão, a cerca de 100m da casa de minha mãe, diante de uma floricultura. Em questão de minutos, houve uma aglomeração de pessoas em torno do criminoso, que estava estendido no chão, e o trânsito tornou-se lento, num irresistível voyeurismo de nossos motoristas diante da violência.
    Chamaram  a  polícia,  mas  os  homens  dessa imponderável instituição simplesmente não compareceram. Em vez disso, após cerca de 20 minutos, vieram dois carros do Corpo de Bombeiros. Nesse meio tempo, me aproximei da turba que cercava o ladrão. Tratava-se evidentemente de um coitado de cerca de 30 anos, vestido em andrajos e descalço, a própria imagem de todas as privações. Diante de guirlandas natalinas penduradas na entrada da floricultura, alguns de nossos melhores e mais angelicais cidadãos lhe dirigiam terríveis palavrões, proclamavam que se deveria matar um tipo como aquele e lhe desferiam pontapés. Acabei intervindo, batendo boca e trocando empurrões com um Charles Lynch de província que o estava chutando. Houve uma divisão entre os que eram pró e os que eram contra descarregar violência contra o sujeito ali deitado. Até que os bombeiros chegaram, socorreram brevemente aquele indesejável e colocaram-no em seu carro, levando-o para não se sabe onde, talvez para uma delegacia de polícia. 
     Assim é agora o Natal divinopolitano.

domingo, 21 de dezembro de 2014

Mais um retorno de Natal

     E  de  repente  vim  para  o  Brasil.  Cheguei já às vésperas do Natal e tive de viajar diretamente para Minas, devendo encontrá-lo somente em janeiro, já depois do Dia de Ano Novo. Tenho sempre um sentimento profundo toda vez que retorno, não importa quantas vezes isso tenha acontecido nos últimos anos. Onde quer que eu tenha estado, o Brasil está comigo, e voltar é também um reencontro comigo mesmo, com minha formação, meu presente e meus projetos.
     Após  uma  súbita  mudança  de  planos  para o fim do ano, chego à casa de minha mãe e, ao descarregar duas grandes malas - em boa parte cheia de livros - no quarto que ainda tenho por aqui, vejo no porta-retratos sobre a cômoda uma imagem em que você me dá um beijo. Estou feliz ante a perspectiva de reencontrá-lo em breve e tenho algumas surpresas do Velho Mundo para meu menino. Dentro de algumas semanas, São Paulo que nos aguarde!

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Correndo na amplidão
















     Olhando  esta  fotografia  hoje,  tirada da janela de um ônibus em viagem pela zona rural do Marrocos, há pouco mais de um mês, me lembrei de suas temporadas na casa de minha mãe, em Divinópolis, quando íamos para os bairros novos, cujas terras haviam sido preparadas havia pouco tempo para a construção de novas moradias. Naquelas amplitudes ao ar livre, também corríamos por entre a poeira e a terra vermelha do interior de Minas, subíamos e descíamos barrancos, lutávamos sobre montes de areia, algumas vezes caminhávamos na chuva.
     De  volta  a  nossas  vidas  em  cidades  grandes, com o Oceano Atlântico de entremeio, esta é uma boa memória de sua infância e de minha experiência de pai. Gostaria neste momento de que estivéssemos novamente em Minas e na casa de minha mãe. Nossos fins de tarde seguramente teriam dessas correrias na amplidão desértica, agora com você mais rápido e mais forte. Será que me venceria em nossas disputas de 50m rasos?

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

O fim do ano

     O  ano  já  está bem perto do fim. Gostei de 2014. Estou num bom momento de minha vida e tenho tido oportunidade de fazer coisas interessantes, de descobrir novos lugares e conhecer novas pessoas. Também tem sido um ano em que, se não tenho publicado muita coisa, ao menos tenho podido ler livros muito bons. A propósito, sempre que conversamos, costumo lhe perguntar que livro está lendo. Como resposta, geralmente recebo interessantes resumos de histórias de aventura, obras com adivinhações e trava-línguas, narrativas com personagens infanto-juvenis atualmente em voga.
     Há  alguns  dias,  fui  bem  surpreendido quando você me contou que agora tem um blog e que está escrevendo regularmente uma série de recomendações culturais, esportivas e de lazer ou simplesmente contando episódios marcantes do seu dia a dia. Fiquei feliz ao ler seus pequenos textos, que possuem uma linguagem correta, bem articulada e fluente, com ideias muito coerentes. Se eu tiver um filho escritor, serei o mais orgulhoso dos pais. 
     Vi que na última entrada você tratava do título do Galo na Copa do Brasil, falando em mim, em nossa troca de mensagens e em nossa comemoração. 
     Que  em  2015  as  coisas  continuem correndo bem e que possamos estar mais próximos e nos comunicar mais.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Um coração simples


     Anteontem  estive  na  Casa  da  Ilustração,  tendo escrito aqui sobre as lembranças de nossos passeios sem rumo pelas ruas que um dos desenhos ali expostos me provocou. Agora há pouco, remexendo na estante a fim de separar alguns livros para enviar para o Brasil, encontrei este seu desenho, enviado para mim no mês passado, por ocasião de meu aniversário. Se eu elogiava a simplicidade expressiva do desenho visto no museu, tenho de elogiar a ternura da simplicidade do seu coração, em que pai e filho estão unidos para sempre. Este é também o meu coração. 

sábado, 6 de dezembro de 2014

Uma ilustração de pai e filho


     Há  em  Londres  todo  tipo  de  museu. Vivendo aqui há alguns anos e já conhecendo todas as grandes instituições, tenho agora explorado as pequenas. Algumas são muito interessantes. Hoje, por exemplo, estive na Casa da Ilustração, que possui uma excelente e muito criativa coleção de desenhos, boa parte deles feitos para livros destinados a crianças e adolescentes. 
     Esta  foi  uma  visita  que  gostaria  de  ter  feito  com você, que adoraria as ilustrações ali expostas. Esta, por exemplo, muito expressiva na simplicidade de suas linhas, me fez lembrar de nossos passeios pelas ruas de Divinópolis, São Paulo e Belo Horizonte. Geralmente andamos assim, de mãos dadas, em especial nas ruas das duas metrópoles. Como o menino do desenho, você tem essa curiosidade pelas coisas do mundo, sobre as quais sempre me faz inúmeras perguntas. E eu sempre as respondo, ainda que tenha de temperar minhas explicações com alguma fantasia.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Por que lhe escrevo

     Por  que  lhe  escrevo?  Talvez  pela  vida inteira que nos foi roubada. Talvez pela triste e enorme distância que hoje nos separa. Talvez para elaborar a raiva e a frustração que já senti, fechando definitivamente todas as feridas da alma. Talvez ainda porque a palavra escrita se mantém, e um dia, quando você for maior, poderá compreender que jamais o abandonei. 
     Hannah  Arendt,  ao  tratar  de  um  momento  em  que a humanidade havia dado livre curso à besta-fera que existe em nós e racionalmente cometido atos da maior brutalidade, escreve que só humanizamos o mundo quando ele se torna objeto de discurso. Portanto, só podemos humanizar o que está acontecendo no mundo e em nós mesmos quando falamos sobre isso. E é no processo de falar sobre isso que aprendemos a ser humanos, pois ao falar partilhamos o mundo com outras pessoas.
     Portanto  lhe  escrevo  para  partilhar  o  mundo  com você, para ser o pai possível nestas circunstâncias, para reforçar e estreitar nossos laços, que, a despeito de todas as adversidades que enfrentamos, jamais se partiram.