terça-feira, 27 de maio de 2014

Através do Atlântico

     Amanhã partirei para o Brasil, onde minha cabeça e meu coração já estão, ou melhor, de onde nunca saíram. Vou com duas grandes malas muito pesadas e uma grande mochila. Estou cheio de livros que comprei aqui nos últimos seis meses, alguns muito volumosos. Também levo-lhe uma surpresa. Porém, dia desses, quando conversamos, você me disse que eu não deveria ter lhe contado isso...
     Já estou com o espírito da Copa do Mundo e, mais ainda, com o espírito de jogar futebol com você, que me contou estar com um chute fortíssimo. Já sei que terei de ser goleiro e tentar defender centenas de seus tiros livres de curta e média distância. Pena que, como sempre, não poderemos ficar muito tempo juntos. Mas este é um momento de boa expectativa e felicidade. Quero lhe contar sobre minhas viagens recentes e ouvir sobre o que você tem feito. Durante a noite de amanhã, quando estiver cruzando o Atlântico, alguns flashforwards das coisas que experimentarei no Brasil durante os próximos dois meses cruzarão minha mente, já que não consigo dormir em avião.
     Quero ver o seu álbum da Copa e também apreciar ao vivo suas habilidades ao violão. E vamos ler poemas juntos, almoçar juntos e, quem sabe, assistir juntos à estreia do Brasil no torneio contra a Croácia, no dia 12 de junho. Nem precisa dizer que estou morrendo de saudade de você!

sexta-feira, 23 de maio de 2014

D. Deolina e suas benzeções

     Nesta semana sonhei com minha infância, mais precisamente com um episódio de minha infância: as benzeções de D. Deolina. Essa prática situa-se no contexto do sincretismo do catolicismo com as religiões africanas no Brasil. Me recordo de que, quando os meninos de nossa vizinhança tinham problemas de pele, o que era relativamente comum em virtude de andarmos descalços por ruas de terra, nadarmos em córregos não muito limpos e estarmos sempre em contato muito próximo com animais domésticos, nossas mães nos mandavam ir pedir a D. Deolina que nos benzesse. Me lembro de várias ocasiões em que toquei a campainha de sua residência, que ficava quatro ou cinco casas distante da nossa, na rua Passa Tempo. Quando ela aparecia, já velhinha e enrugada, eu dizia, pleno de inocência: "Ô D. Deolina, a minha mãe pediu para a senhora me benzer". Então ela me fazia entrar e benzia o local afetado por perebas e furunculoses com um raminho de arruda e rezas acompanhadas por bocejos. Pelo que me lembro, funcionava, pois em pouco tempo essas erupções desapareciam.
     Se nunca vivi no campo, sou um filho da cultura caipira, pois tanto meu pai quanto minha mãe, que se conheceram em Divinópolis no fim dos anos 1960, nasceram e se criaram em regiões rurais do centro-oeste de Minas. Minha mãe preserva até hoje um rico acervo de histórias da roça envolvendo lendas, mitos, assombrações e acontecimentos estranhos, além de encontros com cobras venenosas e até onças. Se fui para a universidade, escrevi livros, vivi em São Paulo por dezesseis anos e hoje moro em outra metrópole mundialmente reconhecida, nunca perdi minhas raízes. Apesar de nunca ter sido um caipira, tenho o maior respeito por essa cultura, que é muito rica.
     Me lembro agora de uma ocasião, quando você tinha pouco mais de um ano, em que o levei para benzer, pois seu estômago doía com frequência. Isso o fazia acordar frequentemente no meio da noite, não deixando ninguém na casa dormir. A benzedeira, uma velhinha de quase 80 anos, benzeu-o no meu colo e disse que estava sentindo em mim algumas energias negativas. Acabou por me benzer também, emitindo longos bocejos. Parece que a quantidade e a extensão dos bocejos indicam o grau de esforço que a benzedeira tem de fazer para livrar alguém de negras nuvens que pairam sobre seu ser.
     Sou um homem sem fé. Deus, se é que existe, é no mínimo um tremendo omisso. De todo modo, sou aberto a essas manifestações de generosidade e solidariedade por parte de gente boa e simples do povo.

domingo, 18 de maio de 2014

Uma luz na noite

     "Se escrevo é talvez para não ficar só comigo, como acendemos um candeeiro à noite, quando temos medo." Assim escreveu Flaubert numa carta a sua companheira Louise Colet em dezembro de 1852. Sinto que lhe escrevo pela mesma razão. Um dia, quando você for mais maduro e tiver mais consciência das coisas, seguramente também não se sentirá sozinho ao saber que seu pai estará sempre a seu lado. E que, nesta etapa da vida em que ele está tão longe, nunca deixou de pensar em você, de desejar sua companhia e seu amplo sorriso por perto.
     Se lhe escrevo, sem dúvida é para acender uma luz na escuridão das circunstâncias que nos separaram e que têm nos mantido assim. Mas tudo está mudando o tempo todo, e a vida é muito vasta. Ainda chegará o dia de estarmos juntos. 

segunda-feira, 12 de maio de 2014

Dançando a vida


     Já estou no ritmo deste dançarino de uma pintura que vi na Malásia, o qual já contagiou até mesmo a dupla de galinhas. Falta exatamente um mês para o início da Copa do Mundo no Brasil. Já estou começando a me organizar, pois em pouco mais de duas semanas partirei para São Paulo, onde pretendo encontrá-lo para saber de sua vida e também para jogarmos futebol juntos novamente.
     É sempre uma felicidade a perspectiva de revê-lo. Os próximos dois meses terão muitos dias marcantes. Gostaria de ter a oportunidade de assistir a um jogo do Brasil com você. Já tenho até o lindo pendão da esperança para nos acompanhar.
     Nesta semana que está começando, bem como no decorrer da vida, quero a alegria deste dançarino em nossas vidas. Assim já tem sido quando nos encontramos.

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Do meu bebê ao meu rapaz

     Ontem eu repassava uma série de fotos de você bebê, além de um filme em que aparece em seu primeiro dia neste mundo. Em várias imagens, estou pegando-o no colo com um olhar orgulhoso de recém-pai. Me lembro de algumas visitas ao hospital, a quem eu costumava dizer, apontando para você dormindo no berçário: "Ali está um polêmico diretor de cinema, um atacante do Galo e artilheiro da Copa de 2026, um imaginativo escritor...".
     Comparando tais fotografias com as últimas que tenho de você, vejo como as coisas mudaram. Meu bebê se transformou num rapazinho esguio e de vasto sorriso. Na liberdade de seus nove anos, não tem idade para realizar aquelas atividades de que eu me vangloriava para as visitas, mas possui sensibilidade para as artes e é excelente jogador.
     Hoje, quando algum amigo me pergunta por você, sigo falando com orgulho de seus talentos e sua inteligência. Para onde quer que deseje direcionar sua vida, espero poder dialogar consigo sobre suas possibilidades e apreciar suas realizações, ainda que o cinema, o Galo, a Seleção Brasileira ou a literatura venham a sofrer com a perda de suas habilidades, ainda que você fique fora do circuito da fama e do prestígio popular.

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Para além da ficção

     Acompanho diariamente o que se passa no Brasil. Muitas vezes fico desanimado com as notícias relacionadas ao lado mais desolador de nossa realidade: a elite vagabunda e violenta que temos, nossa classe média em grande parte tão burra e tão reacionária, nossa polícia tão povoada de bandidos sanguinários, nossa grande imprensa tão mercenária e tão engajada no proselitismo ao que há de mais retrógrado no país, nossa vida intelectual tão medíocre, nosso complexo de vira-latas que nos faz alardear ao mundo todos os nossos defeitos.
     No plano do fait divers, não faltam os mais inconcebíveis absurdos. Para ficar apenas na semana passada, vale lembrar o roubo de um leão num criadouro no interior de São Paulo e a morte de um torcedor de futebol no Recife, atingido por um vaso sanitário atirado por torcedores rivais. Nossa realidade, pelo visto, vai muito além da ficção. Nem um Kafka, nem um Beckett, nem o recém-falecido García Márquez, por exemplo, imaginaram nada do gênero em suas obras.
     Nem vale a pena entrar no campo da política neste ano de eleições para presidente. A baixaria mais bestial já está à solta, com jornalistas integralmente comprometidos com as campanhas de seus patrões, a quem prestam vassalagem enquanto atacam a atual mandatária.
     Desejo que você possa encontrar, ao longo da vida, espaços de diálogo com pessoas criativas e bem educadas, a fim de escapar desse circo de besteiras que tem feito parte de nosso dia a dia. Que possa ler bons livros, viajar, produzir algo que exprima sua unicidade e sua sensibilidade. E que consigamos ao menos iniciar reformas estruturais no Brasil.

domingo, 4 de maio de 2014

Rio de Heráclito

     Tudo é movimento, como observou um dos primeiros filósofos gregos. Sendo assim, tudo está se modificando o tempo todo. Se, por um lado, isso nos coloca numa situação de insegurança pela imprevisibilidade, por outro nos torna mais criativos e mais flexíveis, especialmente se temos a morte em perspectiva.
     Essas ideias sempre me vêm à cabeça quando penso na situação em que estamos, com toda essa distância entre nós e suas consequências sobre a sua e a minha vida. Um filho pequeno deveria estar junto de seu pai, inclusive para ter a consciência de ser positivamente protegido dos perigos do mundo e desenvolver a capacidade de ousar, já que os pais geralmente são aqueles que propõem desafios para seus filhos e fazem-nos encarar alguns pequenos perigos. Mas se tudo é movimento, o estado de coisas vigente hoje haverá de se modificar e um dia estaremos mais próximos.
     Nesta noite de sábado, estou em casa com um ombro dolorido após um problema num jogo de futebol. Em meio à avaliação de alguns ensaios de meus alunos na universidade e à audição de algumas canções do passado, penso em você. Espero que meu filho seja uma pessoa interessada pela leitura dos grandes livros, pela cultura e a arte em geral. Vou sempre presenteá-lo com livros e conversar com você sobre eles, esteja eu aí ou aqui.
     Gostaria que soubesse que já não vejo a hora de estar em São Paulo durante a Copa do Mundo. Imagino que você já esteja trabalhando em seu álbum de figurinhas dos jogadores de cada seleção, mas também que esteja lendo seus livrinhos. Na sucessão dos dias, está também em processo uma pequenina mudança que nos permitirá estar juntos por alguns momentos dentro de mais algumas semanas.