domingo, 31 de maio de 2015

É o Saci!


     Às  vezes  falo  às  pessoas  daqui  a  respeito  de nossas tradições populares, de nossas comidas, de nossas lendas e mitos. Chego a mostrar um livrinho que publiquei  há alguns anos, recontando à minha maneira algumas histórias do nosso povo, livrinho esse que reúne histórias que eu costumava lhe contar quando você ia dormir. Tal como acontecia com você, muitos por aqui ficam fascinados com a riqueza do imaginário brasileiro.
     Ao  sentar  aqui para escrever, penso no Saci Pererê, que, por volta dos seus cinco anos, divertia-o com suas molecagens. Minha mãe, que foi criada na roça, garante que uma vez, quando menina, junto a uma plantação de arroz, estando em companhia de minha avó, viu-o e correu para casa, assustada. Mas antes lançou para trás um pedaço de corda cheio de nós, pois é sabido que ele costuma parar para desfazer nós. 
     A  popularidade  do  Saci  parece  realmente  grande, pois, a despeito de a cultura caipira praticamente já estar morta e da sufocante modernidade em que hoje vivemos, este que aqui aparece foi pintado num muro de São Paulo, talvez o lugar mais anti-Saci Pererê do Brasil.
     Talvez  eu  tenha  pensado  hoje  no  famoso negrinho de uma perna só para lembrar-lhe de ter sempre um espírito aberto para nossas tradições e também para o conhecimento que vem de fora das escolas e dos livros, conhecimento esse que diz muito sobre o que somos e como somos. Por exemplo, há muito da molecagem do Saci Pererê em nossos Garrinchas, em nossos Macunaímas, em nossas Carmen Mirandas, figuras geniais da nossa civilização. Portanto, que sua cultura possa ir de Mozart ao reinado, da ópera à capoeira, de Platão aos proverbos populares, de Fellini ao forró.

quarta-feira, 27 de maio de 2015

Um pai fictício

     Terei  uma  temporada  de  pelo  menos  dois  meses  e meio sem ter de comparecer à universidade. Este é um período de pesquisa, mas tenho pensado em, paralelamente à pesquisa, escrever um romance com um protagonista inspirado em meu pai. Ele foi uma figura excelente para uma obra ficcional, em virtude de suas contradições e seus excessos.
     Recentemente  li  Um Bom Filho,  relato autobiográfico do filósofo e escritor francês Pascal Bruckner sobre seu pai, que foi um tirano doméstico, um admirador do nazismo e uma antologia das tolices mais espúrias. Talvez eu não tenha muito estômago para expor, como Bruckner, as misérias de meu próprio pai, inclusive por eu mesmo possuir as minhas, tendo evitado julgá-lo agora que ele está morto. Por isso prefiro o registro da ficção, fazendo com que sua personalidade se construa conforme as necessidades da história e inventando coisas que não correspondem à realidade do que ele foi.
     Não  sei  onde  isso vai dar, se é que vai dar certo. Mas já tenho inclusive um plano da história, sabendo como ela vai começar, desenvolver-se e terminar. Tenho pensado no tom da linguagem e se ele mesmo aparecerá falando e se expondo ou se será, em grande parte, apresentado por outro personagem, provavelmente um filho, que conta e comenta suas ações. Tenho até um título provisório: Em Nome do Pai. Mas tenho certo receio construir uma imagem muito negativa dele, pois, para efeito literário, temos sempre de exagerar um pouco as coisas. Tenho inclusive certo receio do que você pensará sobre a desarmonia do lar em que me criei. Mas a vida não é nenhum parque de diversões, como você já deve saber. Não tenho por que me refrear por causa disso.

terça-feira, 26 de maio de 2015

Stonehenge


     Ontem  foi  feriado  por  aqui,  e  decidi  tomar um trem na estação perto de casa e ir até Salisbury, que é uma cidadezinha bastante graciosa, partindo de lá para Stonehenge, que fica por perto. A famosa e impressionante construção de mais de 5 mil anos, cujas origens e finalidades permanecem misteriosas, é um lugar que gostaria de lhe mostrar um dia. 
     Lembro-me  de  Stonehenge  como  plano  de  fundo ou descanso de tela de muitos computadores nos anos 1990. Nunca havia pensado que estaria diante daquelas pedras um dia. 
     A  curta  viagem  até  lá  valeu a pena também pela oportunidade de passear pelos campos no entorno do monumento. É primavera e eles estão bastante floridos. Infelizmente o frio ainda não nos deixou, o que podia ter tornado tudo mais agradável. Mas foi uma experiência de beleza que valeu a pena.

sexta-feira, 22 de maio de 2015

Minha mensagem ideal

     Numa crônica que é uma das páginas de mais profunda poesia na literatura brasileira, Rubem Braga diz que seu ideal seria escrever uma história tão engraçada que trouxesse o riso e a alegria a uma moça doente e reclusa de uma casa cinzenta de seu bairro. E que, a partir de então, sua história de espírito chapliniano se espalhasse pelo mundo, divertindo as pessoas e fazendo com que elas se tornassem mais generosas e mais humanas.
     Pensei  no  ideal  de  Braga  ao  imaginar  a  mensagem ideal que gostaria de escrever para meu filho. Sem dúvida seria também um texto bem-humorado, que o faria rir muito e dizer: "Mas o papai é muito engraçado!" Seria simples, terna e intensa como um abraço no momento de um encontro após longo tempo sem nos vermos, dizendo coisas essenciais. Seria concisa, de modo a atingir sua sensibilidade de forma direta e franca. Conteria o sentido de proteção e segurança de nossas mãos dadas ao atravessar uma rua movimentada de São Paulo, o encanto das lendas e mitos que eu lhe contava à beira da cama, quando você ia dormir, o ânimo de nossas conversas durante os passeios pelas ruas dos bairros de Divinópolis, com você sentado sobre meus ombros. E conteria também o brilho de seus olhos diante de tudo o que veem, o interesse pelo mistério do mundo que dispara suas inúmeras perguntas...
     E  que  essa  mensagem  pudesse  ser  lida por outros pais e outros filhos, fazendo com que eles também rissem - se possível juntos -, se abraçassem, se respeitassem e desfrutassem da alegria de se saberem amados e de não estarem sozinhos neste mundo.

segunda-feira, 18 de maio de 2015

Dos bens não contáveis

     Vivemos  num  tempo  em  que  tudo  se  mede por sua utilidade e seu valor pecuniário. O mercado tornou-se uma religião que, como toda religião, possui seus dogmas e gera seus fanáticos. Os publicitários tornaram-se os novos sacerdotes. E o shopping center, essa catedral do consumo, passou a ser o lugar aonde se vai para exercitar uma fé que se confunde com uma compulsão de comprar. No entanto, se as religiões tradicionais celebram uma experiência coletiva e comunitária, a religião do mercado é a celebração do individualismo mais boçal e alienado.
     Vivendo na capital mundial dos shopping centers, sendo vizinho de um deles, espero que você esteja tendo a possibilidade ter como cenário de sua vida lugares mais interessantes, como as ruas, os parques, as praças, as estradas, os campos de futebol, o teatro, a escola, as feiras livres. E que possa conviver também com pessoas diferentes daquelas pertencentes à classe média paulistana, que, em sua grande maioria, é composta por reacionários, preconceituosos, ignorantes, atrasados e mal-educados, ainda quando possuem formação universitária e exercem profissões liberais.
     Acima  de  tudo,  desejo  que  você  saiba  valorizar o que não pertence estritamente à ordem da utilidade e do que pode ser medido em números. Tais coisas a jamais se perder de vista se resumem aos grandes temas que nos tornam humanos, como o amor, a poesia, o erotismo, a contemplação da natureza, a solidariedade, a amizade, o respeito pela vida em comunidade e o bem público, ou seja, tudo aquilo que o livrará da mesquinhez, da avareza espiritual, da mediocridade pecuniária e da compulsão maníaca de acumular. Claro que você deverá cuidar de seu bem-estar material, o que também é importante. Apenas busque-o com dignidade e mantenha esses bens maiores sempre em seu horizonte.

sábado, 16 de maio de 2015

Porcos-espinhos

     De  vez  em  quando  recebo  mensagens  de  pessoas desconhecidas que leem o que escrevo aqui. Em sua maioria são pais e até algumas mães apartadas de seus filhos que se identificam com meus textos. Em geral me contam suas dificuldades, expressam sua tristeza e mencionam a ausência de rancor na forma como tenho buscado viver a paternidade que me é possível.
     Quando  comecei  a  escrever  neste  espaço,  pensei que em pouco tempo os assuntos talvez se esgotassem. Mas fui percebendo aos poucos que havia todo um acervo de lembranças do tempo em que vivíamos juntos e eu cuidava de você, de suas temporadas na casa de minha mãe e dos fins de semana que pudemos passar juntos, dos contatos que temos tido após eu vir morar num outro recanto deste mundo, com um oceano entre nós. Além disso, há tudo o que nos acontece e tudo o que nos surpreende no dia a dia e que vale a pena ser comentado, compartilhado, analisado. E há as nossas brincadeiras. A vida de uma pessoa é sempre muito complexa, e o mundo é ao mesmo tempo essa imundície e essa maravilha que conhecemos.
     Schopenhauer costumava comparar as relações humanas a dos porcos-espinhos. Quando eles querem se aquecer, aproximam-se uns dos outros, mas se ferem. Com isso, têm de se distanciar. Porém, quando distantes, sentem frio. De modo que têm de se reaproximar e se distanciar até que encontrem a proximidade adequada para suportar a dor produzida pelos espinhos alheios e poder se proteger do frio. Assim são realmente as nossas relações: uma constante busca de ajustamento. Em nosso caso, tivemos de nos ferir muito até encontrar nosso lugar, nosso calor e nossa paz. Esse ajustamento, no entanto, é flexível e vai mudando conforme as circunstâncias de nossa vida. Acredito que inclusive estaremos muito mais próximos na medida em que você for crescendo e se tornando mais independente.
     Nas circunstâncias atuais, no mínimo temos as nossas palavras, que nos proporcionam um mínimo de liberdade e lucidez na escuridão e no mistério da vida.

sábado, 9 de maio de 2015

Com o Guarani em Londres


     Acabo  de  chegar  de  um  jogo  de  futebol  para  o qual me convidam a cada duas semanas. O campo fica no norte de Londres, perto do estádio do Arsenal. É sempre um time de camisa branca contra um time de camisa vermelha, e o nível técnico dos jogadores, em geral uns dez anos mais jovens que eu, é bom. Hoje fiz parte da equipe branca. Ganhamos por 5x3. Joguei bem e fiz quatro gols, inclusive dois de cabeça.
     Quando  jogo  no  time  branco,  costumo  ir  com uma camisa do nosso Guarani, cuja única aspiração no Campeonato Mineiro tem se limitado a não cair para a segunda divisão e, se possível, tentar dificultar as coisas para Atlético e Cruzeiro quando os enfrenta, o que muito raramente acontece. Não foi sempre assim. Quando eu era menino, no final da década de 1970 e início da de 1980, meu pai às vezes me levava ao estádio no bairro Porto Velho - onde na adolescência eu viria a jogar muitas vezes -, para ver um excelente Guarani, que tinha  jogadores como Gilberto Voador, Catatau, Fernando Roberto, Coca, Prego, De Paula. Este último, que mais tarde, após o fim da carreira, seria assassinado durante um assalto, era vizinho de nossa família no bairro Afonso Pena e nosso amigo, excelente lateral direito e grande figura. Mesmo o grande Galo de Toninho Cerezo e Reinaldo sempre tinha muitas dificuldades para ganhar daquele Guarani em Divinópolis. Até que o futebol foi se tornando cada vez mais elitizado, sendo os campeonatos estaduais completamente dominados por dois ou três clubes todo-poderosos contra quem os pequenos não têm chances.
     Voltando  ao  jogo  de  hoje,  minha  camisa  do Guarani, que nem patrocínio tem, desfilou em campo entre camisas brancas ou vermelhas do Arsenal, do Manchester United, do Liverpool, do Milan, do Real Madrid, do Bayern de Munique, das seleções da Alemanha, da Inglaterra e da Espanha, quase todas exibindo no peito logotipos de grande empresas. Entre esses gigantes do business futebolístico, lá estava eu quixotescamente fazendo meus quatro gols e dando minhas pedaladas com a camisa do nosso humilíssimo Guarani. Outro dia me perguntaram se se trata de um time da segunda divisão no Brasil, ao que eu respondi: "Mais ou menos". 
     Espero  que  você  também  esteja  mostrando  o  seu futebol pelos campos da cidade de São Paulo - entre camisas do Corinthians, do Palmeiras, do São Paulo e do Santos - com a camisa vermelha e branca do Guarani que lhe dei há cerca de dois anos. Jogue bem com ela e mostre aos paulistas a força das suas origens, apesar de, a rigor, você ser um belo-horizontino.

sexta-feira, 8 de maio de 2015

Patinhos da primavera











     Costumo  correr  de  segunda  a  sexta-feira às margens do Tâmisa, nas proximidades de minha casa. Numa região próxima da ponte que conecta o bairro de Battersea ao prestigioso Chelsea, do outro lado do rio, sempre há alguns patos que moram por ali e que convivem bem com a população de humanos que vive nas redondezas. Por esta época, início de primavera, eles se reproduzem. Me lembro de que em anos passados isso acontecia com pontualidade, exatamente em final de abril, começo de maio, quando o longo inverno daqui está acabando e o tempo inóspito vai dar uma trégua de alguns meses. Quando novo inverno começar, os patinhos que nasceram por agora estarão grandes e independentes, tomando seu rumo em direção a algum recanto do país. 
     Tenho  sempre  passado  por  esta  família, que, após se alimentar, descansa bem no caminho dos corredores, ciclistas e pedestres no fim da tarde. Gosto do respeito com que esses patos são tratados por ali. Todos tomam cuidado com os pequenos e há até avisos pelos postes de iluminação para que os donos de cachorros não os deixem incomodá-los. É esse tipo de relação que sempre o ensinei a ter com os animais, que têm tanto direito como nós de terem o seu lugar neste mundo e serem respeitados.

terça-feira, 5 de maio de 2015

Do encontro e da solidão

     Já  lhe  escrevi  outras  vezes  sobre  a  necessidade  de encontrar-se com as pessoas, em especial aquelas com um estilo de vida diferente do seu, conversar com elas, ver que nosso universo de valores e crenças é diverso e muito limitado. Quando buscamos enxergar as coisas do ponto de vista dos outros, aprendemos muito sobre a riqueza de cada ser humano, bem como sobre o respeito que cada pessoa merece. Por isso, quando estamos juntos, gosto de levá-lo ao campus da USP no sábado à tarde, para jogar futebol com os meninos da favela próxima, além de colocá-lo em contato com artistas, velhos, intelectuais, índios, estrangeiros e alguns outsiders que conheço. Costumamos andar de ônibus, de metrô ou trem, o que em si já é uma experiência direta com a variedade da fauna humana.
     Contudo,  se  há  o  tempo  do  encontro  com  os  outros, há também o tempo de ficar sozinho. Há alguns dias, eu escrevia aqui sobre Montaigne. Lembro-me de um ensaio sobre a solidão em que ele trata da necessidade de se possuir um recanto pessoal onde podemos nos encontrar com nós mesmos e exercitar a liberdade, a fim de aprendermos inclusive a lidar com nossas perdas e fracassos com um mínimo de leveza. Mas não se trata de um retiro egoísta, um simples mergulho na introversão ou um mecanismo de proteção contra as maldades do mundo. É um espaço para refletir e olhar para dentro de si mesmo, descansando, assim, dos esforços cotidianos e de algumas concessões que inevitavelmente temos de fazer, restabelecendo ou mantendo nossa integridade.
     Que  você  saiba,  ao  longo  da  vida,  administrar  bem essa dialética entre o compartilhamento do mundo com os outros e essa forma de solidão revigorante.