quarta-feira, 29 de abril de 2015

Linguagem e humor

     Lembro-me  de  uma  vez  você  ter  rido  de  uma  frase que ouvi ou li não sei onde: "'Cada um dando um pouco se fazem grandes coisas', como disse a sardinha urinando no mar". Como você, gosto desse humor infantil, feito de exagero e inocência.
     Quando  nos  encontramos,  você  mesmo  gosta  de  me  propor charadas e adivinhas em geral bem-humoradas.
     Em  O Chiste e sua Relação com o Inconsciente,  livro  em que Freud analisa psicologicamente o humor, ele apresenta um diálogo engraçado pelo absurdo e certa crueldade da situação, além da ambiguidade das palavras: 

"Como tem andado?", perguntou um cego a um paralítico. 
"Como você está vendo", respondeu o paralítico.

     No  Brasil,  a  fala do povo é cheia, por exemplo, de comparações hilariantes. Recordo algumas que ouço de vez em quando: "mais sozinho que chinelo de Saci", "mais complicado que calça de polvo", "mais feio que bater em mãe em dia de Sexta-Feira da Paixão", "mais perdido que Adão no Dia das Mães", "mais contente que cachorro com dois rabos", "mais longo que arroto de girafa", "mais perigoso que cirurgião com soluço", "mais nervoso que gato em dia de faxina", "mais fechado que porta de submarino", "mais difícil que fazer gargarejo de bruços"...
     Meu  amigo  Doc,  em  São  Paulo,  vive  dando uma definição do amor que não é nada romântica, carregada que é de certa rudeza expressiva: "Amar é um saco!". 
     E  os  insultos  na  língua  do  povo,  que  possuem  léxico e uma sonoridade riquíssimos, costumam ser também muito criativos. Lembro-me de uma vez, nas ruas de Divinópolis, ter ouvido um bate-boca em que alguém disparou um "Seu filho de uma sapa!". A surpreendente variação do clássico e desgastado xingamento tornou-o ainda mais virulento e ofensivo.
     Temos  uma  cultura  popular  exuberante  que  é  uma das muitas razões para se ter orgulho do Brasil. E também costumamos utilizar a língua de forma criativa, apesar de costumarmos nos dar uma liberdade tão ampla em seu uso que muitas vezes descamba para a falta de rigor e de um mínimo de formalidade necessária. De todo modo, sou muito simpático a esse bom humor que se manifesta inclusive em nossas injúrias. Como eu, você também se diverte com isso e até tira proveito da expressividade desses ditos no que fala e no que escreve. Acho importante que sua cultura vá de Dante às adivinhas, da tragédia grega à capoeira, de Bach ao forró, apesar de saber distinguir seus diferentes pesos e seus diferentes contextos. Isso indica no mínimo um espírito curioso e uma mentalidade aberta.

domingo, 26 de abril de 2015

Bandeira em Battersea

















               "Uns tomam éter, outros cocaína.
                Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria."

     Cheguei  há  pouco  de  uma  corrida de aproximadamente sete quilômetros pelo parque de Battersea, o bairro onde moro. Durante a corrida, fui ouvindo, com o telefone amarrado ao braço, o ator Juca de Oliveira recitando poemas de Manuel Bandeira. Cheguei em casa, e os versos acima, do poema "Não sei dançar", continuaram ressoando em minha cabeça.
     A  vida  está  longe  de  ser  um  parque  de  diversões, e às vezes somos confrontados com violentas perdas, fracassos e frustrações. Mas temos sempre de nos movimentar e buscar outros caminhos. A vida é também muito vasta e cheia de possibilidades. Se, como Bandeira, "hoje tomo alegria", em parte foi por haver tomado tristeza no passado e me ver obrigado a me reinventar, livrando-me do que me machucava, do que me diminuía. Continuo tendo problemas, eventuais fracassos, perdas e frustrações. Mas tomo hoje alegria, pois sei que tenho forças e criatividade para enfrentá-los. Estou bem de saúde, tenho podido fazer o que gosto, possuo alguns poucos mas bons amigos e algumas pessoas que me amam e se importam comigo. Tenho você.

sexta-feira, 24 de abril de 2015

Montaigne essencial

     Mais  uma  vez  estou  às  voltas  com  a  leitura  de meu filósofo favorito, Michel de Montaigne. Seus "Ensaios" têm sido para mim um livro fundamental, que releio de tempos em tempos. É impressionante como tudo o que ele escreveu há 500 anos continua atualíssimo e como sempre nos identificamos com seu pensamento. O curioso é que ele sempre escreveu sobre si mesmo, refletindo sobre como agiu em situações concretas. Alguns títulos de seus textos, pouco convencionais nas obras de um filósofo, dão uma ideia de como ele explorava as mais diversas dimensões da vida: "Da tristeza", "A força da imaginação", "Da educação das crianças", "Dos canibais", "Da solidão", "Dos odores", "Fiquem para amanhã os negócios", "De como julgar a morte", "Dos polegares", "Da arte de conversar", "Dos coxos", "Da fisionomia"... Gosto da forma como seu pensamento passeia livremente por esses temas, muitas vezes fugindo do assunto e até contradizendo o que disse no começo de suas reflexões, que são sempre sustentadas por um riquíssimo manancial de grandes histórias. Em realidade somos assim, em vez de sermos um modelo de coerência e lógica racional.
     Ontem,  quando  lia  o  ensaio  "Da afeição dos pais pelos filhos", uma das histórias que Montaigne conta para sustentar suas ideias me chamou a atenção: 

     O  falecido  Marechal  de  Monluc, tendo perdido um filho na Ilha da Madeira, jovem fidalgo que muito prometia, contava-me sua tristeza insistindo principalmente sobre o fato de nunca ter tido maior intimidade com ele. Para conservar em relação a ele a gravidade e a distância de que as mais das vezes se reveste a autoridade paterna, privara-se voluntariamente do prazer de apreciar e conhecer melhor o seu filho e também de revelar a profunda afeição que lhe votava e a estima que lhe dedicava por suas qualidades: "Esse pobre rapaz, dizia, nunca me viu senão carrancudo e aparentemente desdenhoso; levou consigo a crença de que eu não o soube amar nem lhe apreciar os méritos. A quem deveria eu, senão a ele, demonstrar a ternura de meu coração? Com ele sem dúvida devia abrir-me para que tivesse alguma alegria e gratidão. Esforcei-me, torturei-me para conservar essa máscara vã de indiferença; isso me fez perder o prazer de sua companhia, bem como de sua afeição, pois nunca foi senão maltratado e por vezes tiranicamente".

     Talvez  essa  história  revolva  intensamente alguma coisa em mim por causa da relação distante e estúpida que meu próprio pai sempre teve comigo. E eu com ele. Hoje que ele está morto, sinto a mesma tristeza do Marechal Monluc por jamais ter podido abraçá-lo, tê-lo como uma pessoa de confiança e dizer-lhe que o amava apesar de tudo, que carrego comigo muito do que ele foi, que hoje vejo traços de seu jeito e de sua personalidade no meu filho.
     Se  nunca  houve  espaço  para  o  afeto  na  relação  que tive com meu pai, tenho buscado - sem que isso seja um plano de ação ou uma rígida disciplina - fazer com que as coisas sejam diferentes entre nós dois, apesar da distância em que vivemos um do outro. Gosto de receber seu abraço e seu beijo em alto volume quando nos encontramos. E de lhe dar os meus. Gosto de nossas conversas sobre o que temos feito, sobre futebol, música e livros. Gosto de abraçá-lo após um gol meu ou seu, de nadarmos juntos, de lutarmos na cama, de comermos juntos...
     Está vendo como Montaigne é essencial?

terça-feira, 21 de abril de 2015

Da migração

     Leio  no  noticiário  que,  há  dois  dias,  um  velho  navio pesqueiro sobrecarregado com cerca de 700 imigrantes que tentavam escapar do caos político na Líbia em direção à Europa naufragou no Mediterrâneo, em alto mar, matando uma quantidade enorme de pessoas que são como nós. 
     Recentemente  também  li  também  uma  reportagem  a respeito de uma espécie de campo de concentração mantido pela Imigração britânica, onde pessoas que entraram ou permaneceram ilegalmente no Reino Unido sofrem toda sorte de abuso. Na maioria absoluta dos casos, seu único crime foi ter nascido em certos países desprestigiados e possuírem uma cidadania considerada de segunda classe pelo pensamento direitista em países considerados muito prestigiosos.
     Vivemos  num  tempo  em  que  o  dinheiro  e  as mercadorias atravessam as fronteiras com a mesma facilidade com que um fantasma atravessa as paredes de uma casa mal-assombrada. No entanto, as pessoas têm de enfrentar os mais rígidos controles e mesmo constrangimentos quando passam de um país para outro. Eu mesmo, vivendo fora do Brasil há alguns anos, sendo esta a terceira vez que, por razões de estudo ou trabalho, saio para morar no exterior, tenho sido, de vez em quando, vítima do mais absurdo burocratismo. De todo modo, se este mundo não está mais justo, ao menos está cada vez mais internacionalizado, multicultural e mestiço. Espero que, quando você crescer e passar pelo processo de formação universitária e trabalho, se tiver de fazer alguma coisa fora do Brasil, que encontre um ambiente mais ameno. Muito especialmente, que tenha respeito por todas as pessoas que encontrar em seu caminho e que jamais se sinta superior nem inferior a ninguém pelo simples e casual fato das suas circunstâncias externas.

sexta-feira, 17 de abril de 2015

Um elogio da lentidão

     Sob  encomenda  da  Editora  da USP, estou traduzindo para o português um livro composto por uma série de artigos de William Morris sobre a arte de fazer livros. Está me dando muito trabalho, pois os textos foram escritos há mais de 100 anos, possuindo uma sintaxe e um vocabulário um tanto diferentes das formas comuns no inglês contemporâneo. De todo modo, é um trabalho fascinante.
     Grande  parte  dos  artigos  de  Morris  tratam  dos  livros manuscritos da Idade Média, que eram grandes obras de arte. A propósito, fui hoje a uma exposição sobre a história do livro na British Library, onde vi de perto vários daqueles exemplares únicos feitos inteiramente a mão por grandes artistas anônimos. A mim chama a atenção - além da beleza das gravuras, dos ornamentos, da tipologia e da organização geométrica de tudo na página - o cuidado com que o livro era produzido. Até mesmo o papel que utilizavam, passados muitas vezes mais de 500 anos até os dias de hoje, em geral está em perfeito estado.
     Com  o  advento  da  impressão  e  o  desenvolvimento de toda uma tecnologia de produção de publicações em massa, ganhamos no acesso ao conhecimento sistematizado por parte de muito mais pessoas, mas perdemos em beleza e qualidade. Os livros medievais são produto de uma época muito diferente, com valores muito distintos daqueles da modernidade. Para mim, o grande contraste ocorre entre lentidão perfeccionista daquele tempo e a pressa que foi tomando conta de nossa cultura e nossa civilização, com consequências óbvias na qualidade de tudo, ainda mais num tempo como o nosso, de submissão total e irrefletida à internet.
     Os  livros  medievais  me  fazem  pensar  agora  num elogio da lentidão. Desejo que você tenha a sabedoria de fazer as coisas com cuidado, tendo paciência para vivenciar bem o tempo que seus processos interiores requerem. Melhor que fazer muitas coisas, numa espécie de capitalismo das realizações, será melhor não fazer muito em qualquer campo em que venha a atuar, mas que aquilo que fizer seja significativo e contenha o zelo de seu trabalho, a expressão de sua sensibilidade, seu amadurecimento como pessoa e seu valor humano.

quarta-feira, 15 de abril de 2015

Sangue Novo

     No  fim  do  ano  passado  lhe  dei  um  grosso e forte caderno protegido por uma caixa de papelão. Na ocasião, recomendei-lhe que o utilizasse para escrever seus pensamentos e falar sobre seus sentimentos. Em realidade o meu objetivo foi lhe dar a oportunidade de praticar a escrita e refletir sobre a sua realidade. Um dia, quando for adulto, você terá uma grande lembrança dos seus tempos de menino e se conhecerá melhor. Conversamos ontem à noite, e você me contou que já há algum tempo está utilizando esse caderno para escrever um diário. 
     A  vida  de  qualquer  pessoa  é  uma  grande  odisseia, cheia de pequenos eventos significativos, de alguns grandes acontecimentos que abrem novos caminhos e possibilidades, de pessoas que entram e saem de nossas relações, de sonhos, fracassos, delírios e algumas realizações decorrentes de nossos esforços. Portanto, você terá sempre muito sobre o que escrever. Ainda mais alguém que já sabe que "sofrer passa, ter sofrido não passa jamais"!
     Dante  intitulou  Vida Nova  a  um  livro  de  sua juventude, em que conta como se tornou poeta e narra um acontecimento que mudou sua trajetória para sempre: seu encontro com Beatriz Portinari. O diário de meu menino será também a história de uma vida nova, de um sangue novo neste velho mundo. Aliás, aí está um título de inspiração dantesca para seu diário: Sangue Novo

segunda-feira, 13 de abril de 2015

O sacrifício de Isaac

     Não  tenho  fé  e  me  parece  muito  evidente  que Deus não existe, mas de vez em quando gosto de ler a Bíblia, por ser um livro fundamental para nossa civilização e por ser um repositório de grandes histórias e uma esplêndida realização literária. Neste fim de semana, por exemplo, estive às voltas com a leitura de um episódio que sempre me causou perplexidade e revolta. Está no Gênesis e trata de um momento em que Deus, provavelmente numa eterna falta do que fazer, resolve, de maneira infantil, testar a fé de Abraão. Para isso, ordena-lhe que sacrifique seu filho Isaac. A mesma infantilidade reaparece em outros momento, como na história de Jó.
     Não  sei  o  que  é  mais  abominável,  se  a  ordem dada por Deus ou se a aceitação de Abraão em cumpri-la. Eis o comando do Todo-Poderoso: "Tome seu filho, seu único filho, Isaac, a quem você ama, e vá para a região de Moriá. Sacrifique-o ali como holocausto num dos montes que lhe indicarei". Após receber a indicação do lugar onde deveria assassinar o filho, Abraão organiza seus servos e parte acompanhado por uma comitiva, levando Isaac. Este inocentemente carrega sobre os ombros a lenha para o holocausto e, caminhando ao lado do pai, pergunta-lhe onde está o cordeiro a ser sacrificado em holocausto, recebendo como resposta uma mentira: "Deus mesmo há de prover o cordeiro para o holocausto, meu filho". Ao chegarem ao local do crime, Abraão prepara um altar, arruma a lenha e amarra Isaac, colocando-o no altar, sobre a lenha. No último segundo, quando esse pai indigno está prestes a matar o filho para satisfazer uma vaidade divina, um anjo do Senhor aparece e o impede de cometer a barbaridade, indicando-lhe um cordeiro preso pelos chifres num arbusto, sendo o animal finalmente sacrificado. Então o anjo, porta-voz divino, diz: "Juro por mim mesmo", declara o Senhor, "que por ter feito o que fez, não me negando seu filho, o seu único filho, esteja certo de que o abençoarei e farei seus descendentes tão numerosos como as estrelas do céu e como a areia das praias do mar. Sua descendência conquistará as cidades dos que lhe foram inimigos e por meio dela todos os povos da Terra serão abençoados, porque você obedeceu".
     Se  as  histórias,  as  metáforas  e  a  linguagem  bíblica são fascinantes - inclusive por terem esse poder de me irritar -, isso não quer dizer que eu concorde com a filosofia que ali é exposta. Em primeiro lugar, considerando historicamente o calvário de tantos povos da Terra, tudo indica que nenhum deles foi abençoado. Já num plano mais individual e ético, se o Deus judaico ou qualquer outro me ordenasse algo semelhante, eu de imediato perderia as estribeiras e até o bom-tom, mandando-o ir para aquele lugar, não me importando se um raio, o Diabo ou qualquer outra maldição me fulminasse instantaneamente. Meu filho está muito acima de um deus assim caprichoso, imaturo e arrogante, que joga com um falso mistério. Eu não o obedeceria jamais.

terça-feira, 7 de abril de 2015

Um crepúsculo de folhinha



















     Estou  agora  no  aeroporto  de  Zurique,  retornando para Londres. Os suíços passam de um lado para o outro, arrastando-se ao peso de tanta organização, tanta previsibilidade e tanto formalismo... Tive um recesso de Páscoa no trabalho e viajei para o norte da Itália, onde fiquei por quase uma semana e encontrei minha amiga de infância Adriana, que hoje é também cidadã italiana, e seu companheiro Maurizio. Andei por Milão, Piacenza, Bologna, Pavia e algumas cidadezinhas localizadas entre estas cidades maiores. Quando o avião estava chegando, olhei pela janela e vi lá embaixo os Alpes, que ainda estão muito brancos, cobertos de neve. Tive a mesma vista de cima quando retornava para a Inglaterra, no primeiro trecho desta viagem com conexão na Suíça. Quanto à Itália, quando a visito sempre fico fascinado com a arte – especialmente a herança do Renascimento, que foi a época de ouro do país, ou das várias cidades-estado que compunham a península itálica na época – e as igrejas, pois muitas delas também são extraordinárias obras de arte. A comida italiana é também outro grande atrativo.
     Em  meu  primeiro  dia,  logo  que  cheguei,  andei com Adriana por algumas vilas circundadas por áreas rurais, enquanto conversávamos sobre muitos episódios vividos no tempo em que morávamos em Divinópolis. De repente, fomos parar às margens de um rio de águas claras, cercado por um bosque onde habitam muitas lebres e cabras selvagens. Ao fim da tarde, a lua já despontava no céu, oferecendo-nos este crepúsculo de folhinha.
     Enviei-lhe  um  cartão-postal  de Milão em que lhe falo de minha saudade de você e da expectativa de que chegue o dia em que poderemos viajar juntos. O mundo é tão vasto e há tanta coisa para ver! Sempre que me deparo com algo novo, original ou simplesmente diferente, penso no que você diria se estivesse ali. Pensei, por exemplo, no que diria diante da serenidade deste rio e dos animais que vivem nas proximidades. Ou dos tons avermelhados ao fundo e da lua cheia e branca que se destacava na parte mais alta desta paisagem.