terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Tempo recuperado



     Um  dos  temas  fundamentais  do  romance  fundamental que é Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, é a memória. Segundo o escritor francês, há uma memória comum que nos permite recordar acontecimentos, pessoas, lugares, informações que povoaram nosso passado. Essa memória é facilmente acessível, dependendo de nossa vontade e nosso esforço. Existe, porém, outro tipo de memória, a das sensações que experimentamos um dia e foram esquecidas pela consciência, passando a habitar o limbo de nosso inconsciente. Essa memória involuntária pode vir à tona sob a ação de um acontecimento qualquer, que a desperta, fazendo com que nos tornemos conscientes dela.
     Se  o  tempo  é  um  agente  de  corrosão  de  todas  as coisas, fazendo com que nossos sonhos, nossas obras, nossos projetos e nossos afetos se desagreguem de maneira inexorável, viver é necessariamente perder o tempo juntamente com a perda de nossa própria vida, já que nada se fixa nem permanece. Há momentos, todavia, em que recuperamos o tempo perdido. Isso acontece exatamente sob a ação da memória involuntária, quando um tempo que não existe mais se reapresenta vivo e reatualizado num cheiro, num sabor, numa forma, numa textura, num som, numa linguagem que estabelece um vínculo de cumplicidade entre duas ou mais pessoas, no espírito de uma cultura.
     A  ideia  de  Proust,  tão  bem  formalizada  em  seu  livro, ocorreu-me ao final de nosso período de férias em Minas. Houve no decorrer do mês em que estivemos juntos alguns episódios em que a memória involuntária nos fez reviver essas sensações do passado e recuperar o tempo perdido. Uma delas foi quando visitamos o campinho de futebol que fica perto de outra casa onde minha mãe morou e onde você passou algumas temporadas curtas comigo, quando era bem pequeno. Embora o lugar esteja hoje abandonado e tomado pelo mato, você se emocionou ali, onde vivemos muitos momentos felizes. Também revivemos sua primeira infância num par de sapatinhos de seus três anos de idade que guardei comigo. E ainda pudemos refazer brincadeiras, saborear juntos comidas de que gostamos, rever filmes de Carlitos que lhe abriam um vasto sorriso de menino, perambular sem rumo pela cidade, conversando. São essas experiências fundamentais que conferem densidade a nossas vidas e nos proporcionam a consciência de que não precisamos de muitas coisas para sermos felizes. Possuímos uma história e toda uma mitologia, e isso é o nosso tesouro vital.
     Quando  nos  despedimos  para  que  você  retome  seus compromissos e seu dia a dia em São Paulo, partiu chorando por causa da ruptura de um mês em que pudemos viver e reviver tantas coisas, recuperar tanto tempo perdido. Essas férias foram um momento da eternidade.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

Rumo a São Paulo

     Partiremos  hoje  para  São  Paulo,  onde  o  deixarei  em sua casa e tomarei o meu rumo. É o fim de nossas primeiras férias juntos depois dos quase 12 anos de sua trajetória neste mundo. O ano burocrático, tributário e pragmático só começará para nós no começo da semana que vem. Embora estejamos mais próximos agora, sentirei falta de encontrá-lo pela manhã, quando acorda, de dar-lhe o abraço de boa noite, quando se deita, de  ler poemas e contos para você, na biblioteca. Mas assim é a vida. Dentro de mais alguns poucos anos, você viverá a sua fase de rebeldia e conflitos, criticando o modo de vida e os valores dos pais e desejando fazer tudo sozinho ou com outras pessoas. Então haverá de se ter paciência para esperar que sua onipotência passe sob a ação das próprias frustrações que a vida nos traz. E que você amadureça nesse processo. Ao menos estarei por perto e acompanhando o que estará fazendo, com quem estará andando, o que pensa. Mas sei que continuaremos a fazer muitas coisas juntos e a dialogar com seriedade mas com bom humor.
     Será  muito  bom  estar  em  São  Paulo,  onde  de  fato viveremos nossa vida ao menos pelos próximos anos. Depois de cinco anos distante, não vejo a hora de retomar o dia a dia nessa cidade infernal mas fascinante. Muito especialmente, não vejo a hora de tê-lo como uma presença constante nesse dia a dia.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

Conselho sobre uma tigela de açaí

     Ontem  à  tarde  fomos  à  região  mais  comercial  do bairro, para tomar um açaí, já que você gosta dessa iguaria brasileira. Enquanto revolvia sua tigela de açaí, frutas e leite condensado, assistíamos a uma luta de mulheres do UFC num aparelho de televisão afixado à parede diante de nós. Estava para iniciar-se uma luta entre uma morena de cabelos curtos e uma loira de cabelos trançados. Ficamos vendo no que aquilo ia dar. Já no começo do combate, a morena partiu para cima da loira e aplicou-lhe um tremendo chute no pescoço, derrubando-a, sentando-se sobre ela e dando-lhe uma longa série de socos, fazendo com que a luta acabasse em 43 segundos.
     Então olhei  para  você,  que  acabava  de  engolir  uma colherada de açaí, e lhe disse: "Vou lhe dar um conselho de pai para filho: jamais namore nem muito menos se case com uma mulher dessa". E você, olhando para mim com um rosto muito sério, respondeu: "Viu".

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Aurora tropical

     Em  nossos  fins  de  tarde,  retornando  para  a  casa de minha mãe e sua avó após jogarmos futebol, temos nos deparado com um pôr de sol que colore os céus com diversos tons de vermelho e amarelo. Com isso, você me veio com uma brilhante definição do fenômeno: "É a aurora tropical". De fato, se existem a boreal e a austral, por que não a tropical?
     Neste  quentíssimo  verão,  estamos  sofrendo  com  as altas temperaturas e o tempo abafado, que detesto, enquanto esperamos pelas chuvas, que estão demorando muito a cair. Esperemos que, quando vierem, especialmente em fevereiro e março, não cheguem em excesso, com trombas d'água, enchentes, grandes estragos e catástrofes por nossas cidades ainda tão precárias em infraestrutura.
     Já  começo  a  visualizar  minha  volta  a  São  Paulo, quando poderemos estar próximos o tempo todo e juntos em muitos momentos. Ainda preciso ajustar minha situação profissional e definir onde me instalar. Morei por 16 anos no Butantã. Por isso gostaria de viver em outro lugar desta vez. Tenho em vista Pinheiros, Tatuapé, Moóca, Aclimação, Lapa, Perdizes, Barra Funda e mesmo o centro. Vamos ver só o que a vida nos traz.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

A surpresa da cigarra

      Ontem,  quando  o  sol  já  se  punha  e  voltávamos  do campinho de futebol, descobri que meu meninão criado em São Paulo simplesmente não sabe o que é uma cigarra. Carregando a bola debaixo do braço, enquanto passava por uma fileira de grandes árvores, ele me perguntou que barulho era aquele que vinha de todos os lados. Era um coro de cigarras em alto volume. Ele que só ouvira falar em cigarras nas fábulas de La Fontaine, surpreendeu-se quando eu lhe disse que elas se pareciam com moscas gigantes, surpreendendo-se mais ainda quando capturei uma e corri atrás dele segurando o tenebroso monstro canoro entre dois dedos. Passado o pânico inicial, o garotão metropolitano pôde examinar o bicho de perto e ver que ele é inofensivo e que só nos faz bem com sua musicalidade.
     Além  de  estas  férias  estarem sendo cheias de prazeres e boas comidas na casa da vovó, elas também estão cheias de aprendizado de coisas novas.

domingo, 1 de janeiro de 2017

O primeiro dia






     Ficamos  ontem  até  tarde  assistindo  a  um  filme, acompanhados por Pérola deitada a nossos pés. Minha mãe foi dormir mais cedo e minhas irmãs saíram. À meia-noite nos abraçamos, desejamo-nos feliz Ano Novo e saímos para ver os fogos. Sentamo-nos no meio-fio diante de casa e ficamos olhando para cima e conversando sobre o que fizemos neste ano, que foi bom para você e não muito auspicioso para mim. Mas o que importa é que a partir deste 2017 estaremos próximos e juntos em muitos momentos. 
     Nestas  semanas  juntos  em  Minas,  tenho  percebido em você uma antologia dos meus defeitos. Acorda com um humor não muito bom, reage a tudo com excessiva paixão, desafia sempre tudo o que cheira a autoridade (inclusive o pai), está permanentemente envolvido com várias coisas ao mesmo tempo (não se aprofundando muito em nada), possui uma seriedade às vezes excessiva, muita insatisfação com o mundo, teimosia etc. "Filho de peixe..."
     Na  semana  passada,  no  fim  de  tarde,  quando retornávamos de nosso futebol, o céu ficou carregado com nuvens de fogo. Viemos comentando a beleza das formas e das cores sobre nossas cabeças. E você fotografou algumas delas com a câmera que lhe dei como presente de Natal. Aqui está uma delas como uma metáfora de nossas paixões.
     Sabemos  que  nada  muda  numa  virada  de  ano.  Mas este momento acaba sempre por nos fazer avaliar o que passou e organizar planos para o que virá. Por agora e pelo que virá, meus planos são viver bem o presente, sem cultivar rancores nem esperanças de que as coisas se resolverão. Não há resolução em nossas vidas. Hoje minha noção de felicidade resume-se em saber que você está bem e em poder fazer as coisas que gosto de fazer. Estou hoje tendo essas duas coisas e estou em sua companhia. Portanto, estou feliz.