quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Num frio de outono ao pé dos Bálcãs




     Cheguei ontem a Sófia, capital da Bulgária, uma cidade com aproximadamente 7 mil anos de história. Para um dia de outono, está extremamente frio. Hoje pela manhã fazia apenas 1 grau Celsius. Porém, como bom brasileiro, não saí apropriadamente agasalhado, pois deixei no hotel um casaco mais quente que trouxe comigo, indo para as ruas com uma blusa mais leve. Mas sou resistente a baixas temperaturas.
     O que mais gosto quando viajo é sair perambulando pelas cidades e encontrando as pessoas locais. E gosto mais de estar num lugar onde nunca estive no meio da semana, em vez de no fim de semana, pois dessa maneira se encontra a cidade funcionando como ela realmente é, com as pessoas engajadas em suas atividades do dia a dia.
     Soube hoje que na região central de Sófia há muitas fontes de águas termais públicas. Nelas a água jorra do fundo da terra, bem quente e soltando fumaça. Tem um gosto sulfuroso, e a gente daqui vem buscá-la em garrafas, para tomá-la em casa, pois, em virtude de sua composição química, é boa para problemas estomacais e renais. Embora felizmente não tenha nenhum desses problemas, também bebi um pouco, para ter uma experiência da vida local.
     Apesar de a cidade não ter várias atrações estonteantes, tenho me sentido bem aqui, pois os búlgaros se parecem com os brasileiros em muitas coisas, inclusive em seus defeitos, como nos hábitos de se atrasar e de adiar as coisas. De um modo geral, gosto mais da Europa do Leste que da do Oeste.
     Ao caminhar o dia todo pelas ruas centrais, deparei-me com uma iconografia bastante diferente para mim e também com quase tudo escrito em alfabeto cirílico. Como tenho estudado um pouco da língua russa recentemente, tenho podido ler muitas palavras, embora não compreenda a maioria delas. Também os sabores do país são distintos, com uma culinária bastante rica.
     Quando  vivencio  essas novas experiências tão longe de casa, sempre penso no que você diria se estivesse aqui comigo. E como faria uso do seu inglês, que é muito bom para a sua idade. Eu compartilharia muitas descobertas com você, mas lhe daria liberdade para explorar as coisas de acordo com seus interesses, tal como fazemos em São Paulo, quando o encontro e passamos alguns dias juntos.

terça-feira, 27 de outubro de 2015

Memórias do fim do amor


     Estou  hoje  na  cidade  de  Zagreb. Depois de resolver um compromisso acadêmico, saí a perambular pela cidade alta, que é a parte mais antiga da capital da Croácia. De repente, um tanto por acaso, minha atenção foi fisgada por uma placa: "Museum of Broken Relationships". Após ir ver do que se tratava, fui muito bem surpreendido por esse insólito Museu das Relações Terminadas.
     Tenho  visto  museus  sobre  quase  tudo  por  este mundo afora, mas nunca havia imaginado que um museu assim existisse, pois, no fim de relações amorosas, só se pensa em - ou só se deseja - esquecer. Além do mais, praticamente todos os museus do mundo são muito triunfalistas, dedicando-se à memória de homens e coisas bem-sucedidas, exaltando as mais belas realizações da arte, da cultura ou da história de uma civilização. O Museu das Relações Terminadas, porém, guarda a memória do fracasso, exibindo resíduos de amores mortos. Os objetos ali expostos são testemunhos da clássica antologia de sentimentos que assolam os amantes quando acaba uma relação em que investiram o melhor de si: melancolia, raiva, dor, desejo de vingança, senso de inadequação e perda de seus mais básicos referenciais.
     Numa  das  galerias,  há  um  machado  utilizado  por  um alemão de Berlim cuja companheira o trocou por outro homem. Com essa ferramenta, ele retornou à casa que partilharam e destruiu todos os móveis, para que o entulho produzido se parecesse com seu estado de espírito. Num outro canto, há um ursinho de pelúcia com um coraçãozinho no peito, onde se lê um convencional "Eu te amo". No entanto, logo ao lado há outra inscrição: "Que mentira! Mentiras, malditas mentiras!". Numa outra sala, há um anão de jardim partido e com o rosto bastante danificado após ter sido lançado por uma eslovena contra o para-brisas do carro novo do ex-marido no dia de seu divórcio. Já uma canadense doou ao museu duas bonequinhas de porcelana que representam as únicas coisas boas que permaneceram após o fim de seu casamento: as duas filhas. E as outras peças ali expostas, doadas por pessoas que vivenciaram relações mal-sucedidas, seguem nessa toada. Qualquer pessoa que tenha um objeto que sintetize um amor fracassado, pode doá-lo para o museu. E quem desejar também pode contar sua história e desabafar sua dor de cotovelo ali. Eu mesmo tenho objetos e histórias que poderiam perfeitamente fazer parte daquela coleção. E a frase de meu amigo Doc poderia estar escrita naquelas paredes: "Amar é um saco!".
     Fiquei  fascinado  com  um  museu  assim  num  tempo como o nosso, que cultua tanto o sucesso, a vitória, a superação de limites e a felicidade obrigatória. A tragicomédia do amor exposta pelo Museu das Relações Terminadas, para além de seu efeito catártico, lembra-nos que o fracasso, o sofrimento e a perda são parte intrínseca da vida de todos nós. E estimula uma importantíssima reflexão sobre a fragilidade dos laços humanos.
     Andando pelas galerias do museu, lembrei-me do filme As Canções, um documentário de Eduardo Coutinho em que ele registra depoimentos de pessoas comuns sobre suas perdas amorosas, associando-as sempre a canções que marcaram suas histórias, que são cantadas por elas ao fim de cada relato. E também me lembrei do poeta Ovídio, que há mais de 2.000 anos já havia escrito o brilhante Os Remédios do Amor, em que dá conselhos sobre como se restabelecer do luto amoroso e seguir a vida. É a única alternativa que resta.
     Um  homem  da  minha  idade  naturalmente  já enfrentou a questão do fracasso de relacionamentos, como testemunha a própria situação em que vivemos como pai e filho. Mas a sensação com que saí do museu foi mais leve do que a daqueles que tiveram de quebrar coisas como terapia para poderem seguir adiante. Há um momento, quando o relacionamento não frutifica mais, em que temos de simplesmente deixar o outro partir e cuidar de nós mesmos, pois mais doloroso que isso seja. Não conseguiremos jamais mudar as outras pessoas. Espero que você possa pensar nisso quando, dentro de mais alguns anos, se vir diante de um relacionamento que acaba e tiver de partir. Só não sei lhe dizer exatamente o que fazer, pois, na minha impulsividade, não tenho sido eu mesmo nenhum modelo sobre como agir.

domingo, 25 de outubro de 2015

Zema e Bob Dylan






     Chego  em  casa  um  pouco  tarde,  tendo  de  viajar amanhã bem cedinho, mas gostaria de escrever sobre a experiência que acabo de vivenciar. Venho do Royal Albert Hall, onde assisti a um concerto do grande Bob Dylan. Em plena maturidade e completo domínio do palco, ele manteve o público atendo por duas horas, cantando canções recentes e alguns clássicos de seu repertório em novos arranjos.
     Lembro-me  agora  de  uma  história  sobre  ele.  Eu devia ter uns 13 ou 14 anos, em Divinópolis. No fim da escola primária e pública, eu escrevi uma ingênua peça de teatro cômica na qual também atuei, juntamente com meu colega de turma Gelber. O diretor da peça foi Zema, nosso professor de Educação Artística, que faleceu há alguns anos. Como Zema era um homem que nos guiava nos meandros das artes, um dia, não me lembro se depois de um ensaio ou uma aula, perguntamos-lhe, à queima-roupa, quem era o maior cantor do mundo. E ele respondeu sem pestanejar: "Bob Dylan". A partir dali passei a ouvir com mais atenção o músico americano e, mais tarde, ao compreender a língua inglesa, a me impressionar com a qualidade de seus versos, sendo também profundamente tocado por sua gaita. Hoje, de vez em quando até saio para correr ouvindo ao telefone canções excepcionais como "Knocking on the heaven's door", "Like a rolling stone", "Mr. Tambourine man", "The times they are a-changing". Porém nunca imaginei que um dia estaria ali, a poucos metros do próprio Bob Dylan. Se Zema estivesse vivo, eu lembraria essa história e lhe mandaria algumas das fotografias que acabei tirando durante a performance do "maior cantor do mundo".

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Pressentimento de mudança

     Sinto  que  estou  próximo  de  outra  grande  mudança em minha vida, desejando que minhas novas circunstâncias venham a me trazer para perto de você. Em virtude de suas aulas e também por ter tido um problema técnico em seu telefone, estamos sem contato há semanas. Não sei bem o que lhe dizer. Talvez que você deveria ter tido a iniciativa de utilizar o e-mail em algum momento para me contar o que tem se passado em sua vida. Mas não vou forçar sua iniciativa. Períodos como este me fazem desejar ainda mais essa mudança, já que "eu sou eu mesmo e minhas circunstâncias", como escreveu Ortega y Gasset.
     Mas  talvez  eu  esteja  apenas  especulando  no  vazio por estar sentindo a sua falta. Ainda não tenho uma decisão sobre o que fazer e sou pressionado por circunstâncias de teor profissional e financeiro que preciso levar em consideração, ainda mais num momento como o atual, em que o Brasil enfrenta uma forte crise política e econômica, com muita instabilidade e o recrudescimento do golpismo por parte das forças mais retrógradas de nossa sociedade.

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Alhos e bugalhos na estante


     Bem  do  lado  de  minha  escrivaninha,  no  meu  quarto, fica uma estante carregada de livros. Se minha biblioteca, que ficou na casa de minha mãe e possui cerca de quatro mil volumes, está muito mais organizada, aqui os livros mais diferentes se misturam, como nesta pequena seção, em que há obras de literatura, de viagens, de filosofia, de história, sobre alquimia e sobre cachorros. E ainda nessa confusão quatro línguas se misturam.
     Sempre  que  vou  ao  Brasil,  dou-lhe  um  livro  de presente. Lembro-me de que logo antes de partir para o aeroporto ainda coloquei no Correio, para seu endereço, as Fábulas de La Fontaine e um livrinho intitulado Agarra, Goleiro, de cujo autor não me lembro. Você me contou que está numa fase de leitura das histórias de Sherlock Holmes e livros de aventura. Amando a literatura e tendo feito dela a minha profissão, é uma felicidade saber que meu filho também se apaixonou pela leitura e que os livros fazem parte do seu dia a dia, mesmo num tempo como o nosso, dominado pelas imagens, o entretenimento banal, a rapidez sem sentido e a parafernália eletrônica.

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Sob o impacto da tragédia grega


     Ontem  à  noite estive no teatro Shakespeare's Globe, que fica bem à margem sul do rio Tâmisa, junto à área central da cidade, para assitir a uma apresentação de Oresteia, a trilogia trágica de Ésquilo. Saí de lá atordoado pela beleza da peça e impressionado com a força da interpretação dos atores e da encenação. Mesmo num tempo tão violento como o nosso, em que crimes hediondos frequentam diariamente o noticiário, a tragédia grega não perdeu sua capacidade de provocar um grande impacto sobre nossos sentimentos e de nos propor uma reflexão sobre questões fundamentais do homem, que continuam as mesmas da época da Grécia clássica.
     Há  relatos  de  que,  em  Atenas,  por  ocasião  da apresentação da trilogia, durante a peça final as mulheres grávidas que estavam assisitindo ao espetáculo davam à luz quando as erínias entravam em cena para punir Orestes, que assassinara a própria mãe como vingança pela morte de Agamenon, seu pai. Se as erínias, deidades horrorosas que puniam os crimes de sangue contra membros da própria família, aterrorizavam os espectadores gregos, ontem vi ao menos duas pessoas sentindo-se mal e deixando o teatro por causa da força das imagens da peça.
     Neste  momento  há  outra  montagem  de  Oresteia  em  cartaz  na cidade. Vou assisti-la também e comparar com a visceralidade e o sublime do que vi na noite passada.
     Uma  das  experiências  que  mais  gostaria  de  partilhar  com você é a frequência ao teatro, gênero pelo qual tenho paixão e que tenho estudado há anos em minhas pesquisas universitárias, tendo eu mesmo algumas experiências como dramaturgo. Mas um dia ainda sairemos os dois do teatro, após um espetáculo, conversando sobre tragédias gregas, comédias de Molière, peças de Shakespeare, Ibsen, Strindberg, O'Neill, Nelson Rodrigues, Tennessee Williams e tantos outros...

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Viver e escrever

     Há  anos  possuo  um  diário  e  alguns  cadernos  em que registro as coisas que faço, colo ingressos para peças de teatro, cinema e museus, passagens e registros em hotel relacionados a viagens que faço, bem como fotografias e cartões postais. Em tais cadernos, sempre escrevo comentários, esclareço detalhes, intitulo seções. Também tenho livros, geralmente ilustrados, sobre as cidades onde morei: Divinópolis, São Paulo, Belo Horizonte, Montevidéu, Madison, Londres. 
     Vejo  que  já  se  vão alguns anos que comecei a lhe escrever aqui, contando muitas histórias sobre você e sobre meu percurso neste distanciamento que a vida nos trouxe. Talvez eu faça isso como uma forma de viver, por substituição, a vida inteira que estamos perdendo. Ou pode ser algo diferente. Talvez seja porque, para mim, as coisas não são completamente vividas até que escreva sobre elas.
     Parece  que  você  herdou  essa  necessidade,  já  que também escreve um diário num caderno que lhe dei em meados do ano passado e que de vez em quando registra suas perspectivas num blog sobre temas de cultura e esporte. Como, em seu período de aulas, algumas vezes temos dificuldades para conversarmos, ainda mantemos o antigo costume de nos escrever com certa regularidade e costumamos trocar e-mails.
     Trabalhando  hoje  num  prefácio  a  uma  peça  de teatro que será publicada por uma editora de São Paulo, penso no momento em que lhe darei um exemplar do livro, quando ele for publicado. Quando for mais velho e tiver lido alguns de meus textos, será um prazer conversar sobre eles com você, que é uma pessoa perspicaz e de sensibilidade aguçada.

terça-feira, 6 de outubro de 2015

Tristemente feliz

     Lembro-me  de  uma  passagem,  num  livro  de  Clarice Lispector, em que a grande escritora retrata sua protagonista: "agora ela era tristemente uma pessoa feliz". Pensei nessa definição porque há alguns anos venho me sentindo assim. Não tenho mais enfrentado grandes perdas ou dificuldades relacionadas a coisas básicas. Tenho obtido reconhecimento por parte das pessoas que trabalham em meus campos de atuação. Vivo numa das cidades mais modernas e atraentes do mundo. Possuo alguns bons amigos e uma família que sempre me acolhe e me admira. Porém me falta a sua presença e um acompanhamento de seu desenvolvimento estando mais próximo de você. E longe do Brasil serei sempre um capenga. Sou também "tristemente uma pessoa feliz".

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Divagações sobre duas fotografias

     Estou  passando  a  tarde  de  hoje  em  meu  escritório na universidade, trabalhando sobre ensaios dos alunos a respeito do filme Olga, a militante política alemã que atuou no Brasil e que foi uma pessoa muito inspiradora. Dou uma parada para descansar e fico olhando para duas fotografias nos porta-retratos sobre minha mesa. Numa delas, tirada há uns cinco anos, em São Paulo, sou o goleiro e você está batendo um pênalti. Seu pé direito está no ar, pois acabou de dar um chute forte na bola, que viaja em direção ao gol, enquanto eu salto para tentar defendê-la. Já não me lembro se foi gol ou não. Na outra foto, tirada mais ou menos na mesma época da anterior, estamos nós dois passeando na chuva, numa rua bastante arborizada em Divinópolis. Você está sentado sobre meus ombros, e conversamos animadamente. Nossas roupas estão encharcadas, para desespero de minha mãe, que morria de medo de você adoecer nessas aventuras pluviais.
     É  inacreditável  e  é  triste  que  essas  coisas  tenham passado e que hoje eu esteja deste outro lado do mundo, a muitos milhares de quilômetros de distância. Já sofri bastante com essa situação e ainda hoje não a aceito muito bem, mas há coisas que não podemos mudar. Muito especialmente não somos capazes de mudar as outras pessoas. Mas o que importa é que nunca deixei de ser seu pai, de pensar em você com amor e zelar para que tenha um caminho melhor e menos turbulento que o meu no decurso de sua vida. E estarei para sempre com você, mesmo na ausência, tal como o sinto sempre a meu lado como uma inspiração para viver bem a vida e enxergar as coisas com alumbramento, como tenho aprendido com você.