sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Um mês denso

     Neste  mês  que  você  está  passando  na  casa  da vovó, seus dias têm tido certa programação. Levantar-se por volta das 8h00, tomar café da manhã e ir para a biblioteca, onde lemos juntos, conversamos e eu lhe mostro algumas coisas que tenho por lá. Outro dia lhe mostrei um par de sapatinhos de quando tinha 3 anos, além de uma coleção de roupas daquele tempo. Você se emocionou com essas relíquias de sua infância. Hoje li para você o poema "Morte do leiteiro", de Drummond, que o deixou de lágrimas nos olhos.
     Depois  do  almoço,  você  vai  para  o  computador,  a fim de jogar seus jogos eletrônicos, pelos quais não me interesso muito e coloco um limite na quantidade de horas ali passadas. Após tomarmos o café da tarde e conversarmos, vamos para o campinho de futebol do bairro vizinho, onde treinamos diversos fundamentos do jogo. Estou impressionado com o seu chute, que está bastante certeiro, e com sua habilidade para conduzir a bola. Mas estou treinando-o para usar muito mais a perna esquerda, para cabecear melhor e para proteger a bola com o corpo.
     À  noite  costumamos  ler  um  pouco  mais,  jogar damas ou assistir a um filme. Já vimos bastante Chaplin, que você adora (O Garoto, Luzes da Cidade, O Grande Ditador, O Circo); A Vida de Brian, de Monty Phyton; Amores Brutos, de Iñárritu; O Casamento de Romeu e Julieta, de Bruno Barreto. Mas ontem à noite assistimos também A Estrada, de Fellini. O final, com a morte de Gelsomina e o desespero de Zampanò, que após maltratá-la tanto adquire plena consciência de que a amava, nos fez ir dormir com um nó na garganta. Quando lhe dei o abraço de boa noite, vi que você tinha os olhos rasos d'água.
     Hoje  sairemos  para  um  açaí  depois  do  almoço  e  um passeio pelas ruas centrais. Pérola, que está sempre por perto, vai conosco. No calor e sob o sol intenso de nosso verão, veremos a cidade, nos divertiremos e deixaremos a conversa fluir. A felicidade deste mês resgata muito do que não pudemos vivenciar juntos nestes últimos cinco anos.

terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Manhãs na biblioteca

     Nestes  dias  na  casa  de  sua  avó,  estamos  tendo enfim a oportunidade de estar juntos por quase todo o dia, e nossas manhãs têm sido passadas em minha biblioteca, lendo juntos. Além das estantes cheias de livros, as paredes por aqui são salpicadas de quadros com imagens de grandes escritores por todos os lados. Nesta, ao lado da escrivaninha à qual nos sentamos para ler, estão Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade e Dostoiévski. Em outras paredes, somos acompanhados por Kafka, Proust, Clarice Lispector, Nelson Rodrigues, Camus, Fernando Pessoa, Tchekhov, Tolstói, Erico Verissimo e Scott Fitzgerald. E sobre a escrivaninha ainda há um pequeno busto de Sófocles. Portanto, estamos na mais excelente e amada companhia. Neste momento, leio Cinzas do Norte, de Milton Hatoum, além de Cegueira Moral, de Zygmunt Bauman; e você lê O Estranho Caso do Cachorro Morto, de Mark Haddon, cuja história me reconta em partes, com emoção, a cada final de capítulo que termina. São manhãs que por muito tempo sonhei em partilhar com meu filho, mas que só agora se realizam.
     Ontem  lhe  mostrei  um  velho  sapatinho  que  guardei de seus tempos de criança pequena, por volta dos três anos. Você o achou estranho, assim como ficou encabulado e blasé quando lhe falei de desenhos animados que costumava assistir (e que eu assistia a seu lado) quando era pequeno. Agora não perde nenhuma oportunidade de negar o menino em você, o que é um sinal inequívoco do florescimento da adolescência, inclusive das chatices da adolescência.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Um açougueiro

     Fomos  hoje  a  um  açougue  nas  proximidades  da casa de minha mãe. Quando entramos no estabelecimento, deparamo-nos com um açougueiro debruçado sobre um enorme dorso de boi, cortando-o com um prazer verdadeiramente erótico. Enquanto esperávamos para fazer o pedido encomendado por minha mãe (um quilo de acém e um quilo de alcatra), ficamos ali observando o trabalho daquele profissional que o desempenhava com verdadeiro amor.
     Caminhando  de  volta  para  casa,  não  resisti  a lhe  perguntar novamente o que deseja ser quando crescer. Com sua camisa do Barcelona escrita Arthur nas costas, você respondeu que deseja ser jogador de futebol até os 32 anos e chefe de cozinha depois dos 32. Seja como for, um sujeito como seu pai, que enfrenta tantos conflitos com sua profissão e chega a desenvolver três ou quatro diferentes atividades simultaneamente, como parte do precariado que se formou hoje em dia, deseja que você jogue futebol com o élan daquele açougueiro, que crie pratos com a paixão daquele açougueiro.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Pós-caipiras


     Se  já  nasci  na  cidade,  sou  um  filho  da  cultura caipira. Tanto meu pai como minha mãe nasceram e se criaram em zonas rurais, tendo partido para Divinópolis no final dos anos 1950. Embora nunca tenha vivido na roça, quando menino ainda vi os últimos carros de boi, carroças e cavaleiros nas ruas de minha cidade natal. E na casa de meu avô materno, que usou chapéu e fumou cigarro de palha até o fim de sua vida, havia fogão a lenha, ferro a brasa e grandes baús para roupas. Por fim, depois de me tornar pai, ainda pude ver meu menino - encabuladíssimo - vestido de falso caipira nas festas juninas de sua escola em São Paulo.
     Sempre  tive  o  maior  respeito  pela  cultura  caipira, que por  cerca de duzentos anos floresceu no interior dos estados de Minas Gerais, São Paulo, Goiás, Paraná e Mato Grosso do Sul, possuindo linguagem, culinária, moda, arquitetura, tradições, musicalidade, literatura e mitos próprios e muito originais. Hoje ela praticamente deixou de existir, atropelada pela urbanização relâmpago e sem planejamento do Brasil, pela marcha do chamado "progresso". Talvez se possa fixar um marco da morte da cultura caipira: o falecimento da cantora Inezita Barroso no ano passado. Ela era quem mantinha o último bastião de resistência da cultura caipira nos meios de comunicação.
     Falo  nisso  por  que  hoje  estivemos  eu,  você  e minha mãe, no meio da tarde, tomando um café com canela regado a pães de queijo, rosquinhas, broas, pamonha, bolo de milho, queijo e tudo o mais. Houve até mesmo o requinte de canequinhos esmaltados. Como trilha sonora, minha mãe me pediu que colocasse para tocar Sérgio Reis cantando alguns clássicos do cancioneiro caipira: "Chico Mineiro", "Tristeza do jeca", "Chalana", "Rei do gado", "Saudade de minha terra", "Boiadeiro errante", "Cabecinha no ombro", "Caminheiro", "Legado sertanejo", "Mágoa de boiadeiro", "Comitiva Esperança", "Serafim e seus filhos", "Disparada"... Todas contam lindas histórias de um mundo que não existe mais. Enquanto as ouvíamos, minha mãe recontava histórias da roça e de uma era de ouro que tanto minha geração como a sua perdeu. Tal como um Hesíodo contemporâneo, ela acha que estamos hoje numa era de ferro, tempo de angústias e misérias infinitas, pois abrimos a caixa de Pandora e dela saíram os males das drogas, da luxúria, da violência, da incivilidade, da corrupção. Como sabemos, a decadência contemporânea é uma velhíssima tradição ocidental. O próprio Hesíodo está aí, com Os Trabalhos e os Dias, como prova de que essa tradição tem pelo menos 2.800 anos.

terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Na casa da vovó

     Faz  dois  dias  que  chegamos  a  Divinópolis,  depois de reencontrá-lo após quase dois anos de uma sofrida distância de milhares de quilômetros e um oceano de entremeio. Passamos o último fim de semana em São Paulo, andando pelas ruas centrais e observando os personagens da megalópole.
     Você  tem  estado  comigo  quase  o  tempo  todo, contando-me sobre o que tem feito, desafiando-me para corridas de 50 m e jogando futebol todos os dias. Percebo sua carência da figura paterna, que se manifesta em sua vontade frequente de me abraçar e me beijar. Minha mãe e minhas irmãs estão surpresas com seu tamanho e com o quanto está parecido comigo.
     Ontem  você  me  contou  que  gosta  de  uma  menina na escola, chamada Marcela. Perguntei-lhe como ela é, se do tipo bonitona, sabichona, inteligente, ousada, discreta... Soube, então, que ela é muito bonita, mas que não está lhe dando muita bola, mesmo após haver revelado-lhe os seus sentimentos. Disse-lhe para não se preocupar, pois a vida é assim mesmo, e sempre haverá alguém para você. Soube até que na escola mesma há outras quatro meninas que gostam de você. Portanto, bola pra frente!
     Nestes  dias,  estamos  passando  as  manhãs  em minha biblioteca, lendo, olhando fotografias, ouvindo música, conversando. Depois do almoço, geralmente você vai para a frente do computador, para seus jogos eletrônicos. À tarde, depois de um café, partimos para o campinho, para o futebol do dia. 
     Pérola  tem  estado  o  tempo  todo  a  seu  lado. Acompanha-nos até ao campinho, onde fica farejando todos os recantos enquanto jogamos. Minha mãe já está dizendo que ela é a sua sombra.
     No  próximo  domingo,  será  o  Natal  de  um  ano  que não foi muito fácil para mim. Depois de tantos desencontros, acidentes e desentendimentos, é quase inacreditável que estejamos vivendo um momento como este. Estamos felizes, e este será, para mim, um tempo rejuvenescedor e inspirador. Espero poder retornar a São Paulo no início do ano que vem. Já estou me movimentando para que isso aconteça. Espero, então, poder ter um quarto para meu menino em minha casa e simplesmente exercer esta paternidade que tem encontrado tantos obstáculos ao longo dos anos. Este nosso reencontro e todo o amor que ele traz à tona têm mostrado que nunca deixei de ser seu pai, que você nunca deixou de ser meu filho.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Volta

     Cheguei  hoje  a  São  Paulo  numa  manhã  nublada  e cinzenta, o que contrasta com o espírito de minha chegada. Estou feliz e ansioso por encontrá-lo na manhã do próximo sábado. Se tudo correr bem, você irá para Minas comigo e passaremos o Natal na casa de minha mãe.
     Amanhã  terei  uma  reunião  que  pode  selar  minha  volta a São Paulo no início do ano que vem. Assim, estaremos definitivamente mais próximos. Espero inclusive poder ter um quarto para você em minha casa. 
     Tendo  atravessado  a  cidade  pela  manhã  e transitado pela zona oeste à tarde, tenho um sentimento bom de reencontro mas também certa estranheza. Já não sou mais o mesmo que partiu daqui há cinco anos. Terei certamente de passar por um período de readaptação ao caos paulistano. Mas por agora só penso em aproveitar bem estes dias em São Paulo e com você depois de tanto tempo de ausência.

domingo, 11 de dezembro de 2016

Um adolescente!


     Já estou ansioso para reencontrar um agora adolescente de quase 12 anos em São Paulo, nesta semana. Num momento como o atual, em que a canalhice, a violência e a injustiça parecem triunfar, muitas vezes vem do inconformismo do adolescente uma ação para fazer face às superestruturas iníquas. Temos sempre de reimaginar e refazer este mundo sem nos conformarmos com o que ele nos oferece, e o adolescente, em seu misto de D. Quixote, príncipe Míchkin e Che Guevara, possui a imaginação, a generosidade, o sentido do poético, o destemor e o heroísmo necessários para buscar consertar o que está errado. Já não vive na dependência e na irresponsabilidade da infância e ainda não está imerso nas engrenagens do trabalho regular, da produtividade capitalista ou do casamento... Mas desejo apenas reencontrá-lo bem para que passemos juntos um fim de ano que resgate um pouquinho da vida que poderia ter sido e que não foi.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Depois de um longo tempo


     Na  semana  que  vem  chegarei  a  São  Paulo,  essa cidade feia mas fascinante onde morei por 16 anos e para onde pretendo retornar no início do ano que vem, a fim de estar próximo de você. Nessa capital mundial do grafite, eu sempre passava por estes logo no acesso ao túnel que liga a av. Rebouças à av. Paulista. No outro fim de semana, devemos passar por lá juntos, quando sairmos para passar o domingo nas ruas.  Estou ansioso por revê-lo, e trarei alguns presentinhos da Europa, assim como já encomendei que me entreguem pelo correio a Antologia Poética, de Carlos Drummond de Andrade; o livro com o mesmo título, de Vinicius de Moraes; e a Estrela da Vida Inteira, de Manuel Bandeira. Quero lê-los com você e quero ver sua sensibilidade aberta para a poesia da literatura e da vida.
     Temos  a  expectativa  de  que  você  viajará  comigo para Divinópolis, onde passará uns 20 dias de suas férias, incluindo o Natal e o Ano Novo. Será muito bom tê-lo na casa de minha mãe, que se mudou para um lugar maior, mais confortável e mais tranquilo. Prepare-se para disputas de corridas, guerras de travesseiros, jogos de futebol e lutas com os cachorros. E estaremos novamente juntos em Minas!

sábado, 3 de dezembro de 2016

Irresponsabilidade

     Nestes últimos dias, temos acompanhado as notícias sobre o acidente de avião que, na última terça-feira, matou quase todo o time de futebol da Chapecoense, que viajava a Medellín para disputar a final da Copa Sul-Americana. Imagino, nas redações dos noticiários escritos e falados, os jornalistas esfregando as mãos, exultantes diante dessas catástrofes, que são perfeitas para que exerçam o seu sensacionalismo rasteiro e a exploração ad nauseam do luto coletivo como se fosse uma telenovela. É o pressuposto da parvoíce de seu público.
     As  primeiras  investigações  dão  conta  de  que  a  causa do desastre foi simplesmente falta de combustível, revelando-se ainda que esse mesmo avião transportou, há algumas semanas, as seleções de futebol da Bolívia e da Argentina com o combustível no limite mínimo. Ou seja, a empresa em questão poderia ter matado o grande Messi. Não que as mortes de 71 pessoas no voo do clube de Santa Catarina valham menos que as de astros do futebol mundial, mas o fato de mesmo tais jogadores terem tido suas vidas postas em grande risco dá uma dimensão da irresponsabilidade na regulação dos serviços pelo Estado, bem como da insegurança em que vivemos.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Feliz expectativa


     Se  pudesse  apressar  os  dias,  faria  com  que  eles corressem, para que chegasse logo o momento de nos encontrarmos em São Paulo. Quando isso acontecer, será um momento de alegria. Tenho muitas histórias para lhe contar e muitas coisas a lhe dizer. E você também as tem. Logo ao revê-lo, hei de levantá-lo no ar, num abraço apertado.
     De  imediato  terei  muitos  desafios  no  Brasil,  que  vive um período tão infausto de sua história. Mesmo tendo de enfrentar novas dificuldades, quero fazê-lo sem perder o bom humor e o compartilhamento de minha vida com as pessoas queridas. Muito especialmente quero compartilhá-la com meu menino, participando muito mais de seu dia a dia.
     Mesmo  neste  momento  -  passageiro,  esperemos  -  em que a inconsciência, o rancor, o medo, a vulgaridade e o analfabetismo político assumiram protagonismo no cotidiano brasileiro, que possamos juntos dançar a vida, que é muito mais vasta e vai muito além dos estreitos limites dessas trevas. Amém.