sábado, 27 de junho de 2015

Ciclistas ao natural



     Há cerca de duas semanas, comprei uma bicicleta. Minha intenção é utilizá-la apenas em alguns fins de semana, para ir para os parques da cidade durante o verão que está começando, já que as ruas de Londres são muito perigosas para ciclistas. Somente hoje, porém, saí com ela pela primeira vez. Precisei ir a meu escritório, que fica no centro da cidade, para imprimir um documento, e resolvi pedalar pela margem sul do rio Tâmisa, que apresenta bonitas paisagens. No entanto, quando eu estava cruzando a ponte de Waterloo, de repente fui envolvido por um protesto de ciclistas nus que começaram a passar por ali, ultrapassando-me. Encostei a bicicleta num canto e, por uns dez minutos, fiquei vendo aquela exótica manifestação. Velhos, jovens, homens e mulheres em forma ou um tanto acima do peso passavam nus. Jamais imaginei que veria tal cena bem na área central da cidade. Os manifestantes, que eram milhares, mostraram-se muito populares, pois uma multidão os aguardava após a ponte, com palavras de apoio. Eu também sou simpático a eles, seja por sua postura política num mundo em que tanta gente é indiferente aos desmandos dos poderosos, seja pela naturalidade com que passearam de bicicleta com seus corpos desnudos, que nada tinham de obscenos. Obscena é a visão de um George Bush, um Paulo Maluf ou um Aécio Neves, obscenos são o trânsito e os rios de São Paulo, extremamente obscena é a desigualdade das pessoas num país como o Brasil.

quinta-feira, 25 de junho de 2015

Um falso passarinho


     Enfim  o  ano  acadêmico  está  chegando  ao  fim por aqui. No mês que vem, estarei de férias e pretendo fazer algumas viagens, uma ao Lake District, no norte da Inglaterra, e outra à Estônia, à Letônia e à Lituânia, que são lugares muito interessantes. E em agosto passarei cerca de três semanas no Brasil, quando o reencontrarei após muitos meses de um oceano entre nós.
     Nos  últimos  dias,  tenho  podido ler muitos e bons livros e escrever um pouco. Dei início à redação de um romance inspirado nos últimos dias de vida de meu pai, no leito de um hospital. Não sei onde isso vai dar, mas aceito o desafio.
     Estou  com  muita  saudade  de  você,  já  pensando em nossas brincadeiras, nossas refeições juntos e nossas conversas quando nos encontrarmos. Quero mais detalhes sobre como estão as coisas na escola, o que tem aprendido por lá, quem são seus amigos e o que tem feito.
     Gosto sempre de lhe trazer algumas surpresas. Esta não será mais surpresa, mas tudo bem. Estive recentemente na Polônia e lá comprei-lhe este passarinho de barro que canta ao ser assoprado, desde que se lhe coloque um pouco d'água por dentro. O curioso é que vi passarinhos verdadeiros se aproximando ao ouvirem o canto destes. Veremos se isso acontecerá com os sabiás de São Paulo.

segunda-feira, 22 de junho de 2015

Da amizade

     Acabo  de  receber uma mensagem de meu amigo Doc, perguntando quando estarei em São Paulo em agosto e me convidando para almoçarmos juntos. Claro que aceitei o convite, pois é sempre muito divertido encontrá-lo e saber de suas histórias bizarras e hilariantes.
     Estava me lembrando há pouco de algumas de suas frases: 

     - "Cada país tem a sua doideira." (sobre as diferenças culturais)
     - "Esse cara é o vampiro da nossa paciência." (sobre um certo Djavan)
     - "Amar é um saco." (sobre o mais romântico dos sentimentos)
     - "Eu sou um inguinorante!" (sobre sua própria ignorância)

     Inteligente,  amalucado  e  nada  convencional,  péssimo futebolista e bom lutador, Doc tornou-se meu amigo há cerca de 20 anos, no Centro de Práticas Esportivas da USP. Embora muito diferentes em nossos gostos e visões de mundo, aproximado-nos e, na companhia de outros amigos, fizemos muitas coisas juntos ao longo dos anos.
     Sei  que ele vive me colocando nas nuvens quando fala de mim, dizendo que sou muito disciplinado, responsável e perseverante. E eu, sempre que falo dele, destaco sua honestidade e seu senso de humor, além de não resistir a contar muitas de suas histórias, em que ele se envolve em grandes quiproquós. 
     Às  vezes  você me conta de atividades e passeios com seus amigos. Alegro-me que tenha algumas pessoas com quem pode compartilhar sua vida, seus sentimentos e seus pensamentos. Sempre construímos a realidade, seja ela boa ou má, com os outros, e eles nos dão uma dimensão mais clara de nossas virtudes, nossos defeitos, nossos limites e nossas possibilidades. Portanto, seja sempre uma pessoa aberta a um encontro qualificado com os outros.

sexta-feira, 19 de junho de 2015

Um lugar onde o silêncio se impõe


     Estou  passando  esta  semana  na  Polônia.  Cheguei  na segunda-feira a Cracóvia, que é uma cidade muito bonita e com ótima infraestrutura, cheia de parques bem cuidados e com uma conjugação muito bem feita entre o antigo e o moderno. Apesar de a língua polonesa, com suas várias consoantes em sequência, me parecer extremamente difícil, tenho me identificado muito com o país, que me parece um dos mais interessantes da Europa.
     Hoje,  no  entanto, fui fazer uma visita nada agradável. Levantei-me cedinho e viajei para Auschwitz e Birkenau, a uns 70 km de Cracóvia, onde, entre 1940 e 1945, os nazistas construíram sua linha de produção da morte. Obviamente foi uma visita que contrastou muito com as outras que tenho feito pelo país. Minha postura naqueles lugares foi de completo silêncio durante as três horas que ali permaneci conhecendo os campos de trabalho escravo, as câmaras de gás onde mais de um milhão de pessoas foram assassinadas, os paredões de fuzilamento, as cercas eletrificadas duplas, os galpões onde os prisioneiros viviam nas piores condições que se pode imaginar, os lugares onde moravam e trabalhavam os carrascos alemães.  Ao final, retornei para Cracóvia mais desencantado com a nossa espécie, que tão facilmente é capaz de descambar para a monstruosidade. Por outro lado, é preciso não se esquecer de que ela também é capaz de regenerar-se e recriar-se. Definitivamente o que aconteceu em Auschwitz e Birkenau não pode ser esquecido. Aqueles museus do holocausto foram dois dos lugares mais impressionantes onde já estive, que me fizeram sentir algo ruim, mas reforçaram meus valores humanísticos. Saí dali ainda mais convencido dessa coisa básica que é a necessidade de respeito à diferença e à dignidade de cada ser humano, bem como do perigo das ideologias redentoras ainda na época atual, em que as tiranias e toda sorte de infâmias não se tornaram coisas do passado. Tenha sempre cuidado com o excesso de convicção, pense sempre por você mesmo e seja seu próprio líder.
     Muitas  crianças,  ao  chegarem  a  Birkenau,  eram diretamente enviadas para as câmaras de extermínio, pois não serviam para o trabalho estafante imposto por aqueles servos do totalitarismo. Entre as comoventes vitrines expondo os pertences dos martirizados, esta, com roupas e sapatinhos de crianças assassinadas ali, tocou muito especialmente a mim, que tenho um filho de dez anos, alguém como aqueles meninos e meninas de destino tão infeliz que nem sequer tinham ideia do que estava acontecendo quando eram conduzidos às câmaras de gás, para onde iam talvez brincando.
     Ao  fim  da  guerra,  olhando  as  montanhas  de cadáveres nos campos de morte, alguém disse: "Diante disso, Deus não pode existir". Concordo e pergunto em que recanto do universo estaria Deus diante da asfixia daqueles meninos nas câmaras de gás. Ou Deus não passará do silêncio cercado de indiferença por todos os lados?
     Em  meio  à  memória  das  barbaridades  cometidas naqueles dois campos de concentração, também me chamou a atenção a vida explodindo por todos os lados. Flores campestres e não cultivadas brotam entre as gramíneas que entremeiam os barracões onde os prisioneiros dormiam, pássaros estão por todo lado. Até uma raposa passeava por entre as ruínas das câmaras de gás. Essa exuberância de vida é a homenagem que a própria natureza presta aos que ali pereceram tão ignominiosamente.
   

sábado, 13 de junho de 2015

Um conto de Canterbury

   
     Estive  ontem  no  lugar  onde  se  passam  os  Contos de Canterbury, que espero que você leia um dia, pois são excelentes. A cidade é muito bonita e bem organizada. Há um rio de águas límpidas e uma vida muito tranquila. Mas a grande atração é a catedral gótica, construída durante a Idade Média. Cada recanto da enorme igreja foi construído minuciosamente, com um olho artístico (ou melhor, muitos olhos artísticos). Recentemente tenho me apaixonado pela cultura que gira em torno do gótico.
     Como  era  um  dia  do  meio  da  semana,  tudo  estava funcionando normalmente em Canterbury. De vez em quando eu via grupos de meninos da sua idade indo ou voltando da escola. E também muitos meninos de escolas francesas que estavam em visita à cidade, pois a região fica numa pontinha da Inglaterra bem próxima da França. Nesses momentos é claro que me lembrei de você ao vê-los conversando animadamente, fazendo piquenique nos parques, correndo em disputas uns com os outros. Aposto que você ganharia de todos, pois confio na sua velocidade.

segunda-feira, 8 de junho de 2015

Um fim de semana em Oxford


     Passei  o  fim  de  semana  na  cidade  de  Oxford, onde se localiza uma velha e tradicional universidade. As construções antigas estão muito bem preservadas. É a Inglaterra old-fashioned no bom sentido dessa expressão geralmente utilizada em mau sentido. Vinicius de Moraes estudou ali, onde também escreveu belos poemas e viveu o primeiro de seus muitos casamentos. Além da vida universitária, da boa efervescência cultural e da parte histórica, Oxford possui excelentes parques, com muitas áreas verdes e abertas, com o pequeno rio Isis passando junto à área central. Sobre ele, que é bastante raso, há sempre alguns remadores com seus barcos leves e finos. Se você estivesse por ali, na certa alugaríamos um e iríamos enfrentar uma aventura sobre as águas. Ao ver os remadores em ação, senti falta dos nossos desafios.

sábado, 6 de junho de 2015

Seu discípulo

     Outro  dia  eu  mencionava  aqui  o  porco-espinho  de Schopenhauer. Hoje em dia, já tendo entrado pelos 40 anos afora, penso que viver é sempre essa interação  contínua com os outros em busca de adequação, ou melhor, de prazer e alegria. O adolescente melancólico e radical que fui continua vivo, mas agora aceita suas imperfeições e suas limitações como um porco-espinho que se ajusta ao homem de meia-idade cheio de responsabilidades em que agora se transformou.
     Vivemos  hoje  numa  cultura da reclamação, da denúncia, da culpabilização. Parece que nos tem faltado algo fundamental: a capacidade de admirar, de nos entusiasmar, de nos encantar. Nisso as crianças sempre têm muito a nos ensinar. E nisso tenho sido seu fiel discípulo.

quarta-feira, 3 de junho de 2015

Ontem


     Estive  ontem  na  British  Library,  passando  por  uma exposição dos tesouros do acervo da grande biblioteca inglesa. Entre muitos livros valorosos e partituras de composições de grandes compositores clássicos, havia uma seção dedicada aos Beatles, de cuja música você gosta, chegando mesmo a tocar algumas de suas canções ao violão. Lá estava o manuscrito de "Yesterday", composta por Paul McCartney em 1965, após haver sonhado com a melodia.
     Por  falar  em  música,  gostaria  de  saber  o  que meu violonista predileto anda tocando ultimamente e se tem usado o cavaquinho que lhe dei no Natal passado. Às vezes me passa pela cabeça a ideia de fazer uma canção junto com você, que entraria com a música, enquanto eu escreveria a letra. Imagine só essa parceria!

terça-feira, 2 de junho de 2015

Um brasileiro

     Já  estamos  em  junho,  em  avançada  primavera, e o tempo ainda está ruim por aqui. O frio ainda não nos deixou, e agora estamos assolados por um vento chato o dia todo. Essas circunstâncias atmosféricas têm sido algo mais a reforçar minha saudade do Brasil, que tem se intensificado nos últimos tempos. Esta minha terceira experiência no exterior em virtude de estudos, trabalho, outras perspectivas ou exílio reparador tem sido muito importante em minha vida. Mas estou vivendo em Londres há vários anos e meu coração permanece no Brasil, tal como aconteceu durante minha residência nos Estados Unidos e no Uruguai. Por mais que outras terras tenham me oferecido coisas boas, pelas quais sou muito grato, sinto-me sempre um tanto mutilado no exterior. As pessoas me fazem falta, você me faz falta, nossa luz e nossos cheiros me fazem falta. Contudo, não vou me queixar ou ruminar qualquer espécie de saudosismo. Estou vivendo bem este momento, e aonde quer que eu vá o Brasil estará comigo e se expressará através de mim. Nisso sou mais brasileiro que nunca.