sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Filho de peixe...

     Ontem  conversamos  pela  internet  através  de  um programa de comunicação instantânea, eu em Bangkok, você em São Paulo. Na noite anterior, eu havia ido jogar futebol com um grupo de europeus e americanos que vivem na Tailândia, como tenho feito nestas semanas que estou passando aqui, neste fim de férias de verão na universidade onde trabalho, antes do começo das aulas na Europa. Tenho jogado bem e feito muitos gols, mas nesta semana acabei por fazer um golaço de bicicleta. Fiquei muito feliz, pois havia três ou quatro anos que não fazia um gol de bicicleta. Por esta façanha, você me chamou de craque brasileiro no exterior.
     Mas, quando chegou sua vez, você me contou que também fez um golaço jogando em sua escola, tendo driblado dois adversários e chutado forte no ângulo direito do goleiro. Foi a minha vez de ficar muito impressionado e de chamá-lo de craque brasileiro no Brasil. Como dizem por aí, "filho de peixe peixinho é".

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Encontros com a beleza no Camboja


     Passei os últimos quatro dias no Camboja, na cidade Siem Reap e suas imediações. Fiquei fascinado com os templos que circundam a região, a maioria deles construídos entre os séculos IX e XII d.C. Aqui está Bayon, onde grandes rostos foram esculpidos sobre pedras enormes. Quando se pensa nessa época de ouro da civilização khmer, é ainda mais chocante ver a situação do Camboja atual, país que recentemente sofreu muito numa guerra brutal contra o imperialismo americano e que posteriormente foi assolado por décadas de tirania de cunho maoísta. Ainda se pode ver um número significativo de pessoas que ficaram cegas ou perderam pernas e braços em explosões de minas, essa arma abominável que governos criminosos ainda utilizam em seus conflitos militares. 
     Hoje a maioria avassaladora da população do Camboja é miserável. No entanto, como a maior das misérias é a espiritual, pude encontrar um povo que mantém sua dignidade e preserva uma inocência que nós, ocidentais, já perdemos há muito tempo. Isso se percebe no trato das pessoas e, em especial, no jeito das muitas crianças que andam pelas ruas e sítios arqueológicos do país.
     Em Siem Reap estive diante de coisas lindíssimas. Ontem mesmo, no fim da tarde, pude contemplar um pôr de sol de folhinha no topo do templo Pre Rup. Por mais ou menos uma hora, ao longe, o céu assumiu um vasto amarelo avermelhado em torno do sol. Se você estivesse aqui comigo, na certa comentaria sobre a beleza da cena e me faria perguntas sobre as idiossincrasias dos astros. Mas no fim, por longo tempo, apenas viveríamos a poesia viva e gratuita da natureza diante dos nossos olhos.

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

O que nos une

     Nesta longa temporada longe de casa, sempre penso em você e quero saber como está e o que tem feito. De minha parte, sigo com meu trabalho, minhas leituras e meus escritos, o futebol uma vez por semana, a vida que prossegue dentro da "normalidade" possível. Costumo receber por e-mail alguns comunicados de sua escola, com informes sobre procedimentos em relação aos alunos e convocatórias para reuniões de pais. Nunca pude estar presente a uma delas, primeiramente pelos conflitos que tinha de enfrentar no Brasil e depois simplesmente pela enorme distância de nosso país após minha decisão de emigrar para viver e trabalhar no Reino Unido, afastando-me por alguns anos de indignidades e misérias com as quais era obrigado a conviver. Hoje vejo que, apesar do risco de perdê-lo, foi uma decisão acertada. Eu precisava me reconstruir em outro lugar, e, durante estes anos que já correm apressados, nunca nos afastamos. 
     Nos muitos lugares por onde tenho passado, sua voz, sua inocência e sua ternura me acompanham. Sempre lhe envio cartões postais de países diversos, com paisagens diversas, escrevendo-lhe brevemente sobre o meu estado de espírito no momento. Coloco-os no correio para você como um lembrete de que continuo sendo seu pai e que isso jamais nos poderá ser tirado. O sentido de passado, presente e futuro que isso implica, bem como a força de ancestralidade e continuidade que nos une, nos tornam mais humanos e justificam nosso engajamento nos afazeres do dia a dia.

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Um homem


     "Póngase sereno y apunte bien: va usted a matar a un hombre". Conforme o verdugo que matou Che Guevara, esta foi a última frase dita por ele no dia 9 de outubro de 1967, quando o grande herói latino-americano foi executado por fantoches bolivianos a serviço da Central de Inteligência dos Estados Unidos. Sim, naquele dia mataram realmente um homem de verdade, alguém que talvez não tivesse espaço e não fosse ouvido num tempo como o nosso, em que o pensamento único triunfou no jornalismo, no debate público e, em vasta medida, na própria universidade. Naquele dia mataram um homem que nunca aceitou a injustiça e a opressão dos ricos sobre os pobres nem a injustiça da ordem política e econômica mundial, envolvendo-se pessoalmente em guerras na América e na África, no então chamado Terceiro Mundo. Um homem que foi grande e digno até mesmo nos muitos erros que cometeu. Seu verdugo recorda ter ficado muito nervoso, tonto e hesitante diante de "um Che grande, muito grande, enorme".
     Acabo de ouvir um discurso que Che Guevara fez na Assembleia Geral das Nações Unidas em 1964. Com extraordinária eloquência, ele critica a potência imperialista do norte e seus lacaios que infestam o poder na América Latina, defendendo a liberdade dos povos e seu direito à autodeterminação. Algum tempo depois ele sairia pelo Congo e pela Bolívia - de forma um tanto quixotesca - tentando exportar a Revolução. Acabaria sendo capturado e assassinado miseravelmente em La Higuera, povoado às margens da selva boliviana. Quase de imediato o Che se tornou um dos maiores mitos do século XX e uma força inspiradora para os que lutam por liberdade e justiça. Mas ironicamente sua imagem foi canibalizada pelo mercado, que o transformou num ícone pop, presente numa infinidade de produtos de toda sorte, muitas vezes consumidos por gente que não tem ideia do que ele representa. 
     De minha parte, sempre quis ter feito algo grande na vida, que ainda está aí aberta, vasta e plena de possibilidades. A força inspiradora de Che Guevara será para sempre uma referência no mínimo para uma existência que recuse a futilidade e o vazio de nossa época. Que você possa crescer com uma clara consciência da injustiça e da violência que nos cercam e à qual todos nós estamos submetidos, ainda mais num país como o Brasil, que jamais as aceite nem seja conivente com elas. E que seja íntegro, apaixonado e generoso onde quer que venha a atuar. Essa é a verdadeira homenagem que podemos prestar a um homem como Che Guevara, que, em realidade, nunca morreu. Segue vivíssimo em cada um que deseja uma realidade melhor que esta que aí está.

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Uma carta

     Ontem à noite trocamos mensagens por telefone, e você me pediu a confirmação de meu endereço, pois pretende me escrever uma carta. Será um grande prazer receber uma correspondência sua, e ficarei esperando por ela com ansiedade. Contudo, como nunca me escreveu assim antes, fiquei com certa preocupação em relação ao que você tem a me dizer, pois pode estar enfrentando percalços ou problemas sérios. Espero que as coisas estejam bem e que sua carta venha a me contar sobre sua evolução, sobre o que tem feito, sobre o que tem sentido.
     De minha parte, estou bem. Passo por um período de longas viagens pelo mundo, estando agora na Tailândia e devendo visitar o Camboja, a Suécia, a Noruega e a Dinamarca até meados de setembro, quando começam as minhas aulas em Londres e devo me manter por lá por alguns meses. Tais viagens têm me proporcionado alguns encontros maravilhosos com a alteridade, com a história, a cultura e as artes de outros povos e outras civilizações, com outras formas de organizar a vida. Após alguns anos de muito sofrimento e falta de perspectivas, logo após nossa separação, tenho sido afortunado por poder desenvolver uma atividade que envolve essa liberdade de ação e esse internacionalismo. Tenho sido uma pessoa mais flexível e de mentalidade mais ampla por causa dessas experiências. Mas sempre sinto falta de você ao meu lado. Um dia o trarei para ver comigo o que de melhor tenho visto e vivido em diferentes recantos deste mundo. Então estas experiências estarão completas.

domingo, 3 de agosto de 2014

Da vastidão da vida


    Num período de duas semanas estive no Brasil, na Inglaterra e agora estou na Tailândia, ou seja, em doze dias estive em três continentes: América, Europa e Ásia. Estou um pouco cansado, com sono e fome bastante fora de hora apropriada. 
    Quando vinha no avião, voando por cima de nuvens carregadas sobre o céu asiático, olhei pela janela e vi esta formação dramática composta por água em forma de vapor. A imagem capturou meu olhar por longo tempo, em virtude de sua grandeza e seu mistério.
     Já retornei ao trabalho e vou preparando as coisas para o ano acadêmico europeu, que se inicia em setembro. Tenho pensado muito em meu menino. Desejo que você também retorne a suas aulas com alegria e sede de conhecimento. Sempre lhe pergunto como vão as coisas na escola e tento acompanhá-lo para que seja um aluno responsável. Sei que está indo bem, mas gostaria de poder ter um papel mais ativo e mais próximo em sua educação, sugerindo leituras e lendo com você, fazendo seus deveres com você, discutindo coisas relacionadas a seus estudos. Mas a vida nos separou de tal forma que jamais me acostumarei, mas sei que tenho de aceitar. Contudo, nossas possibilidades são vastas como essa amplidão de nuvens, e tudo está em constante movimento. Nada será para sempre como agora. Isso é uma lufada de esperança.