quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Um intervalo


     "Coisas  belas  são  difíceis",  conforme  esse  pensador anônimo escreveu numa parede da cidade de Tiradentes, onde passei alguns dias em meados do ano passado. Já para o poeta Manuel Bandeira, "a beleza é triste" em virtude de sua fragilidade e sua incerteza.
     Pensei  hoje  nos  aspectos  difíceis  e  tristes da beleza ao me dar conta de que retornei para o outro lado do Atlântico já há três semanas, e tivemos contato apenas no primeiro dia após minha chegada a Londres, quando conversamos via internet. Sinto sua falta e gostaria de estar mais presente em sua vida, mas estas são as minhas circunstâncias. Não sei o que está acontecendo por aí, mas provavelmente as suas circunstâncias também o estejam impedindo de se fazer presente em minha vida por estes dias. Suas aulas recomeçaram, e você deve estar com muitas tarefas de início de ano, além de suas lições extracurriculares de violão, taekwondo, inglês, futebol... Talvez ainda haja algum dentista ou psicólogo pelo caminho. 
     É incrível como as crianças de classe média hoje em dia estão engajadas em tantas coisas, com horários rígidos, inseridas num sistema avassalador de produtividade e consumo. Eu, que fui uma criança de classe baixa no interior de Minas, nunca pude sequer pensar em ter acesso a essas coisas. Mas em meio a tantas carências, tive sempre o meu tempo para mim, para minha família, para meus amigos, para os cachorros que tive ao longo dos anos. Até minhas habilidades no futebol foram desenvolvidas simplesmente num campinho de terra nas proximidades da casa de meus pais e com o contato diário com a bola. 
     Não  sei  se  no  balanço  minha  infância foi melhor. Provavelmente não foi. Gostaria de ter tido um pouco do que você hoje tem. Muitas coisas teriam sido mais amenas, e eu teria avançado muito mais rapidamente em termos intelectuais, por exemplo. Porém não acredito que essa agenda lotada e esse dia cheio sejam coisas em boa sintonia com as necessidades mais lúdicas de um menino de nove anos. Contudo você não está comigo, e neste momento não tenho muito poder de decisão sobre o que lhe está sendo oferecido em seu processo educativo.
     A  beleza  é  difícil  e  é  triste.  Penso  nisso  ao constatar que, a despeito dos sofrimentos por que temos passado durante todos estes anos em que fomos separados, nossos laços de afeto nunca se romperam, que nunca deixamos de ser pai e filho, que carregamos um ao outro em nossos corações e em nosso pensamento, ainda que a superocupação de nosso dia a dia crie intervalos como o que está ocorrendo agora.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Nomes e destinos

     Sempre  tenho  a  sensação - ou  talvez  a  superstição - de que nosso nome carrega em si o nosso destino. Jamais de viu um deus chamado Zequinha, um herói chamado Leleco, um imperador chamado Gleidson, uma rainha chamada Lurdinha. Um deus há de ser Apolo, Shiva, Emanuel; um herói, Odisseu, Eneias ou Roland; um imperador, Alexandre, Augusto ou Montezuma; uma rainha, por fim, há de ser Catarina, Elizabeth ou Cristina. Porém há o outro lado, o dos nomes identificados a um destino ruim. Em Crime e Castigo, Dostoiévski dá o nome de Svidrigáilov a um canalha. Molière chama Tartufo ao hipócrita de sua comédia homônima. Em suas memórias, Pedro Nava lembra-se da esposa de seu tio-avô chamada Irifila, figura ominosa, inimiga de todos os prazeres que fazem a vida valer a pena, a quem ele qualifica, entre outro adjetivos desabonadores, como "crotálica". Até a sonoridade desses nomes evoca a maldade daqueles que os possuem. E Machado de Assis nomeia Palha a um banal usurpador do dinheiro do ingênuo Quincas Borba, no romance homônimo. O centro de interesse de um Palha só poderia ser mesmo a melhoria de sua posição social. 
     Temos  nós  dois  os  nomes  de  um  grande imperador romano e de um lendário e heroico rei britânico. Gosto do meu nome e gosto do seu, em especial com nossos sobrenomes, que lhes dão a cadência de um verso. Que eles possam nos impulsionar para a realização de destinos significativos na vida.

domingo, 18 de janeiro de 2015

O último pudor do Brasil

     Me pego aqui sorrindo ao me lembrar de que, quando o encontrei no Brasil, há pouco mais de uma semana, houve um momento em que lhe perguntei de brincadeira se alguma menina da escola estava apaixonada por você. Ainda comentei que quando meu filho passa as garotas devem suspirar fundo, pois um menino bonitão do seu tipo já deve estar deixando muitos corações femininos em frangalhos. Após ficar bastante ruborizado e abaixar a cabeça, você disse que eu o estava fazendo ficar envergonhado... e não respondeu à pergunta.
     Naquele momento, pensei no genial Nelson Rodrigues. Se ele ainda estivesse vivo e o visse, diria que você é "o único brasileiro que ainda se ruboriza" ou que você é "o último pudor do Brasil". Ainda mais em tempos de tanta corrupção e tanta crise de valores como o nosso. Se é assim, tenho orgulho do seu rubor.

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Tico-tico e fubá

     Cheguei  anteontem  a  Londres  após uma longa viagem passando por Portugal. Ontem pela manhã já dei aula e tive uma reunião no meu departamento. À noite fui a um show de música brasileira em que predominava o choro. Fico sempre impressionado com a popularidade do Brasil por aqui. Havia muita gente. E me lembrei do cavaquinho que lhe dei de presente por ocasião deste último Natal.
     Há  alguns  dias  escrevi  sobre  certas  frustrações que time no Brasil desta vez. Mas já estou sentindo falta de nossa gente e de nossas coisas. Me recordo de uma vez, quando eu morava nos Estados Unidos e, após ouvir uma execução de "Tico-tico no fubá", o genial chorinho de Zequinha de Abreu, uma amiga americana me perguntou qual era o significado do título dessa peça instrumental de fraseado tão exuberante e envolvente. Embora explicasse o que era "tico-tico" e "fubá", disse-lhe que para realmente entender o que "tico-tico no fubá" significa é preciso ser brasileiro - e brasileiro do interior. Eu, que muitas vezes vi esta cena quando criança, compreendo-a. Porém mais importante que entender "Tico-tico no fubá" - cujo título já é, em si, muito musical - é desfrutar de sua audição.
     Tudo  isso  é  apenas  para  dizer  que,  apesar de tudo, amo o Brasil, e onde quer que eu esteja, ele estará comigo.

domingo, 11 de janeiro de 2015

Uma pedra no peito


     "Com  uma  pedra  no  peito  e  um desespero bruto e estático na alma..." Se não me engano, é um narrador de Dostoiévski que descreve assim o sentimento de um de seus personagens. Ao chegar a minha casa em Londres e ler seu recado de despedida, após haver passado os últimos dois dias com você, sinto algo parecido. Daqui para frente serão muitos meses distantes um do outro, sem que eu possa fazer muita coisa por você, sem que eu saiba muito bem o que tem se passado em sua vida.
     Uma vez, no museu Casa de Anne Frank, em Amsterdã, vi um vídeo em que o pai da garota judia assassinada pelos nazistas conta que, após ler o diário da filha, surpreendeu-se com o quanto os pais não conhecem verdadeiramente seus filhos. Em circunstâncias como as nossas, ainda menos.
     Durante  nossas  conversas  em  São Paulo,  pude ver que você me idealiza e me tem na conta quase de um herói. De minha parte, especialmente ao chegar sozinho em terra estrangeira, acossado pelo frio europeu, tenho comigo um sentimento de fracasso. Não o tenho a meu lado, não possuo uma grande realização intelectual nem em outro campo de atividade, não tenho tido muita habilidade na forma de me relacionar com as pessoas. A coragem de seguir em frente e me reinventar talvez seja uma das poucas virtudes significativas que tenho demonstrado. Mas até isso é enfraquecido pelo fato de eu sequer ter tido outra alternativa. De todo modo, bola pra frente e vamos ficar bem.

sábado, 10 de janeiro de 2015

Pronto para mais uma longa viagem

     Acabo  de  chegar  ao  aeroporto  e  de  passar  pelos procedimentos de segurança, bem como pela Imigração brasileira. Estou agora esperando pelo meu voo rumo à Europa. Olho pela janela e vejo a movimentação de funcionários, carros transportando cargas e aviões. Os nomes das companhias em seus corpos evocam lugares distantes: AirFrance, Air Canada, American, Qatar, British Airways, Lufthansa, South African, Emirates... 
     Passamos os últimos dois dias juntos. Jogamos futebol, nadamos, assistimos a um filme, comemos juntos. Ao longo de sua vida, temos tido tão poucas oportunidades de fazer essas coisas tão simples que têm sido tão esperadas e tão inéditas para nós ao longo dos últimos sete ou oito anos! Hoje pela manhã fui levá-lo de volta a sua casa. Como sempre foi difícil nos despedir. Lágrimas, planos para o próximo encontro (que deve demorar muito a acontecer), manifestação de nosso desejo de estar juntos mais vezes e por mais tempo. De todo modo, percebo mais serenidade e mais sabedoria para lidarmos com essa situação. Você há de crescer e adquirir independência. Então, onde quer que eu esteja, você terá a liberdade e a autonomia para vir a meu encontro.
     Foi  uma  alegria  ver  que  você  está  bem,  muito inteligente e lindíssimo. E bom de bola. E um peixe na piscina. Perdi várias disputas para você. E que velocidade para correr! E que conhecimentos de geografia!
     Fique  bem.  Eu  estarei  bem  em  Londres,  pensando em você entre meus compromissos e meus prazeres por lá. Nunca vou abandoná-lo.

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Nossa decadência


     Partirei  nesta  noite  para  São  Paulo,  após  passar cerca de 20 dias em Divinópolis. Esta não foi uma estadia muito agradável. Algumas vezes andei pela região central e, nos fins de tarde, saí sempre para correr ao longo do rio Itapecerica. Por todo lado se notam evidências de uma cidade em profunda crise, muito mal administrada, com um povo apático e despolitizado. O rio está malcheiroso e cheio de porcarias; as calçadas andam esburacadas, boa parte com mato a crescer; as ruas estão mal sinalizadas e sujas. A casa de minha mãe fica numa rua muito movimentada e muito barulhenta. Não bastasse o ruído excessivo do trânsito, toda a vizinhança é frequentemente importunada por imbecis que passam dirigindo carros equipados com potentes sistemas de som tocando o lixo da música baiana em altíssimos decibéis. Isso a qualquer hora do dia ou da noite. Um número considerável de mendigos e moradores de rua é visível nas avenidas e praças do centro. Definitivamente parece não haver aqui uma causa comum.
     Andei  ouvindo  histórias  de  violência  e  brutalidade infinitas, geralmente associadas ao tráfico de drogas, pois a cidade se tornou um entreposto do negócio, passando a abrigar toda uma escória de criminosos perigosos, em torno dos quais gravitam muitos pequenos traficantes e uma crescente quantidade de viciados que rapidamente se transformam em mortos-vivos no último estágio da degradação. A polícia, por sua vez, parece ter aceitado a derrota ou estar compactuada com os bandidos, pois não os combate verdadeiramente. Nem sequer vi um número significativo de policiais pelas ruas.
     Tudo isso faz parte do atual fenômeno da degradação do espaço público, dos homens públicos, das atividades públicas e das instituições do Estado. Em seu livro Modernidade Líquida, o sociólogo Zygmunt Bauman enumera algumas características do que vem acontecendo em muitos lugares do mundo: "A comunidade definida por suas fronteiras vigiadas de perto e não mais por seu conteúdo; a 'defesa da comunidade' traduzida como o emprego de guardiões armados para controlar a entrada; assaltante e vagabundo promovidos à posição de inimigo número um; compartimentação das áreas públicas em enclaves 'defensáveis' com acesso seletivo; separação no lugar de vida em comum - essas são as principais dimensões da evolução corrente da vida urbana".
     Vivi em Divinópolis, em minha infância e em minha adolescência, um tempo muito diferente, em que havia vida comunitária, segurança, paz e repeito pelas pessoas, embora a mentalidade dominante fosse conservadora e o poder fosse uma prerrogativa de potentados de famílias tradicionais, como é comum por todo o interior do país. Antes de nossa comunidade perder a inocência, não era difícil viver aqui, pois, a despeito do atraso, havia um mínimo de qualidade de vida.
     Parto  para  São  Paulo,  onde  ficarei  por  quatro dias, e sei bem o que vou encontrar por lá: todos os problemas experimentados aqui elevados à máxima potência. 
     Muitas  vezes  tenho  falado  em  retornar ao Brasil. Todavia, essa realidade, que é semelhante por quase todo lado, vem me causando muita frustração. Será que, no limite, precisamos de uma espécie de Revolução Francesa para cortar as cabeças de certos Marinhos, Civitas e Frias, certos Sarneys, Malufs, Calheiros, Aécios e Dirceus, certos Setúbals e Aguiares, certos Mendes e Toffolis, certos Avancinis e Aldemários e toda a escória dessa laia?

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Sofrer passa...

     Estou  passando  os  últimos  dias  em  Minas, antes de partir para São Paulo a fim de encontrá-lo. Temos conversado pelo Skype todos os dias, e você está ansioso por nosso encontro. Hoje pela manhã, após encerrarmos uma conversa, percebi algo nas configurações de seu programa de mensagens instantâneas que me fez sorrir. 
     Há  alguns  anos  coloquei  esta  frase brilhante de Léon Bloy como epígrafe de meu Skype: "Sofrer passa, ter sofrido não passa jamais." Ela vem de um tempo em que eu enfrentava muitos problemas, mas resistia e seguia em frente. O tempo passou, e ela ficou por lá, até porque é realmente uma boa frase e quase um mote para mim.
     Hoje,  no  entanto,  após  encerrar  nossa  conversa, qual não foi a minha surpresa ao ler, nas configurações do seu Skype: "Sofrer passa, ter sofrido não passa jamais." (Léon Bloy)! Esta seríssima frase acabou ficando engraçada no perfil de um menino de 9 anos.