sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Um mês denso

     Neste  mês  que  você  está  passando  na  casa  da vovó, seus dias têm tido certa programação. Levantar-se por volta das 8h00, tomar café da manhã e ir para a biblioteca, onde lemos juntos, conversamos e eu lhe mostro algumas coisas que tenho por lá. Outro dia lhe mostrei um par de sapatinhos de quando tinha 3 anos, além de uma coleção de roupas daquele tempo. Você se emocionou com essas relíquias de sua infância. Hoje li para você o poema "Morte do leiteiro", de Drummond, que o deixou de lágrimas nos olhos.
     Depois  do  almoço,  você  vai  para  o  computador,  a fim de jogar seus jogos eletrônicos, pelos quais não me interesso muito e coloco um limite na quantidade de horas ali passadas. Após tomarmos o café da tarde e conversarmos, vamos para o campinho de futebol do bairro vizinho, onde treinamos diversos fundamentos do jogo. Estou impressionado com o seu chute, que está bastante certeiro, e com sua habilidade para conduzir a bola. Mas estou treinando-o para usar muito mais a perna esquerda, para cabecear melhor e para proteger a bola com o corpo.
     À  noite  costumamos  ler  um  pouco  mais,  jogar damas ou assistir a um filme. Já vimos bastante Chaplin, que você adora (O Garoto, Luzes da Cidade, O Grande Ditador, O Circo); A Vida de Brian, de Monty Phyton; Amores Brutos, de Iñárritu; O Casamento de Romeu e Julieta, de Bruno Barreto. Mas ontem à noite assistimos também A Estrada, de Fellini. O final, com a morte de Gelsomina e o desespero de Zampanò, que após maltratá-la tanto adquire plena consciência de que a amava, nos fez ir dormir com um nó na garganta. Quando lhe dei o abraço de boa noite, vi que você tinha os olhos rasos d'água.
     Hoje  sairemos  para  um  açaí  depois  do  almoço  e  um passeio pelas ruas centrais. Pérola, que está sempre por perto, vai conosco. No calor e sob o sol intenso de nosso verão, veremos a cidade, nos divertiremos e deixaremos a conversa fluir. A felicidade deste mês resgata muito do que não pudemos vivenciar juntos nestes últimos cinco anos.

terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Manhãs na biblioteca

     Nestes  dias  na  casa  de  sua  avó,  estamos  tendo enfim a oportunidade de estar juntos por quase todo o dia, e nossas manhãs têm sido passadas em minha biblioteca, lendo juntos. Além das estantes cheias de livros, as paredes por aqui são salpicadas de quadros com imagens de grandes escritores por todos os lados. Nesta, ao lado da escrivaninha à qual nos sentamos para ler, estão Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade e Dostoiévski. Em outras paredes, somos acompanhados por Kafka, Proust, Clarice Lispector, Nelson Rodrigues, Camus, Fernando Pessoa, Tchekhov, Tolstói, Erico Verissimo e Scott Fitzgerald. E sobre a escrivaninha ainda há um pequeno busto de Sófocles. Portanto, estamos na mais excelente e amada companhia. Neste momento, leio Cinzas do Norte, de Milton Hatoum, além de Cegueira Moral, de Zygmunt Bauman; e você lê O Estranho Caso do Cachorro Morto, de Mark Haddon, cuja história me reconta em partes, com emoção, a cada final de capítulo que termina. São manhãs que por muito tempo sonhei em partilhar com meu filho, mas que só agora se realizam.
     Ontem  lhe  mostrei  um  velho  sapatinho  que  guardei de seus tempos de criança pequena, por volta dos três anos. Você o achou estranho, assim como ficou encabulado e blasé quando lhe falei de desenhos animados que costumava assistir (e que eu assistia a seu lado) quando era pequeno. Agora não perde nenhuma oportunidade de negar o menino em você, o que é um sinal inequívoco do florescimento da adolescência, inclusive das chatices da adolescência.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Um açougueiro

     Fomos  hoje  a  um  açougue  nas  proximidades  da casa de minha mãe. Quando entramos no estabelecimento, deparamo-nos com um açougueiro debruçado sobre um enorme dorso de boi, cortando-o com um prazer verdadeiramente erótico. Enquanto esperávamos para fazer o pedido encomendado por minha mãe (um quilo de acém e um quilo de alcatra), ficamos ali observando o trabalho daquele profissional que o desempenhava com verdadeiro amor.
     Caminhando  de  volta  para  casa,  não  resisti  a lhe  perguntar novamente o que deseja ser quando crescer. Com sua camisa do Barcelona escrita Arthur nas costas, você respondeu que deseja ser jogador de futebol até os 32 anos e chefe de cozinha depois dos 32. Seja como for, um sujeito como seu pai, que enfrenta tantos conflitos com sua profissão e chega a desenvolver três ou quatro diferentes atividades simultaneamente, como parte do precariado que se formou hoje em dia, deseja que você jogue futebol com o élan daquele açougueiro, que crie pratos com a paixão daquele açougueiro.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Pós-caipiras


     Se  já  nasci  na  cidade,  sou  um  filho  da  cultura caipira. Tanto meu pai como minha mãe nasceram e se criaram em zonas rurais, tendo partido para Divinópolis no final dos anos 1950. Embora nunca tenha vivido na roça, quando menino ainda vi os últimos carros de boi, carroças e cavaleiros nas ruas de minha cidade natal. E na casa de meu avô materno, que usou chapéu e fumou cigarro de palha até o fim de sua vida, havia fogão a lenha, ferro a brasa e grandes baús para roupas. Por fim, depois de me tornar pai, ainda pude ver meu menino - encabuladíssimo - vestido de falso caipira nas festas juninas de sua escola em São Paulo.
     Sempre  tive  o  maior  respeito  pela  cultura  caipira, que por  cerca de duzentos anos floresceu no interior dos estados de Minas Gerais, São Paulo, Goiás, Paraná e Mato Grosso do Sul, possuindo linguagem, culinária, moda, arquitetura, tradições, musicalidade, literatura e mitos próprios e muito originais. Hoje ela praticamente deixou de existir, atropelada pela urbanização relâmpago e sem planejamento do Brasil, pela marcha do chamado "progresso". Talvez se possa fixar um marco da morte da cultura caipira: o falecimento da cantora Inezita Barroso no ano passado. Ela era quem mantinha o último bastião de resistência da cultura caipira nos meios de comunicação.
     Falo  nisso  por  que  hoje  estivemos  eu,  você  e minha mãe, no meio da tarde, tomando um café com canela regado a pães de queijo, rosquinhas, broas, pamonha, bolo de milho, queijo e tudo o mais. Houve até mesmo o requinte de canequinhos esmaltados. Como trilha sonora, minha mãe me pediu que colocasse para tocar Sérgio Reis cantando alguns clássicos do cancioneiro caipira: "Chico Mineiro", "Tristeza do jeca", "Chalana", "Rei do gado", "Saudade de minha terra", "Boiadeiro errante", "Cabecinha no ombro", "Caminheiro", "Legado sertanejo", "Mágoa de boiadeiro", "Comitiva Esperança", "Serafim e seus filhos", "Disparada"... Todas contam lindas histórias de um mundo que não existe mais. Enquanto as ouvíamos, minha mãe recontava histórias da roça e de uma era de ouro que tanto minha geração como a sua perdeu. Tal como um Hesíodo contemporâneo, ela acha que estamos hoje numa era de ferro, tempo de angústias e misérias infinitas, pois abrimos a caixa de Pandora e dela saíram os males das drogas, da luxúria, da violência, da incivilidade, da corrupção. Como sabemos, a decadência contemporânea é uma velhíssima tradição ocidental. O próprio Hesíodo está aí, com Os Trabalhos e os Dias, como prova de que essa tradição tem pelo menos 2.800 anos.

terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Na casa da vovó

     Faz  dois  dias  que  chegamos  a  Divinópolis,  depois de reencontrá-lo após quase dois anos de uma sofrida distância de milhares de quilômetros e um oceano de entremeio. Passamos o último fim de semana em São Paulo, andando pelas ruas centrais e observando os personagens da megalópole.
     Você  tem  estado  comigo  quase  o  tempo  todo, contando-me sobre o que tem feito, desafiando-me para corridas de 50 m e jogando futebol todos os dias. Percebo sua carência da figura paterna, que se manifesta em sua vontade frequente de me abraçar e me beijar. Minha mãe e minhas irmãs estão surpresas com seu tamanho e com o quanto está parecido comigo.
     Ontem  você  me  contou  que  gosta  de  uma  menina na escola, chamada Marcela. Perguntei-lhe como ela é, se do tipo bonitona, sabichona, inteligente, ousada, discreta... Soube, então, que ela é muito bonita, mas que não está lhe dando muita bola, mesmo após haver revelado-lhe os seus sentimentos. Disse-lhe para não se preocupar, pois a vida é assim mesmo, e sempre haverá alguém para você. Soube até que na escola mesma há outras quatro meninas que gostam de você. Portanto, bola pra frente!
     Nestes  dias,  estamos  passando  as  manhãs  em minha biblioteca, lendo, olhando fotografias, ouvindo música, conversando. Depois do almoço, geralmente você vai para a frente do computador, para seus jogos eletrônicos. À tarde, depois de um café, partimos para o campinho, para o futebol do dia. 
     Pérola  tem  estado  o  tempo  todo  a  seu  lado. Acompanha-nos até ao campinho, onde fica farejando todos os recantos enquanto jogamos. Minha mãe já está dizendo que ela é a sua sombra.
     No  próximo  domingo,  será  o  Natal  de  um  ano  que não foi muito fácil para mim. Depois de tantos desencontros, acidentes e desentendimentos, é quase inacreditável que estejamos vivendo um momento como este. Estamos felizes, e este será, para mim, um tempo rejuvenescedor e inspirador. Espero poder retornar a São Paulo no início do ano que vem. Já estou me movimentando para que isso aconteça. Espero, então, poder ter um quarto para meu menino em minha casa e simplesmente exercer esta paternidade que tem encontrado tantos obstáculos ao longo dos anos. Este nosso reencontro e todo o amor que ele traz à tona têm mostrado que nunca deixei de ser seu pai, que você nunca deixou de ser meu filho.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Volta

     Cheguei  hoje  a  São  Paulo  numa  manhã  nublada  e cinzenta, o que contrasta com o espírito de minha chegada. Estou feliz e ansioso por encontrá-lo na manhã do próximo sábado. Se tudo correr bem, você irá para Minas comigo e passaremos o Natal na casa de minha mãe.
     Amanhã  terei  uma  reunião  que  pode  selar  minha  volta a São Paulo no início do ano que vem. Assim, estaremos definitivamente mais próximos. Espero inclusive poder ter um quarto para você em minha casa. 
     Tendo  atravessado  a  cidade  pela  manhã  e transitado pela zona oeste à tarde, tenho um sentimento bom de reencontro mas também certa estranheza. Já não sou mais o mesmo que partiu daqui há cinco anos. Terei certamente de passar por um período de readaptação ao caos paulistano. Mas por agora só penso em aproveitar bem estes dias em São Paulo e com você depois de tanto tempo de ausência.

domingo, 11 de dezembro de 2016

Um adolescente!


     Já estou ansioso para reencontrar um agora adolescente de quase 12 anos em São Paulo, nesta semana. Num momento como o atual, em que a canalhice, a violência e a injustiça parecem triunfar, muitas vezes vem do inconformismo do adolescente uma ação para fazer face às superestruturas iníquas. Temos sempre de reimaginar e refazer este mundo sem nos conformarmos com o que ele nos oferece, e o adolescente, em seu misto de D. Quixote, príncipe Míchkin e Che Guevara, possui a imaginação, a generosidade, o sentido do poético, o destemor e o heroísmo necessários para buscar consertar o que está errado. Já não vive na dependência e na irresponsabilidade da infância e ainda não está imerso nas engrenagens do trabalho regular, da produtividade capitalista ou do casamento... Mas desejo apenas reencontrá-lo bem para que passemos juntos um fim de ano que resgate um pouquinho da vida que poderia ter sido e que não foi.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Depois de um longo tempo


     Na  semana  que  vem  chegarei  a  São  Paulo,  essa cidade feia mas fascinante onde morei por 16 anos e para onde pretendo retornar no início do ano que vem, a fim de estar próximo de você. Nessa capital mundial do grafite, eu sempre passava por estes logo no acesso ao túnel que liga a av. Rebouças à av. Paulista. No outro fim de semana, devemos passar por lá juntos, quando sairmos para passar o domingo nas ruas.  Estou ansioso por revê-lo, e trarei alguns presentinhos da Europa, assim como já encomendei que me entreguem pelo correio a Antologia Poética, de Carlos Drummond de Andrade; o livro com o mesmo título, de Vinicius de Moraes; e a Estrela da Vida Inteira, de Manuel Bandeira. Quero lê-los com você e quero ver sua sensibilidade aberta para a poesia da literatura e da vida.
     Temos  a  expectativa  de  que  você  viajará  comigo para Divinópolis, onde passará uns 20 dias de suas férias, incluindo o Natal e o Ano Novo. Será muito bom tê-lo na casa de minha mãe, que se mudou para um lugar maior, mais confortável e mais tranquilo. Prepare-se para disputas de corridas, guerras de travesseiros, jogos de futebol e lutas com os cachorros. E estaremos novamente juntos em Minas!

sábado, 3 de dezembro de 2016

Irresponsabilidade

     Nestes últimos dias, temos acompanhado as notícias sobre o acidente de avião que, na última terça-feira, matou quase todo o time de futebol da Chapecoense, que viajava a Medellín para disputar a final da Copa Sul-Americana. Imagino, nas redações dos noticiários escritos e falados, os jornalistas esfregando as mãos, exultantes diante dessas catástrofes, que são perfeitas para que exerçam o seu sensacionalismo rasteiro e a exploração ad nauseam do luto coletivo como se fosse uma telenovela. É o pressuposto da parvoíce de seu público.
     As  primeiras  investigações  dão  conta  de  que  a  causa do desastre foi simplesmente falta de combustível, revelando-se ainda que esse mesmo avião transportou, há algumas semanas, as seleções de futebol da Bolívia e da Argentina com o combustível no limite mínimo. Ou seja, a empresa em questão poderia ter matado o grande Messi. Não que as mortes de 71 pessoas no voo do clube de Santa Catarina valham menos que as de astros do futebol mundial, mas o fato de mesmo tais jogadores terem tido suas vidas postas em grande risco dá uma dimensão da irresponsabilidade na regulação dos serviços pelo Estado, bem como da insegurança em que vivemos.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Feliz expectativa


     Se  pudesse  apressar  os  dias,  faria  com  que  eles corressem, para que chegasse logo o momento de nos encontrarmos em São Paulo. Quando isso acontecer, será um momento de alegria. Tenho muitas histórias para lhe contar e muitas coisas a lhe dizer. E você também as tem. Logo ao revê-lo, hei de levantá-lo no ar, num abraço apertado.
     De  imediato  terei  muitos  desafios  no  Brasil,  que  vive um período tão infausto de sua história. Mesmo tendo de enfrentar novas dificuldades, quero fazê-lo sem perder o bom humor e o compartilhamento de minha vida com as pessoas queridas. Muito especialmente quero compartilhá-la com meu menino, participando muito mais de seu dia a dia.
     Mesmo  neste  momento  -  passageiro,  esperemos  -  em que a inconsciência, o rancor, o medo, a vulgaridade e o analfabetismo político assumiram protagonismo no cotidiano brasileiro, que possamos juntos dançar a vida, que é muito mais vasta e vai muito além dos estreitos limites dessas trevas. Amém.

domingo, 27 de novembro de 2016

Presença

     Lembro-me  de  que,  no  romance  A  Cartuxa  de Parma, um inconsolável Fabrice del Dongo, ao não mais ver sua amada Clélia todos os dias, declara: "Falta-nos um ente, e tudo se despovoa". Já houve momentos em que me senti como o personagem de Stendhal diante da ausência de meu filho. Hoje, no entanto, sinto que sua falta é que tudo povoa. Esta é uma visão talvez mais otimista ou mais madura da situação em que, há já vários anos, fomos obrigados a nos submeter. É incrível que já estejamos separados há quase dez anos e que minha ausência do Brasil já dure cinco anos. Mas espero em breve poder estar de volta a São Paulo e poder ser um pai mais presente e mais próximo agora que você inicia sua adolescência e talvez precise de uma figura de autoridade por perto. Porém desejo exercer uma autoridade flexível e negociada, embora firme. Que nossa relação seja marcada pela simplicidade, a sinceridade e alegria. 
     Não  vejo  a  hora  de  reencontrá-lo  depois  de  um  ano e meio de uma enorme distância física entre nós. Você me conta que tem guardados três presentes para mim: do Dia dos Pais, do meu aniversário e do Natal. Estou ansioso para recebê-los juntamente com seu abraço e seu beijo. Também chegarei com algo diferente para o seu Natal, que espero poder ser passado na casa de minha mãe neste ano, se as negociações para isso não gorarem.
     Quero  então  que  meus  dias  sejam  povoados  pela sua presença.

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Da aversão à inteligência

     Há  alguns  dias  eu  escrevia  aqui  sobre  o protagonismo que os ignorantes, preconceituosos e excludentes vêm adquirindo na cultura online e que já tem tido consequências políticas muito sérias na forma da eleição de políticos e plataformas que se sustentam exatamente na ignorância, no preconceito e na exclusão. Uma consequência natural desse estado de coisas é a aversão à inteligência que estamos assistindo hoje no mundo inteiro e que no Brasil assume uma de suas expressões mais grotescas.
     Desde  muito  pequeno,  cresci  admirando  as  pessoas inteligentes e talentosas, sendo estimulado a me inspirar nelas e a levar a sério os meus estudos, pois o conhecimento era a única maneira de navegar por este mundo com qualidade e poder inclusive transcender minha condição social de membro de uma família pobre em uma cidade provinciana e desimportante. Meus professores, que eram as pessoas de saber formal mais próximas de mim, eram pessoas extremamente respeitadas. 
     O  que  eu  jamais  imaginei  é  que  chegaria  um  dia em que o saber em sua dimensão crítica seria tão vilipendiado, que intelectuais críticos seriam atacados bestialmente online e insultados nas ruas, que artistas, cientistas, pesquisadores seriam identificados como "vagabundos", que ostentar a burrice, a ignorância e os preconceitos tornasse alguém popular em seu círculo de amizade e angariasse muitos votos para políticos populistas de todos as tendências ideológicas. E pensar que já há mais de 25 séculos Platão propôs que fôssemos governados por um rei-filósofo, que até recentemente ser talentoso ou esforçado era uma distinção muito atrativa!
     Claro  que  essa  voga  da  obtusidade  é  passageira  e típica de um momento de grave crise como o que estamos vivendo. Por isso espero que você não se deixe levar por essa onda de tapados, que valorize seus estudos, a crítica de seus valores, as trocas intelectuais e os diálogos em que se fala e se ouve (fale menos, ouça mais). E que os homens e mulheres que reverencia sejam as pessoas inteligentes que realmente fazem diferença neste mundo.

domingo, 20 de novembro de 2016

Da cultura online


     Tudo  indica  que  estamos  vivendo  o  fim  de  uma  era e o nascimento de outra. Eu ainda sou de uma geração que se educou lendo livros e revistas impressos, ouvindo discos de vinil, assistindo a filmes no cinema, indo ao teatro, sonhando em possuir uma grande biblioteca. Meus professores eram autoridades intelectuais que eu respeitava e admirava. Tinha horário marcado em casa para estudar diariamente e sempre encontrava meus amigos pessoalmente, sendo as ruas, praças, campos de futebol e escolas lugares muito importantes onde minha geração vivenciava sua sociabilidade.
     Hoje  tudo  se  faz  pela  internet.  O  computador  e  o telefone celular se transformaram nos grandes mediadores da educação e da sociabilidade das novas gerações (e também da minha, pois quase todos tiveram de se adaptar aos novos tempos). Muitas vezes admiro uma figura como a minha mãe, que ainda vive em outra época. Não sabe mexer no computador, não entende nada de telefones celulares sem teclas e uma vez até achou que se tratava de algo condenável quando lhe perguntei o que ela faria se pegasse o meu sobrinho twittando por aí.
     Você  já  nasceu  na  era  da  internet  massificada  e inclusive tem com ela uma relação diferente da minha. Nada tenho contra os avanços tecnológicos. No caso da internet especificamente, só desejo que você venha a ter com ela uma relação crítica e ponderada, já que ela é ao mesmo tempo uma expressão do gênio e da bestialidade humana. Se considerarmos apenas o Youtube, por exemplo, quantos filmes extraordinários, quantos programas fantásticos produzidos no mundo inteiro, quantos vídeos originais... e ao mesmo tempo quanta tolice, quanta mentida difundida como verdade, quanta vulgaridade!
     Algo  que  sempre  me  irrita  é  como  as  pessoas  mais desqualificadas hoje em dia pensam que são obrigadas a ter opinião sobre tudo, emitindo juízos absolutamente desprovidos de conteúdo e raciocínio crítico. O pior é que parecem ter a ilusão de que isso é democracia e participação política. Ainda pior é o anonimato a proteger a boçalidade dos racistas, dos sexistas, dos fascistas, dos fanáticos de todos os matizes. Há muito deixei de ler essas pérolas da estupidez humana e decidi ficar fora das redes sociais. Preferirei sempre empenhar o meu tempo na companhia dos livros e do estudo no sentido clássico do termo. 
     Você  também  está  fora  das  redes  sociais,  e  o  livro é seu companheiro frequente. Isso já é muita coisa para que se eduque para lidar de forma inteligente com essa cultura online na medida em que for crescendo e adquirindo sua independência.

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Ser alguém

      Há  vários  anos  fui  muito  marcado  pela  leitura  do romance O Falecido Mattia Pascal, de Luigi Pirandello, que trata de um tema pelo qual o escritor italiano tinha obsessão: a construção da identidade e a necessidade que temos de representar papéis sociais. Depois de haver sido declarado morto por engano, o protagonista do livro resolve aproveitar-se da situação para fugir de uma vida medíocre e opressiva, mudando sua aparência, assumindo outra identidade e partindo para uma perambulação de cidade em cidade. De início ele desfruta de enorme liberdade, desprendido de compromissos e obrigações. Porém, depois de certo tempo, sobrevém a necessidade de se relacionar com as pessoas e fazer algo significativo. Chega a estabelecer-se em Roma, a se apaixonar por uma mulher da cidade e viver com ela uma história de amor, mas, por não poder contar-lhe a verdade, decide forjar uma segunda morte e voltar a sua cidade natal como o falecido Mattia Pascal, para desfazer-se da farsa em que vinha vivendo fazia vários anos. A essa altura, porém, tudo havia mudado também em seu local de origem, e Mattia perde tudo o que tinha: a primeira mulher, seu meio de vida, todas as referências que compunham sua humanidade. Até que ele termina não sendo ninguém.
     Neste  momento  de  transição  para  uma  vida  nova  no Brasil - que nunca abandonei e nunca deixei de amar -, lembro-me da história de Pirandello. No decorrer da vida, tenho me mudado muitas vezes de cidade, de país, de relacionamentos que se pretendiam duradouros. Nessas ocasiões, tenho tido de assumir novos papéis sociais e novas identidades, mas sem renunciar a minhas raízes. Sou um brasileiro aberto ao mundo e um menino do interior de Minas. Entretanto, como as obras de Pirandello demonstram o tempo todo, nossa identidade vem à tona a partir do que fazemos e das relações que desenvolvemos com os outros. Por isso retornarei para você, para meus amigos, para o café da tarde na companhia de minha mãe, para minha biblioteca, para meu trabalho como professor e pesquisador, para o futebol de sábado na USP. E voltarei enriquecido pelas experiências destes últimos cinco anos fora do país. Tudo isso me faz ser alguém, e ser alguém significa simplesmente ter importância para você e para as pessoas queridas, além de poder fazer algo minimamente significativo. Nisso se resume minha expectativa em relação à vida nova que terei no Brasil.

terça-feira, 15 de novembro de 2016

Despedida

     Nestes  últimos  dias,  tenho  estado  em  ritmo  de despedida. Na semana passada, almocei com minha amiga Ayley, nesta semana encontrei alguns de meus ex-alunos para um café e amanhã tomarei um vinho com o casal de amigos Jill e Conti. No sábado passado, um carpinteiro que trabalhava em outra casa onde morei e com quem eu partilhava meu almoço, quando cozinhava por lá mesmo, trouxe de sua casa um almoço que preparou, desta vez para partilhá-lo comigo antes de eu ir embora. Ainda no sábado, joguei futebol em Hackney, no nordeste da cidade, como tenho feito ao longo destes anos. Talvez tenha sido a última vez que encontrei os companheiros de bola daqui. Meu time ganhou de 6x2 e fiz 5 gols. Desconfio até que, para serem gentis e generosos em minha despedida, os adversários relaxaram na marcação e me deram muito espaço, para que eu pudesse jogar bem e fazer vários gols. Ao final, vieram me abraçar e desejar boa sorte. Ganhei até um beijo na testa, dado por meu amigo italiano Fonz.
     Embora  esteja  animado  com  a  volta  ao  Brasil  e  a perspectiva de estar próximo de você e participar mais de sua vida, sinto alguma tristeza ao me lembrar de tantas coisas boas vivi aqui e tantas pessoas marcantes que cruzaram meu caminho nesta etapa de minha vida. Quando corria à margem do rio Tâmisa, ontem à tarde, fui pensando nessas coisas a partir do momento em que ouvi "Gracias a la vida" ao telefone, cantada por Elis Regina. Tal como na canção, só posso dar graças à vida pelas oportunidades que tenho tido. Por muito tempo, quando fui estudante e pouco depois de me graduar, eu não poderia nem sonhar elas fossem acontecer.

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Uma queda anunciada


     Acordo  um  pouco  mais  tarde  do  que  o  normal,  por haver me deitado tarde ontem, e vou ao computador verificar o resultado das eleições para presidente dos Estados Unidos, cujos dois principais candidatos estavam praticamente empatados. Foi com desolação que soube da vitória de Donald Trump, um bárbaro que não escondeu sua grosseria durante a campanha e fez uso do populismo e do histrionismo mais reles. Este é o ápice de um ano infausto em que as forças políticas mais retrógradas, eivadas de fascismo, conseguiram manipular as massas despolitizadas através da mentira e de um discurso redentor de solução fácil de nossos problemas. Aí estiveram a grande imprensa a serviço das oligarquias para lhes dar suporte e a inconsciência das redes sociais para reverberar o vazio desses "formadores de opinião" na forma de mais um entretenimento. Embora essa loucura toda vá certamente resultar no crescimento das desigualdades, no aprofundamento do preconceito e da exclusão, na radicalização dos conflitos e aumento da violência, em mais invertebração das sociedades, criminalização da pobreza, desmoralização da educação, ataque aos direitos da cidadania, deslegitimação do passado, substituição do valor pelo preço, talvez haja no atual emburrecimento do mundo algo de positivo: o apodrecimento da velha ordem herdada do século XX deve mesmo ser necessário para que ela caia definitivamente e seja substituída por outra que ainda está por ser criada. 
     Torna-se  cada  vez  mais  claro  que  a  democracia representativa como a temos hoje é um sistema fracassado em todos os quadrantes da Terra. É preciso buscar aperfeiçoar e desenvolver as formas de democracia participativa e regulamentar os meios de comunicação, estabelecendo com clareza os seus limites.
     Penso agora na "Parábola dos cegos", de Pieter Bruegel, o Velho, que nos remete à cegueira dos que caminham, em vida, seguindo os outros e não buscando seu próprio caminho. A trajetória miserável que a inconsciência política escolheu de forma tão indubitável - da qual o Brasil é um exemplo dos mais grosseiros - representa perfeitamente um tempo em que estamos sendo guiados por cegos. Como na conclusão da parábola cristã, a queda será inevitável. Resta saber de onde cairemos, se conseguiremos nos levantar e o que faremos depois.

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Assuntos

     Tentamos  conversar  ao  menos  uma  vez  por  semana, embora você às vezes seja muito relapso ou esteja muito envolvido com seus estudos em casa. Geralmente batemos um papo pelo Skype na segunda-feira, às 6 da tarde para você e às 10 da noite para mim. Gosto de ouvi-lo e também de falar, mas procuro ouvir mais que falar. Em geral nossas conversas - à distância e também quando nos encontramos - passeiam por uma ampla gama de assuntos: viagens, livros, esportes, filmes, música, fotografia, jogos eletrônicos, lembranças, gastronomia, humor, o que estamos fazendo ou vamos fazer, amigos, pessoas da família, escola, animais, problemas brasileiros, saudade, lugares em São Paulo e Minas, dificuldades e desafios, perigos, novidades... Essas trocas de ideias e experiências nos mantêm juntos como pai e filho, como boas referências neste mundo em que tanto se fala e pouco se diz, em que tanto se escuta e pouco se ouve.

sábado, 5 de novembro de 2016

Profissões

     Quando  você  era  um  bebê,  pouco  tempo  depois  de nascer, sempre que algum amigo vinha nos visitar, eu gostava de brincar mostrando-o deitado no berço, enquanto dormia, e dizer: "Veja, ali está dormindo um revolucionário escritor, um controvertido diretor de cinema, um impetuoso centroavante". Claro que eram projeções de pai. 
     Em  agosto  do  ano  passado,  quando  o  encontrei  pela última vez, você me disse que gostaria de ser um alquimista. E há alguns meses, numa conversa à distância, disse que pretende ser chefe de cozinha. E quando me conta sobre seus jogos de futebol, embora não seja um centroavante, como eu, relata seus gols e assistências como meio-campo, revelando-se um excelente jogador. Seja o que for em que vier a se tornar, eu o apoiarei e saberei que o fará com amor. Neste momento, alegro-me pelo fato de minhas profecias de recém-pai já terem se realizado ao menos em sua atração pelas atividades criativas e pelo esporte.
     Eu,  que  praticamente  não  tenho  uma  carreira  e costumo navegar por umas três ou quatro profissões diferentes (professor, tradutor, editor, comerciante), gostaria que você tivesse caminhos mais fáceis, mais estáveis e mais rapidamente compensadores que os que tenho tido. Mas este não é o momento de tratar desse assunto. Que por agora você esteja apenas brincando, aprendendo bem as coisas básicas e desfrutando de seus 11 anos.

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Para caminhar nas trevas


     Neste  que  é  um  dos  piores  momentos  da  história brasileira, em que o país foi tomado de assalto pelos canalhas e em que o grosso das pessoas tem exibido o mais boçal analfabetismo político, costuma-se pensar no papel transformador da cultura como antídoto à tacanhice. Por isso espero que você esteja lendo bons livros, assistindo a bons filmes, vendo boas exposições, dialogando com as pessoas, revisando e criticando aquilo em que você acredita. Uma das coisas que mais me inquietam na separação e na distância em que vivemos é não saber muito bem como você vem sendo criado, que valores tem partilhado, o que tem feito, com quem e como tem dialogado, se de fato convive com a enorme variedade de gente e culturas que caracteriza o Brasil e que se mostra de forma evidente numa megalópole como São Paulo. Assim que eu puder retornar à cidade, quero levá-lo comigo para experimentar muitas coisas para além do casulo de mediania e provincianismo das classes médias. E vamos ler juntos, conversar muito, fazer coisas juntos e juntamente com gente que pensa e faz coisas diferentes e criativas. Espero poder ter um quarto para você em minha casa, com uma estante para seus livros e uma escrivaninha onde poderá sentar-se para ler, escrever, concentrar-se. Para lá você poderá vir quando quiser e poderá permanecer por quanto tempo desejar. Então resgataremos um pouco da vida inteira que temos perdido em virtude das desilusões do passado e das necessidades do presente.

domingo, 30 de outubro de 2016

Bueiros


     Lembro-me  de  que  em  seu  perfil,  que  escrevi  você tinha três anos, mencionei que sua grande esquisitice era olhar para dentro de bueiros. Tenho até uma fotografia em que nós dois estamos recurvados (eu tentando entender aquela interessantíssima curiosidade do meu menino). Só pode ser uma tendência para a profundidade e para desvendar as coisas submersas. Em suma, uma inata vocação filosófica ou talvez um natural talento para a psicologia.
     Como  o  tenho  encontrado  apenas  uma  ou  duas vezes por ano, ao longo destes últimos cinco anos em que estou vivendo no exterior, não sei se ainda mantém a mesma curiosidade para saber sobre o que se passa nos esgotos da cidade. Sabe-se apenas que lá se passam coisas melhores e menos malcheirosas que as porcarias do esgoto da política e da Justiça brasileira que têm vindo à tona neste momento.
     Uma  vez  visitei  os  esgotos  de  Paris,  uma  atração relativamente popular da cidade. Quando tivermos a oportunidade de irmos juntos à capital francesa, quero levá-lo para esta aventura pelos subterrâneos de uma metrópole contemporânea. E vamos, então, ouvir histórias muito interessantes do dia a dia da cidade, enquanto perambulamos pelas galerias no subsolo, que são uma fantástica obra de engenharia e onde até crocodilo já foi encontrado, em meados dos anos 1980. Lembro-me agora da emocionante cena ao final de Os Miseráveis, de Victor Hugo, em que Jean Valjean carrega o ferido Marius nos ombros, atravessando os esgotos de Paris a fim de salvá-lo para a filha Cosette.
     Sei  que  no  Japão  as  prefeituras  das  cidades  colocam sempre tampas de bueiros bastantes coloridas e artisticamente trabalhadas. E em São Paulo mesmo, onde há tantos grafiteiros, recentemente eles andaram renovando alguns bueiros da Barra Funda com seus desenhos. Não sei se os viu. Em caso positivo, seu interesse pelos bueiros deve ter se tornado ainda maior.

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Saudades de São Paulo

     Outro  dia  eu  escrevia  aqui  sobre  minhas  saudades de Minas. Hoje, no entanto, eu estava correndo no fim de tarde e ouvia ao telefone uma seleção de sambas paulistanos de Adoniran Barbosa, o que resultou em fundas saudades de São Paulo. O grande compositor tratava sempre da vida dos pobres da cidade de forma tragicômica. No trânsito pela Pauliceia, que eu já cruzei de cima a baixo, seja caminhando pelas ruas e parques, seja em meio ao descalabro do deslocamento em ônibus ou metrô, eu sempre cruzava com muitos personagens das canções de Adoniran. Eles inclusive falavam com o forte sotaque italianado e a muito expressiva linguagem "errada" do compositor popular.
     Meus  amigos  paulistanos  acham  que  estou  brincando quando lhes digo que São Paulo é a melhor cidade do mundo. Embora também a considere uma das mais feias, uma das mais poluídas e uma das mais infernais do mundo, é também uma das mais fascinantes, e sou sincero em meu julgamento. Ao ouvir os sambas de Adoniran enquanto corria, vinham-me à mente os lugares que ele mencionava: Viaduto Santa Ifigênia, Brás, Morro da Casa Verde, Morro do Piolho, Jaçanã, Av. São João, Av. 23 de Maio, Praça da Bandeira, Alto da Moóca, Ermelindo Matarazzo... A maioria deles localiza-se na região central, com deslocamentos para a periferia distante. É onde há muito mais vida e onde São Paulo é muito mais interessante, diferentemente dos Higienópolis, Vila Olímpias, Moemas, Berrinis, Oscar Freires e Alphavilles da vida, com sua mediania e sua falta de humor.
     Dentro  de  mais  algumas  semanas,  chegarei  a  São Paulo e irei correndo visitá-lo depois de quase dois anos sem vê-lo. Sem dúvida andaremos por alguns lugares da geografia de Adoniran Barbosa e entraremos em contato com pessoas muito interessantes. E no início do ano que vem espero poder voltar a viver aí.

domingo, 23 de outubro de 2016

Loucos das cidades

     Andando pela cidade, de vez em quando nos deparamos com os loucos que perambulam por aí falando sozinhos, gritando, profetizando, exercendo manias e comportamentos extravagantes. Sempre tive por eles um sentimento de simpatia e respeito, no mínimo por terem uma existência diferente da vida pasteurizada vivida hoje em dia pelo homem-massa. Claro que eles sofrem e em geral vivem em condições muito precárias, mas não têm de engolir tantas porcarias do dia a dia para "ganhar a vida" nem sua respeitabilidade se define por um trabalhinho qualquer.
     Lembro-me, nas ruas de Divinópolis, de Naná, que há muitos anos vagueia pela noite com seu grande copo de cerveja, cantando e dançando, acordando no dia seguinte entre um bando de cachorros e dando-lhes um bom-dia ultraentusiasmado.
     Nos Estados Unidos havia um que estava sempre perto de minha casa, pedindo dinheiro e xingando quem se recusava a dar-lhe algum trocado. Uma vez, num dia frio, passei por ele, que me cumprimentou educadamente e me pediu dinheiro. Como não lhe dei, ao perceber meu sotaque, perguntou de onde eu era. Respondi-lhe: "Do Uzbequistão." Ao que ele reagiu imediatamente: "Fuck Uzbekistan!".
     Não sei o que acontece em Londres que os loucos não são vistos durante o dia, mas à noite eles emergem em massa e tomam conta das ruas. Basta pegar o metrô ou caminhar pela área central que se verão centenas deles por todo lado.
     Meu amigo Doc, em São Paulo, sempre diz que para lidar com um louco é preciso ser mais louco que o louco e antes do louco. Lembro-me de uma ocasião em que andávamos pelas ruas do Pacaembu, se não me engano para ir até o estádio e visitar o Museu do Futebol. Ao descer uma longa escadaria num morro, que dava acesso à parte mais baixa do bairro, vimos que havia um louco no meio do caminho. Ele partia para cima das pessoas por ali transitavam e gritava com elas, como se fosse o dono da escadaria. Os que desciam o morro levavam sempre um tremendo susto. Ao ver aquilo, Doc disse que iria solucionar o problema. Parei e fiquei assistindo ao que ele faria. Meu amigo desceu as escadas como um transeunte normal e, quando se aproximou do louco, partiu para cima dele e gritou antes de qualquer reação do outro, soltando seu vozeirão. Vi, então, uma cena impressionante: o louco se jogou no chão e assumiu posição fetal, passando a balbuciar como um bebê. A partir de então, todos puderam subir ou descer as escadarias do Pacaembu sem serem incomodados. E confirmou-se o diagnóstico: para tratar com louco, é preciso ser mais louco que o louco e antes do louco.
     Erasmo  de  Roterdã  escreveu  um  elogio  da  loucura, ressaltando como ela está em cada um de nós: "O homem é tanto mais feliz quanto mais numerosas são as suas modalidades de loucura... eu não saberia dizer se haverá, em todo o gênero humano, um só indivíduo que seja sempre tão sábio e não tenha também a sua modalidade". E o psiquiatra Simão Bacamarte, o hilariante alienista de Machado de Assis, tranca toda a população da cidade em sua famosa Casa Verde, sob a presunção de que todos fossem loucos, para no fim das contas trancar-se a si mesmo ao perceber que o doido era ele. Esses grandes autores nos convidam a desconfiar de todo excesso de coerência, de todas as personalidades muito encantadoras, de todos os discursos envolventes, de todos os sistemas que se apresentam como solução para tudo. E uma pitada de loucura é excelente tempero de nossas ações. É por isso que, quando o encontro, depois de um abraço e um beijo, costumo lhe dizer, diante do tempo que temos pela frente: "Vamos fazer muitas loucuras neste fim de semana". E você abre o seu sorriso diante das promessas dessas loucuras.

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Rua Passa Tempo


     Há  quem  ache  que  estou  ficcionalizando  quando  digo que morei numa ruazinha chamada Passa Tempo durante a infância. Hoje ela está próxima da área central, mas naquele tempo localizava-se na periferia extrema da cidade. Ao seu final começava uma área de mata fechada onde muitas vezes eu e meus amigos nos embrenhávamos para brincar, estando sempre às voltas com cachorros, peixes de pequenos cursos d'água, cobras e outros bichos perigosos, feitiços com velas coloridas, galinhas pretas sacrificadas e garrafas de cachaça que apareciam pelas encruzilhadas e diante dos quais tínhamos medo e respeito.
     Aí  está  a  placa  da  rua,  que  fotografei  há  cerca  de dois anos. Tudo está muito mudado por lá, inclusive os moradores. Um ou outro remanescente dos tempos antigos me para, pede para entrar em sua casa, me oferece um cafezinho e fica de conversa por longo tempo, querendo saber o que tenho feito da vida. Se neste fim de ano, em dezembro, você realmente puder ir passar alguns dias comigo em Minas, nas proximidades do Natal, vou levá-lo para conhecer este pequeno Olimpo da minha mitologia pessoal.

domingo, 16 de outubro de 2016

Reinados, congados, Reis


     Minha mãe pediu que minha irmã me enviasse uma foto do congado de Nossa Senhora do Rosário, que passou hoje pela manhã pela porta de sua casa, indo até o asilo de velhos que fica nas proximidades, onde encerrariam seu percurso pelas ruas da cidade e almoçariam. Ela foi vê-los e reavivar lembranças dos seus tempos de menina em regiões rurais do centro-oeste de Minas.
     Embora nunca tenha me envolvido diretamente com eles, eu mesmo, quando criança, vi muito os coloridos grupos de congado e reinado passarem pelo bairro onde morava, com seus tambores, seus acordeons, seus pandeiros, chocalhos amarrados aos tornozelos, danças de bater varas ritmicamente, bandeiras com imagens de santos pintadas à maneira naïf, cantos que se alongam. É o catolicismo mais puro e mais dionisíaco dos negros e pobres, junto aos quais cresci. E havia também as folias de Reis, no dia 6 de janeiro, com suas cantigas tradicionais e os coloridos palhaços a visitar as casas, onde cantavam para atrair proteção durante o ano que se iniciava. Muitas vezes minha mãe abriu a porta de nossa cada para os grupos de foliões, a quem servia café e algum petisco. 
     A  esta  altura,  achei  até  que  esses  grupos  estavam se acabando, uma vez que já na minha infância eles eram formados principalmente por velhos. Ao menos os velhos de minha infância já devem ter morrido quase todos. Mas fico feliz por ver a tradição renovando-se e se mantendo com firmeza neste mundo que está se tornando tão homogêneo em sua "modernidade". Sei que há, em Divinópolis, até mesmo uma missa conga.
     Lembro-me de um reinado ou congado que passou perto da casa de minha mãe há alguns anos, num fim de semana em que eu estava por lá. Ao lado da entrada do asilo de velhos, há também um salão onde realizam velórios. E havia um funeral acontecendo no local quando de repente chegou o cortejo com a música de vários grupos ritmada por seus tambores, além das varas batendo no ar. Foi um grande contraste entre o luto da família e dos amigos do morto e a alegria da festiva comitiva que passava e se estabelecia justamente ao lado do funeral. Vi, naquela cena, o próprio espírito de Minas.

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

O dom do filho

     Tenho  aqui  comigo  o  livrinho  La  via  Humaine,  do filósofo francês contemporâneo André Comte-Sponville, a quem admiro muito. Em capítulos curtos, ele analisa com beleza as diversas etapas de nossa trajetória por este mundo, mesclando experiências pessoais com uma reflexão filosófica profunda. Num deles, intitulado "Em nome do filho", ele reflete que só existe família a partir do momento em que há um filho, que um casal sem filhos é apenas isso, um casal, não uma família, ao passo que um progenitor que cria um filho sozinho é evidentemente uma família. E a relação de uma família com o filho é  - ou deveria ser - de abertura para o mundo, generosidade, liberdade:

     A  família,  que  dá  tudo  ao  filho,  termina  assim  por dar o próprio filho. Para quem? Para outro homem, outra mulher, por certo, mas também - em primeiro lugar e sobretudo - para ele mesmo. É esse o último dom, o mais belo, o mais difícil, que se chama liberdade.

     Você  é  filho  de  uma  família  que  se  desfez,  mas nunca deixou de ter a sua família. Embora distante, tenho buscado exercer o papel de pai da forma possível, acompanhando seu desenvolvimento, dialogando com você, negociando a definição dos seus limites, fornecendo-lhe suporte econômico, inteirando-me do cumprimento de suas responsabilidades, participando de momentos de prazer com você. Num tempo em que se fala tanto sobre felicidade e que nos apresenta tantas fórmulas para sermos felizes, parece-me que, em grande medida, minha felicidade hoje está atrelada a sua própria felicidade. É mais uma doação de um pai ao filho. 
     Chegará  o  dia  em  que,  como  ressalta  Comte-Sponville, haverá a doação mais difícil e mais bela, e você seguirá seu próprio caminho, provavelmente ao lado de alguém que você ama, e iniciará um novo ciclo familiar, provavelmente na companhia de seu(s) filho(s). Que sua família, então, seja mais integrada e que você não tenha de reinventá-la com migalhas, tal como tem acontecido comigo.

domingo, 9 de outubro de 2016

Svidrigáilovs


     Quando  ouço  certos  nomes,  eles  têm  o  poder  de evocar uma personalidade e um destino. Para alguns escritores, isso também acontecia. Shakespeare, em Othello, dá o nome de Iago a um invejoso manipulador sem limites. Machado de Assis, em Quincas Borba, chama de Palha um burguês rasteiro e aproveitador. Dostoiévski, em Crime e Castigo, dá o nome de Svidrigáilov a um canalha juramentado. A própria sonoridade da palavra já evoca seu mau-caratismo. E Nelson Rodrigues sempre chama os canalhas de suas obras pelo sobrenome, como Palhares, Peixoto, Werneck, Sabino. E a crônica de Brasília tem nos oferecido diariamente uma vasta galeria de canalhas que ocupam hoje o poder. Aí estão nomes como Cunha, Temer, Aécio, Cardoso, Jucá, Bolsonaro, Mendes, Moro, Dallagnol, Calheiros, Caiado... Eles são legião, figuras dignas de beijar a cunhada num corredor da casa do sogro, nomes dignos de um escroque exemplar de Shakespeare, Machado de Assis, Dostoiévski ou Nelson Rodrigues.
     No  fim  de  semana  passado,  ocorreram  eleições municipais no Brasil. Seguindo uma tendência mundial, os resultados foram desastrosos. O momento de crise econômica tem facilitado a ascensão de políticos populistas, que vêm chegando ao poder ou nele permanecendo com plataformas que contemplam o desmanche do Estado, a destruição dos direitos da cidadania, a degradação dos sistemas de educação e saúde. Isso quando não se elegem alardeando propostas excludentes, xenófobas, machistas, racistas, homofóbicas e misóginas. O espetáculo midiático da execração seletiva de políticos corruptos, como temos assistido ultimamente no Brasil, tem contribuído para a despolitização e o analfabetismo político de muita gente. Para coroar um ano em que o fundamentalismo ultraliberal está vencendo por todo lado, só nos falta ver o energúmeno Donald Trump ser eleito presidente dos Estados Unidos no mês que vem. 
     Foi  um  contexto  parecido  com  este  que  gerou  os totalitarismos de direita e de esquerda nos anos 30 do século passado. É apavorante saber que um Hitler chegou ao poder legitimamente, vencendo uma eleição. E que o nazismo teve amplo apoio dos cidadãos comuns da Alemanha. Também é apavorante ver hoje a esquerda demonstrando tanta incompetência e comportando-se exatamente como aqueles que ela historicamente criticou, estando ela também superpovoada por salafrários.
     Mas  os  canalhas,  que  sempre  existiram  e  sempre rapinaram o poder, talvez estejam aí para, como santos às avessas, nos lançarem o desafio cotidiano de sermos bons num mundo mau. Agora que você entrará na adolescência e começará a se preocupar com essas coisas, desejo que não se aliene das questões importantes de nossa sociedade e participe dela, agindo com dignidade e respeito por si mesmo e pelos outros. Jamais pense que, porque as coisas estão assim, permanecerão para sempre assim. Nosso processo histórico, com a participação das gerações anteriores e de nós mesmos, criou este estado de coisas. Tudo está em constante movimento e pode ser diferente.

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Perfil


     Encontrei hoje, no meio de um livro, o rascunho de um perfil que preparei de você para um caderno que registrava seu desenvolvimento durante seus primeiros anos. Li-o com um sorriso nos lábios. Em minha biblioteca, na casa de minha mãe, vou buscar esse caderno, que possui muitas outras coisas interessantes a seu respeito. Aqui vai o seu perfil tal como o encontrei:

Arthur de Souza Rabelo, dezembro de 2008, três anos


Nascimento: 13/02/2005

Local: Belo Horizonte

Time do coração: Atlético Mineiro (Galo)

Características de personalidade: Raça, assertividade, argúcia, emotividade, certa inconstância, competitividade, impaciência

Características marcantes: Excelente desenvolvimento da linguagem, um sorriso envolvente, olhos que chamam a atenção

História preferida: “Os três porquinhos” (quer ouvi-la todas as noites)

Esportes: Futebol, natação, corridas, descer barrancos, jogar pedras em garrafas, jogar pedras na água de lagos, rios, poços e córregos

Passeios preferidos: Centro de Práticas Esportivas da USP, parquinhos infantis, Livraria Cultura da Av. Paulista, Instituto Butantã, parque Villa-Lobos

Pratos preferidos: Batatinha frita, escondidinho de carne de sol

Livros: O Menino Maluquinho, Lendas e Mitos do Povo Brasileiro

Músicas: “O pato”, “Se essa rua fosse minha”

Brincadeiras: Lutar na cama, guerra de travesseiro, serrador, ser jogado para cima, esconde-esconde

O que não suporta: Alface e todas as outras folhas, lugares barulhentos

O que não dispensa: Colo e ombros do papai quando vai passear

Espírito: Plenitude, visão encantada do mundo

Bichos preferidos: Cachorro e joaninha

Hobby: Colecionar figurinhas de heróis e personagens de desenho animado

Esquisitice: Olhar para dentro de bueiros com muita curiosidade (nem Freud explica isso)

Férias marcantes: Temporada na casa da Vovó, em Divinópolis, no começo de 2008

domingo, 2 de outubro de 2016

Homo Viator

     Já  não  vejo  a  hora  de  estar  no  Brasil,  desta  vez para ficar. Principalmente desejo estar perto de você, de minha família em Minas, de meus amigos em São Paulo. Será uma volta cheia de alegria e emoção. Claro que não será um retorno para a estagnação. A vida se movimenta o tempo todo, e, por razões profissionais, ainda nem sei muito bem onde vou parar. De início, devo ficar um mês ou dois na casa de minha mãe, em Minas, até encontrar um caminho.
     Conforme  o  filósofo  existencialista  Gabriel  Marcel, somos essencialmente vagabundos em nossa trajetória por este mundo. No fundo, não possuímos nada nem nos estabelecemos em lugar algum, mesmo se permanecemos no mesmo lugar ao longo de toda a vida. O título de um de seus livros, dado em latim, sintetiza bem sua filosofia: Homo Viator, algo como "O Homem como Viajante". Do mesmo modo que possuímos essa dimensão marinheiro ou astronauta, temos também uma dimensão agricultor ou jardineiro que faz com que tantas coisas essenciais tenham origem no fato de termos um lugar onde passamos a infância e onde experimentamos o mundo pela primeira vez, de estarmos enraizados numa cultura e numa tradição. Tanto quanto partir, viver é também voltar para casa. É o que está próximo de acontecer.

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Uma aventura na floresta


     Estamos  caminhando  para  o  fim  do  verão.  Ventos  já começam a soprar, trazendo um friozinho insinuante, e daqui para frente a garoa fininha que é uma das marcas da cidade vai começar a cair com mais frequência. Há alguns dias, quando estava no norte do país, aluguei uma mountain bike e fui passear por trilhas numa floresta típica daqui, com árvores muito altas e vegetação pouco densa. Na ocasião, começou a chover, o que fez com que a aventura se tornasse relativamente perigosa. Mas fui prudente e tomei cuidado, pois o fim da tarde já se aproximava, e eu estava com receio de escurecer rapidamente. Além disso, como não havia quase ninguém no local, fiquei preocupado com a possibilidade de me perder e ter muita dificuldade para encontrar o caminho de volta para a casa onde estava hospedado. Na ocasião pensei em você, que gosta dessas coisas. Lembra-se de nossos passeios na chuva pelos bairros de Divinópolis, em lugares onde jogávamos futebol na lama, subíamos barrancos escorregadios ou lutávamos sobre a terra vermelha, voltando para casa em grande sujeira? Então minha mãe e sua avó ralhava conosco e nos mandava passar diretamente para o banheiro, para um banho quente e bem esfregado.

sábado, 24 de setembro de 2016

Um menino sublime


     Quando  caminho  pela  cidade,  gosto  de  reparar nessas placas que marcam casas onde moraram grandes personalidades que viveram em Londres. Nesta, que fica em Belgravia, do outro lado do rio, morou  uma das maiores figuras que a humanidade já produziu e ali ele compôs sua primeira sinfonia aos oito anos. Aos oitos anos! Não é incrível? Se o homem é um animal que está entre o que há de mais sublime e o que há de mais bestial neste mundo, participando de ambos, alguns de nós tendem muito para um dos lados, tal como o augusto menino de Salzburgo.
     Seria  muito  bom  se  nossas  cidades  também reverenciassem assim os grandes homens e as grandes mulheres que nelas viveram. Pelo que sei, apenas o Rio de Janeiro faz isso um pouco. Mas algo assim já toca as raias da utopia num país cujo Estado ainda é tão precário, cujo sistema de educação é tão desastroso e onde tantos homens públicos nos envergonham a cada dia que passa. Fomos nós mesmos, porém, em nossa experiência histórica, que criamos este estado de coisas. Ele pode ser mudado, e podemos trabalhar para que as coisas se transformem, ainda que devagar.

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Da religião e seus demônios

     Não  sei  se  ainda  há  aulas  de  Educação  Religiosa  na escola básica nem se você está sendo submetido a essa tortura espiritual. Tive de enfrentar essa aberração quando eu era menino. A tal educação religiosa não passava de um catecismo na doutrina católica do modo mais piegas e enfadonho, pleno do sentimentalismo mais vulgar que se pode imaginar. Não havia sequer um mínimo de consideração pelos alunos que vinham de famílias que praticavam as religiões afro-brasileiras, o protestantismo ou outra qualquer. Olhando retrospectivamente, não tenho dúvida de que aquelas aulas contribuíram não somente para que eu me afastasse do catolicismo como perdesse a fé por volta dos 18 anos. Se Deus é aquele asilo da ignorância, da superstição e do antropomorfismo, melhor mesmo que ele tenha morrido, como anunciou Nietzsche. Neste mundo há horrores demais, sofrimento demais, injustiça demais - e muito pouca felicidade - para que a ideia de um Deus todo-poderoso e infinitamente bom seja aceitável. 
     Não  sei  se  você  vem  sendo  levado  a  algum  antro do chamado "pentecostalismo" para assistir aos gritos histéricos de exploradores da credulidade de um rebanho de alienados. Assim que eu retornar ao Brasil, no fim deste ano, gostaria de conversar muitas vezes sobre esse assunto com você. Não pretendo, em hipótese alguma, doutriná-lo no ateísmo. Se você tiver uma fé autêntica, não há nenhum problema. Apenas há formas aceitáveis e formas inaceitáveis de vivenciar sua espiritualidade. No mínimo você precisa ter senso crítico para distingui-las. O fanatismo, a histeria, o histrionismo de palhaços de terninho e bíblia debaixo do braço, com um discursinho prêt-à-porter gritado ao som de uma bateria desafinada ao fundo para instilar o medo e uma esperança vazia são algo intragável sob qualquer ponto de vista. Mas nós teremos tempo e vagar para dialogar sobre isso.

domingo, 18 de setembro de 2016

O tempo da infância de cada um


     Fui  um  menino  que  cresceu  brincando  nas  ruas, numa cidade do interior de Minas. Aquela onde eu morava tinha  o sugestivo nome de rua Passa Tempo. Hoje ela está localizada num bairro próximo da área central, mas naquela época ficava na periferia extrema de Divinópolis, que era muito menor do que é hoje. Ao fim daquela ruazinha curta, começava uma região com mato e algumas pequenas fazendas. Havia tranquilidade e segurança nos espaços públicos e toda uma vida comunitária por todo lado. Eu jogava futebol todos os dias depois das aulas, soltava papagaio, descia ladeiras em carrinhos de rolimã. Tinha bastantes amigos e a proteção de minha mãe, que sabia de tudo o que se passava na vida de seus três filhos. Tínhamos sempre um cachorro ou um gato, ou os dois ao mesmo tempo. Era um menino pobre, mas vivia muito bem por fazer parte de um mundo que me acolhia e me respeitava.
     Você  vive  hoje  numa  das  maiores  cidades  do  mundo, possui uma quantidade enorme de roupas, sapatos, brinquedos e toda uma parafernália eletrônica. Não socializa-se o bastante nem mesmo com as pessoas do condomínio onde mora. Não pode nem pensar em brincar nas ruas, por causa da violência e da insegurança que tomaram conta do país e que são ainda mais intensas nas cidades grandes. Nunca houve um animal no seu apartamento e sinto que você tem muitos momentos de solidão em seu quarto. Não desejo fazer uma comparação entre a minha infância e a sua, que tem muitos aspectos melhores que a minha. Por exemplo, sua educação escolar é bem melhor que a que tive, você já sabe nadar muito bem, tem aulas de violão e taekwondo, possui uma desenvoltura com as novas tecnologias que eu não tenho. Além disso, tem acesso a dentista, psicólogo e bons hospitais sempre que precisa. Nenhuma das duas infâncias é melhor que outra. São apenas diferentes e fazem parte de contextos históricos e sociais distintos.
     Em dezembro, quando eu voltar ao Brasil, quero levá-lo para passar ao menos duas semanas em Divinópolis, na casa de minha mãe. Quero que você viva um pouco da minha infância e quero também viver um pouco da sua. Vamos fazer muita coisa juntos.

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Histórias de cá e histórias de lá

     Há  cinco  anos  morando  em  terra  estrangeira,  de  vez em quando gosto de brincar com as pessoas daqui, inventando histórias de costumes, gente e coisas do Brasil com a finalidade específica de causar-lhes forte impressão. E quando vou ao Brasil invento histórias daqui para impressionar os brasileiros, especialmente minha mãe.
     De  vez  em  quando  conto  a  meus  alunos  e  meus amigos ingleses que no Brasil os rapazes, quando chega o momento de entrarem na vida adulta, têm de passar por um rito de iniciação que consiste em atravessar a nado um rio cheio de piranhas. Para dar autenticidade à história, mostro algumas cicatrizes que tenho pelo corpo, afirmando que foram mordidas do abominável peixe. Gosto de ver a cara de perplexidade que eles fazem e seus comentários. Consideram aquilo o máximo da virilidade.
     Quanto a minha mãe, conto-lhe que os ingleses comem carne de cavalo e que, como estou vivendo entre eles, também o faço regularmente. Costumo mostrar-lhe os meus braços e perguntar-lhe se ela já reparou que estou ficando mais forte e meio musculoso. A explicação: é a carne de cavalo. Também gosto de ver a cara que ela faz, bem como seu comentário: "Você não tem dó, não? Um bicho tão dócil!". E também lhe conto que falei mal da rainha, numa entrevista para um jornalista, e que ela não gostou, tendo ameaçado me mandar sair do país. Olho para minha mãe, e lá vem uma cara de indignação, com ela balançando a cabeça de um lado para o outro: "Deviam cortar sua língua e jogá-la para os cachorros!".
     Vou pensar em algumas histórias para lhe contar quando nos encontrarmos, em dezembro.