segunda-feira, 13 de junho de 2016

Tio Iraci

     Minha  irmã  Renata  acaba  de  me  telefonar  para informar que nosso tio Iraci, que chamávamos tão brasileiramente de Lalá, sofreu um enfarte há algumas horas e faleceu. Ele devia ter uns 67 ou 68 anos. Minhas irmãs e minha mãe almoçaram em sua casa ontem e o encontraram bem, sem nenhum sinal de que isso estava para acontecer. Sinto-me agora abatido por mais essa perda em minha família neste ano, que tem sido bastante cruel.
     Tenho  escrito  uma  coleção  de  contos  envolvendo problemas familiares, que espero que se transforme em um livro dentro de mais algum tempo. Há algumas semanas escrevi uma história inspirada num acontecimento que marcou o início de minha adolescência, justamente envolvendo meu tio Iraci. Quando mais jovem, ele era um Casanova de província. Tinha amantes em quase todos os bairros de Divinópolis e de outras cidades onde passava temporadas trabalhando. Por causa de suas aventuras e de uma grande irresponsabilidade, deixou vários filhos espalhados por este mundo, a maioria deles não reconhecidos.
     Como  era  um  homem  de  poucas  letras  num  tempo em que as pessoas ainda trocavam muitas cartas, ao saber que eu era bom aluno na escola, tio Iraci acabou fazendo de mim o secretário de seus amores. Eu devia ter 11 anos quando isso começou, durando pelos três ou quatro anos seguintes. Ele aparecia em nossa casa como quem vinha de visita a minha mãe e sua querida irmã, conversava fortuitamente e ficava por ali. Quando minha mãe se distraía ou se engajava em algum afazer doméstico, ele me puxava para um canto e me pedia que lesse a carta de alguma de suas namoradas em voz alta. Depois sacava caneta e uma folha de papel escondidas na camisa e me pedia que escrevesse a resposta, recomendando-me que enfatizasse o quanto ele estava sofrendo de paixão e não aguentando mais esperar pelo próximo encontro com aquelas divas, que costumavam também lhe mandar cartões perfumados, com desenhos de corações flechados e beijos de batom. E eu, nas minhas funções de Valmont de meu tio, escrevia respostas com o fim óbvio de seduzi-las. Como acontece com todo D. Juan, seus relacionamentos eram efêmeros e se desfaziam depois de ele conseguir o que desejava. 
     Como  compensação  por  meus  serviços,  de  vez  em quando tio Iraci me aparecia com um presente: uma bola, uma camisa, uma nota de bom valor para que eu a gastasse como que quisesse...
     Depois de algum tempo, quando eu já tinha uns 14 ou 15 anos, meu pai, que não via com bons olhos minha participação nas conquistas de meu tio, resolveu pôr um fim no que chamava de "aquela sem-vergonhice", proibindo-me de continuar escrevendo cartas para ele. Embora ainda tenha ido me encontrar na saída da escola, para que eu lhe escrevesse mais algumas cartas lancinantes, tio Iraci já estava começando o namoro que resultaria no seu casamento, que, contra todas as previsões de algumas línguas de cobra da família, foi bem-sucedido e durou pelo resto de sua vida. E, contrariamente aos temores de meus pais, ao crescer jamais vim a me tornar nenhum serial lover por causa do exemplo que tive na adolescência. E tive apenas um filho, que é reconhecido e muito amado.
     Há  alguns  anos  participei  de  um  almoço  na  casa de tio Iraci, em que sua família recebeu a visita de um de seus filhos, que cresceu no sul de Minas, criado somente pela mãe, com muitas dificuldades. O rapaz acabou se realizando como uma pessoa de bem. Fez universidade de Enfermaria, sendo hoje chefe deste setor em um hospital, além de cantor de música sertaneja. Até então os dois haviam se encontrado apenas uma vez, quando o rebento tinha cinco anos, em meados dos anos 1980, e foi visitado pelo pai. Foi bonito ver aquele reencontro e o abraço dos dois para enterrar qualquer ressentimento, podendo seguir bem a vida dali para frente. Sei que desde então eles permaneceram em contato.
     Tio  Iraci  era  também  um  faz-tudo,  sendo  sempre chamado às casas de seus irmãos para instalar portas, consertar fechaduras, colocar pisos, pintar paredes, resolver problemas com goteiras. Na sua juventude, era também brigão em bares e dado a alguns excessos, o que já o levou a passar uma ou duas noites preso e a cultivar uma sólida reputação como valentão municipal. Ainda durante minha adolescência, lembro-me de, após uma pendenga futebolística, um jogador adversário maior e mais forte ter ameaçado me bater. Desafiei imediatamente que o fizesse, informando-lhe de que depois meu tio Iraci acertaria as contas com ele. Foi o que bastou para que o valente da vez abaixasse a crista e me deixasse em paz, passando inclusive a me evitar durante o resto do jogo.
     Na  última  vez  em  que  estive  em  Divinópolis,  há seis meses, Lalá me telefonou, perguntando-me se eu iria a sua casa no domingo seguinte para um almoço. Eu já tinha outro compromisso com amigos e não pude ir. Dois dias depois cruzei o Atlântico de volta para a minha vida em Londres. Foi última vez que conversamos. Jamais voltaremos a almoçar juntos. Com sua morte hoje, meu mundo se torna mais pobre e mais triste. Que essas lembranças fiquem como uma espécie de última carta para ele, desta vez tendo-o como destinatário. Minha vida foi melhor e mais rica com a presença dele, na dimensão humana, demasiado humana de suas qualidades e seus defeitos.

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