Muitas notícias recentes do Brasil têm rompido todos os limites do absurdo e ido muito além do que mesmo a mais estrambótica ficção pode imaginar. Perto do que temos assistido dia a dia, acordar de sonhos intranquilos pela manhã e se perceber metamorfoseado num inseto gigantesco é "fichinha", como o povo diz.
Acabo de ler nos jornais que, no Rio de Janeiro, uma ciclovia suspensa a grande altura diante do mar, numa área sujeita a arrebentação, desabou depois de receber o impacto de uma grande onda. Com isso, três ciclistas que passavam pelo local na ocasião perderam suas vidas. Só isso já superaria tudo o que um Kafka, um Ionesco ou um García Márquez seria capaz de imaginar. Afinal, como esses grandes escritores poderiam ser capazes de conceber o artista da engenharia que projetou essa ciclovia e que não sabia que o mar arrebenta naquela região há milhões de anos? A irresponsabilidade, a incompetência e a certeza da impunidade nos são familiares, mas também já romperam todos os limites do concebível.
Mas o pior ainda estava por vir, e nisso nem mesmo a imaginação delirante de um Dante da Divina Comédia ou de um Hieronimus Bosch do "Jardim das delícias" seria páreo para nossa realidade. Os cadáveres de dois dos ciclistas mortos foram levados para a praia até que a ambulância do Instituto Médico Legal viesse buscá-los. E um fotojornalista que chegou rapidamente para cobrir o acontecimento capturou esta imagem para além de tudo o que se pode imaginar: os dois corpos estendidos no chão e um jogo de futebol acontecendo tranquilamente bem ao lado. Como foi que o homem cordial brasileiro pôde chegar a tal indiferença, a tal desvalorização da vida e a tal despreocupação com o próximo?
Ao visualizar o horror mostrado nesta fotografia, lembrei-me de imediato da parábola do bom samaritano, contada por Cristo: um homem que viajava de Jerusalém para Jericó foi espancado e roubado por salteadores, que fugiram, deixando-o estatelado na estrada, quase morto. Um sacerdote e um levita que passaram por ali não se compadeceram do moribundo e seguiram seu caminho, indiferentes. Porém um samaritano, povo desprezado pelos judeus, aproximou-se do homem, administrou-lhe os primeiros cuidados, colocou-o sobre seu animal e levou-o para uma hospedaria. No dia seguinte, deu uma boa quantia em dinheiro ao hospedeiro, com ordens de cuidar do desconhecido e enviar-lhe a conta do que porventura viesse a gastar a mais.
Quão próximos esses peladeiros cariocas estão do sacerdote e do levita da parábola cristã. Quão distantes estão do bom samaritano. Quão desumanos, quão banais. Como os ciclistas já estavam mortos nesse momento, seria ao menos catártico ver um bom samaritano pós-cristão que ali chegasse possuído de santa fúria e mandasse esses peladeiros de praia para aquele lugar.
Talvez se estranhe que recentemente eu venha tratando de temas tão pesados ao me dirigir a um menino de 11 anos. Porém não há como nos evadir dessa realidade pavorosa que é lançada em nossas caras todos os dias e que você, vivendo na selva paulistana, conhece muito bem. Por outro lado, só refletindo sobre o fundo de poço a que chegamos poderemos transformar esse estado de coisas.
Que você jamais tenha a indiferença desses canalhas de praia em relação a qualquer ser humano.
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