segunda-feira, 4 de abril de 2016

A besta-fera entre nós

     Ontem  pela  manhã,  logo  ao  acordar,  sentei-me  ao computador e lhe escrevi, contando-lhe sobre o duplo arco-íris que havia visto no dia anterior e fazendo humor com sua imaginada resistência em passar debaixo de um deles. Meia hora depois, ainda no espírito alegre da manhã de domingo, recebo um telefonema de minha irmã Renata, contando-me que Felipe, casado com nossa prima Priscila, havia sido assassinado na noite de sábado. Estarrecido pela notícia, em seguida recebi relatos vagos e desencontrados de pessoas da família sobre o que havia ocorrido. Um pouco mais tarde, enviaram-me o boletim de ocorrência com a narrativa oficial dos fatos por parte da Polícia.
     O  mais  espantoso  nessa  história  melancólica  é  o  motivo da atrocidade que foi cometida contra Felipe - e por engano. Num bar do bairro onde ele morava, durante um jogo de futebol transmitido pela televisão, houve uma discussão que rapidamente se desenvolveu para uma briga. Então dois monstros que lá estavam saíram do local, retornando pouco depois sobre uma motocicleta e com uma arma, atirando a esmo nas pessoas que se encontravam no bar e ferindo quatro delas sem maior gravidade. Seguiram seu caminho e, dois quarteirões adiante, passaram por Felipe, que estava encostado em sua própria motocicleta, próximo de sua casa. Confundido com uma das pessoas envolvidas na briga no bar, ele foi alvejado várias vezes, morrendo no próprio local. Enviaram-me até uma reportagem de um jornal da cidade, que teve a indelicadeza de publicar uma fotografia dele pendurado na motocicleta, esvaindo-se em sangue. Tinha 27 anos e casara-se com Priscila havia dois anos. Não bebia, era um sujeito educado, pacífico e com toda uma vida pela frente.
     Diante  de  um  acontecimento  como  esse,  penso  sempre que Deus não pode mesmo existir. Ou se existe e realmente os homens foram feitos a Sua imagem e semelhança, "somos levados à inevitável conclusão de que Deus é um covarde, um idiota e um pilantra", como escreveu Mencken.
    Chorei  ao  me  lembrar  da  última  vez  que  vi  Felipe, durante a ceia familiar do Natal de 2014. Sentados proximamente, na grande mesa que reunia várias pessoas, ficamos por algum tempo conversando justamente sobre futebol. Os tiros que o mataram agora também me atingem neste outro lado do mundo.
     Há  alguma  coisa  muito  errada  com um país em que uma barbaridade como essa já faz parte do cotidiano, um país que está perdendo parte significativa de sua juventude dessa maneira. São tantos anos de desrespeito pelos direitos da cidadania, corrupção, desvalorização da vida, impunidade que essa escória armada não pensa duas vezes para atirar e matar. Neste caso específico, o motivo dos assassinos parece muito mais um simples pretexto para dar vazão a sua bestialidade que um real motivo, se é que se pode conceber algum motivo para tirar a vida de alguém. O que aconteceu com Felipe poderia ter acontecido a qualquer um de nós.
     Leio  agora  nos  jornais  de  São  Paulo  que  ontem  à tarde, antes de um jogo entre Corinthians e Palmeiras, houve um incidente parecido, com uma bala de outro facínora tirando a vida de um senhor que passava por perto de uma briga entre facções das torcidas dos dois clubes...
     Lembro-me  de  haver  passado  minha  infância  e  minha adolescência em Divinópolis, até vinte e pouco anos atrás, quando a cidade era muito segura, com um sentido de comunidade, e um acontecimento como esse era simplesmente impensável. Tivemos de ser muito incompetentes e muito insensíveis para chegarmos no fundo do poço em que nos encontramos hoje.

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