sexta-feira, 20 de março de 2015

Uma língua do afeto

     Numa  aula  desta  semana,  meus alunos se deliciaram quando trabalhamos com um texto de Gilberto Freyre, uma passagem de Casa-Grande & Senzala em que o sociólogo pernambucano trata do abrasileiramento da língua portuguesa realizado em grande medida pelos escravos negros. Por exemplo, há as palavras da linguagem infantil: "cacá", "pipi", "bumbum", "neném", "papá", "papato", "au-au", "bambanho", "cocô", "dindinha", "bimbinha". Há também os nomes próprios que foram amaciados e perderam a solenidade. Como escreve Freyre, "as Antônias ficaram Dondons, Toninhas, Totonhas; as Teresas, Tetês; os Manuéis, Nezinhos, Mandus, Manés; os Franciscos, Chico, Chiquinho, Chicó; os Pedros, Pepês; os Albertos, Bebetos, Betinhos. Isto sem falar das Iaiás, dos Ioiôs, das Sinhás, das Manus, Calus, Bembéns, Dedés, Marocas, Nocas, Nonocas, Gegês"... 
     Esse  é  o  Brasil  profundo,  afetivo  e  luminoso que tem entre suas glórias futebolísticas jogadores chamados Didi, Vavá, Pelé, Garrincha, Tostão, que levaram seus nomes infantis pela vida afora e com eles fizeram carreira na vida pública. Até o ditador Getúlio Vargas era Gegê para o povo que o tinha na conta de "pai dos pobres". E nosso catolicismo popular chega ao ponto de chamar no diminutivo santos estrangeiros de nomes pomposos. A francesa Teresa de Lisieux no Brasil é Santa Teresinha, e o capadócio de nome grego Longino é São Longuinho, que ajuda a encontrar objetos perdidos.
     De  sua  primeira  infância,  quando  vivíamos  juntos  e eu cuidava de você, lembro-me de muitas daquelas palavras mencionadas pelo sociólogo. E poderia lhes acrescentar termos como "xixi", "bainho", "mamá", "mimi", "tutu", "bililiu", que, pronunciados por mim e outros adultos em torno de você, ecoavam a fala da mãe preta do tempo da escravidão, que era a mãe de fato inclusive dos meninos brancos filhos do senhor das casas-grandes e, posteriormente, dos sobrados nas áreas urbanizadas e que é hoje a mãe ancestral de todos nós. 
     Essa língua plena de afeição retorna hoje sempre que você me chama de "papai". E é como se eu a reencontrasse até mesmo aqui, na boca de fleumáticos ingleses, quando, no futebol, ao me pedirem um passe, se dão a liberdade de me chamarem de "Adri" por eu ser brasileiro.

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