sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Um menino em Aleppo, outro em São Paulo


     Na  semana  passada,  uma  fotografia  de  um  menino sírio resgatado sob os escombros de um prédio, depois de um bombardeio na cidade de Aleppo, no norte do país, apareceu na primeira página de milhares de jornais pelo mundo. Lendo a notícia, ficamos sabendo que seu nome é Omran Daqneesh, que ele tem cinco anos, que seus pais sobreviveram ao ataque, mas que um de seus irmãos morreu no hospital, alguns dias depois.
     Não  há  palavras  capazes  de   exprimir  o  sentimento provocado por essa imagem. Apenas as lágrimas são uma resposta possível a esse olhar que está nos interrogando, talvez nos dizendo silenciosamente: "Vejam o que fizeram comigo". Com os pés descalços, as feridas nas pernas, o corpo coberto de poeira, o cabelo desarranjado e um grande corte sobre o olho esquerdo, que sangra abundantemente, ele está confuso e atônito, sem saber o que fazer, sem conseguir sequer chorar. Em sua camisa está estampada a figura de um personagem de desenho animado americano, e ele usa um short de criança que talvez estivesse brincando na sala de sua casa algumas horas antes de a bomba cair sobre sua rua.
     Como  os  jornalistas  sempre  fazem  um  recorte  muito superficial da realidade, nas diversas coberturas do acontecimento falta sempre uma contextualização mais ampla, um histórico qualificado da guerra, a história das pessoas comuns envolvidas e, principalmente, uma reflexão sobre a barbárie humana. 
     Os  gregos  antigos  costumavam  reunir  uma  vez  por ano, para assistir a um festival em que eram apresentadas as tragédias, obras teatrais que faziam parte das celebrações em homenagem ao deus Dioniso. Nelas havia sempre dois lados que se chocavam num conflito insolúvel em que ambos tinham razão. Os eventos catastróficos que elas apresentavam provocavam compaixão pelos grandes seres humanos que se viam nos palcos sendo destruídos por um destino insondável do qual não podiam escapar, embora estivessem corretos naquilo que defendiam, e medo pela consciência de que aquilo que os espectadores ali assistiam poderia vir a lhes acontecer. Isso fazia com que  os gregos do século V a.C. realizassem, ao menos uma vez por ano, uma profunda reflexão sobre o sentido da vida. Hoje em dia, através do noticiário, somos expostos todos os dias à catástrofe que atinge muitos seres humanos que vivem geralmente distantes de nós. Porém, em nosso caso, costumamos sofrer apenas um breve impacto, que dura apenas até o momento em que outra imagem chocante, possivelmente já no dia seguinte, nos caia diante dos olhos. Nosso sentimento é de uma indignação superficial e passageira, sem nenhuma reflexão sobre o sentido de tudo aquilo. No calamidade que atualmente atinge a Síria, estamos diante de uma espécie de antitragédia, pois nenhum dos lados têm razão. De um lado um tirano, de outro um amontoado de fanáticos religiosos, de outro um grupo étnico sem Estado próprio que se espalha por vários países da região. Todos estão praticando as maiores infâmias, utilizando armas químicas, realizando execuções sumárias com uma crueldade extraordinária. Participam desse horror e por ele também são responsáveis as potências imperialistas ocidentais, que gostam de posar como paladinos da democracia e dos direitos humanos, além da Rússia, da Turquia, do Irã e da Arábia Saudita. Revivendo a Guerra Fria, que tanta desgraça causou ao longo do século XX, o país de Walt Whitman e Scott Fitzgerald fornece armas e dinheiro aos fanáticos fundamentalistas, e o país de Tolstoi e Dostoiévski dá suporte ao tirano. 
     Na  foto  do  menino  Omran,  importa  também  o  que está por trás, o que ela não mostra: a indiferença internacional por cidadãos de um país desprestigiado, os corpos despedaçados pelas bombas ou torrados pela guerra química, os degolamentos sumários praticados por todos os lados em conflito, a infraestrutura do país arrasada e a condenação de quase toda uma população à miséria, a destruição de uma civilização milenar e de um patrimônio histórico que pertence a toda a humanidade. Em meio a tudo isso, porém, não há como não se comover com crianças submetidas ao trauma das bombas a explodirem sobre suas casas, da orfandade desprotegida após o assassinato de seus pais, das péssimas condições dos campos de refugiados nos países vizinhos, da perigosíssima travessia do oceano em embarcações muito precárias, das violências que sofrem em terra estrangeira, quando conseguem chegar até lá.
     Você  é  hoje  um  menino  de  11  anos  vivendo  na relativa segurança e no conforto de sua vida de classe média na cidade de São Paulo. Embora seja um garoto muito saudável, bem alimentado e dado à prática de esportes, sempre que o encontro tenho uma noção muito clara de sua fragilidade, do quanto tem de ser protegido dos males do mundo, dos perigos da natureza. Assim como obviamente desejo vê-lo crescer em segurança, gostaria também de vê-lo cultivando sempre os valores da gentileza, do respeito às outras pessoas, da cultura que lhe proporcionará um repertório humano mais qualificado, da democracia que neste momento está sendo tão vilipendiada no Brasil, onde a realidade de tantas crianças, por certo a maioria delas, ainda é muito diferente da sua. Jamais aceite a mediocridade, a injustiça, a desumanização como coisas normais. Nada nos garante que estamos livres dos horrores que hoje assistimos em lugares como a Síria. Aliás, já faz parte do nosso dia a dia toda uma antologia de horrores de outra natureza que assustariam os próprios sírios.

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