quinta-feira, 23 de julho de 2015

Um jeito de ver as pessoas


     Tive  hoje  a  tarde  livre  e  fui  à National Gallery, onde passei cerca de três horas visitando as extensas e maravilhosas galerias dedicadas ao Renascimento. Entre tantas pinturas de cenas mitológicas, históricas, bíblicas ou hagiográficas, este "Baco e Ariadne", de Ticiano, chamou-me a atenção. No quadro, o deus do vinho, acompanhado por um séquito de músicos, sátiros, pessoas em estado de transe celebratório e animais (e pedaços de animais), surge de uma paisagem que sugere uma floresta. Apaixonado por Ariadne, ele salta de uma carruagem puxada por duas chitas e, pairando no ar, dirige-se a ela, que havia sido abandonada na ilha de Naxos por Teseu, cujo navio se vê à distância. Ariadne tem uma clara expressão de medo. Porém, como conta Ovídio nas Metamorfoses, Baco em breve a elevará aos céus, transformando-a na constelação representada sobre sua cabeça.
     Sempre  que  estou  diante  de pinturas e esculturas, vejo filmes ou peças de teatro, leio histórias, costumo fazer uma relação entre os tipos representados artisticamente e pessoas que conheço. Ainda que pertençam a épocas, circunstâncias e mundos completamente diferentes, os tipos humanos são limitados e muito recorrentes tanto nas representações artísticas quanto na vida. O Baco de Ticiano, por exemplo, com seu aspecto infantil e pleno de vida, me fez associá-lo a você. 
     Se  pensarmos na literatura, quando olho para as pessoas próximas, sempre vejo minha mãe como uma acabada personagem de Guimarães Rosa, com suas histórias de um Brasil arcaico, palavras inventadas e frases dignas de um Riobaldo ou um Manuelzão. Uma delas, que poderia perfeitamente estar em Grande Sertão: Veredas, é a recorrente "Neste mundo não há o que não haja". E ainda há as expressões como "cabelo estisicado", "zuiudo", "chatonildo da Silva".
     Minha  irmã  Renata,  com  seu  gênio  forte  e  sua perseverança, me lembra a Antígona de Sófocles. Já Kelly, minha outra irmã, é perfeitamente uma personagem do dramaturgo Tennessee Williams, algo meio Blanche Dubois, meio Laura Wingfield. Meu tio Iraci, com sua valentia teatral, é um Capitão Rodrigo de Erico Verissimo. E meu primo Paulinho, que atravessou a vida preso a seus complexos, mas que possui uma vida interior riquíssima, faz lembrar a Prima Biela de Autran Dourado, em Uma Vida em Segredo. E eu mesmo tenho sido um misto de Príncipe Mishkin, de Dostoiévski, e Holden Caulfield, de Salinger, com todo o sublime e o ridículo que eles contêm.
     Considerando  alguns  de  meus  amigos,  Doc,  em  São Paulo, é Macunaíma escrito e escarrado. Cleionário, em Divinópolis, que costumo definir, para júbilo de outros amigos, como hétero enrustido, é Quincas Borba. E tenho aqui uma amiga britânica, Florence, que é meio Capitu, de Machado de Assis, meio Albertine, de Proust.
     Havia  um  goleiro,  nos  tempos  de  futebol  na USP, que, quando chegava, alto e magrelo, com seu cabelo comprido, suas joelheiras e sua mania de esparramar-se no chão com espalhafato para tentar defender a bola, uma imagem me vinha logo à mente: D. Quixote. E me lembro de um colega de escola, na adolescência, a quem deram o apelido de Carinha de São Francisco. E realmente, diante daquele olhar santíssimo, daquela aura e daquela serenidade, minha mãe, que é uma católica dos tempos góticos, seria capaz de cair de joelhos e beijar-lhe as mãos. E quantos Quincas Berro d'Águas havia no bairro da minha infância, habitantes de um reino etílico chamado Bar do Jacó! 
     Em  São  Paulo,  antes  de  você  nascer,  por  algum tempo eu convivia esporadicamente com uma moça que era a própria imagem do bourgeois gentilhomme ou das preciosas ridículas, de Molière. E havia também muitas Mmes. Bovarys e Annas Kareninas malcasadas, algumas com destino igualmente trágico.
     Vejo,  entre  os  políticos  que  estão  dominando a cena política brasileira de hoje, alguns Simão Bacamartes, muitos Brás Cubas, muitos Castelos do conto "O homem que sabia javanês", alguns Macbeths e Reis Lears...
     Bem,  isso  talvez  nos  mostre  que  a  arte  é algo tão intrínseco à vida que podemos ler as pessoas próximas e nós mesmos com os olhos dos grandes artistas, ainda que eles tenham vivido em épocas longínquas e criado personagens com referências muito distintas.

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