domingo, 22 de fevereiro de 2015

Voltando para casa

     Daqui  a  pouco,  irei  para  o  aeroporto  e  partirei de volta para casa. Anteontem, ao compartilhar com você algumas observações sobre o Egito, fiz uma avaliação extremamente negativa do país. Hoje vejo que cometi alguns excessos e não tive olhos para aspectos que pude perceber melhor nestes últimos dias, apesar de não ter fechado os olhos para coisas abomináveis que realmente existem aqui. Por exemplo, em meio ao labirinto das vielas sujas e estreitas do Cairo islâmico, vi pessoas pobres e desvalidas lutando pela vida com dignidade, carregando grandes balaios de pães, engraxando sapatos, perambulando de um lugar para outro vendendo frutas ou lencinhos de papel, transportando fardos de tecidos nas costas. E não se tem nenhuma sensação de insegurança ao se caminhar por lá, ao menos durante o dia. Após desembarcar no aeroporto e tomar um táxi, fui simplesmente deixado num lugar qualquer da área central, mas um rapaz a quem perguntei pela direção de meu hotel, a despeito de não falarmos a mesma língua, desviou-se de seu caminho e até cruzou uma avenida ultramovimentada de braços dados comigo, pois ele tinha a técnica para atravessar essas vias sem ser atropelado, indicando-me o caminho através de gestos. E quando lhe ofereci uma gorjeta por ter me ajudado, ele  a recusou. Por fim, no dia de ontem, Nadia, uma funcionária egípcia da embaixada do Brasil que me acompanhou por toda a tarde, foi muito gentil comigo, mostrando-me outros aspectos da cidade. Trabalhando também como radialista para o governo egípcio, ela acabou me entrevistando, com perguntas sobre minhas impressões acerca do país. Busquei ser mais equilibrado e até diplomático nas respostas. O testemunho da labuta das pessoas e as atitudes gentis por parte de algumas delas redimem o Egito a meus olhos, e são essas coisas que vão ficar em minha memória. Por outro lado, quem disse que a "normalidade" ou a "qualidade" tem de ser organizadinhas, assépticas e "de bom gosto"?
     O  que  não  mudo  é  a  minha  posição  quanto  ao complexo de vira-latas das classes privilegiadas do Brasil. Diante de meus argumentos, nossos vira-latas ou mesmo algum esquerdista redentor poderia dizer, não sem estar carregado de razão: "Olhe o nosso Nordeste, as periferias de nossas cidades, o Estado que temos, a qualidade de nossos serviços públicos, a insegurança, a corrupção, os rios de São Paulo..." Ao que eu diria: "Olhe os nossos Aleijadinhos, os nossos Garrinchas, os nossos Pixinguinhas, os nossos Machados de Assis, a nossa socialização de boteco, as nossas relações com os vizinhos, o nosso humor, a nossa sólida unidade na diversidade, a capoeira, a beleza do nosso povo, a nossa delicadeza e a nossa cortesia, a nossa ginga e o nosso jeito de falar..." Por certo estas coisas e o que os mestiços tortos mas geniais mencionados acima representam nos qualificam para conversar com qualquer americano, inglês ou francês de cabeça erguida e olhos nos olhos, em algumas ocasiões até mesmo olhando-os de cima para baixo.
     Mudando de assunto, ontem  estive  no  bairro  cóptico, que preserva a herança do cristianismo no Egito. Nele há até uma pequena igreja num lugar onde, diz a tradição, Maria teria parado para descansar durante a fuga de Herodes. O menino Jesus teria vivido seus primeiros três anos no Egito, retornando a Nazaré após a morte do tirano romano. Imagino-o, em sua primeira infância, aos cuidados protetores de sua mãe puríssima, ouvindo histórias contadas por José na hora de dormir, passeando pelo bairro sentado nos ombros dele, brincando com boizinhos feitos com as sobras de madeira da oficina de seu pai carpinteiro, puxando o rabo dos gatos, jogando pedras na superfície do Nilo para ver as ondulações, deixando seus pais desesperados ao desaparecer num momento em que eles se distraíam, sendo encontrado algum tempo depois, debaixo da cama. E quando um pouco mais velho, deve ter proposto lutas e corridas de 50m a José. Até mesmo um menino-deus deve ter vivenciado essas coisas.

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