quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Damasceno

     Meus  alunos  na  universidade  onde  trabalho  me consideram um professor estrito. Acredito que não sou tão rigoroso assim, mas de fato não tenho muita paciência com os irresponsáveis e os preguiçosos. Se me consideram rigoroso, ficariam aterrorizados com um professor que tive no ensino primário, numa escola municipal de Divinópolis, entre os meus 11 e 15 anos. Damasceno era o seu nome, que, simplesmente ao ser pronunciado, provocava calafrios nos mais sensíveis. Professor de educação física, barbudo, tratava os alunos aos gritos e costumava nos dar punições de 10, 15 e até 20 flexões de braços, dependendo da gravidade das nossas indisciplinas. Ainda hoje o vejo dizer, em tom autoritário: "Paga dez!". Algumas vezes, como os outros alunos, tive de me acocorar e "pagar" as dez flexões de braços. 
     Próximo  do  dia  1º  de  junho,  aniversário da cidade, Damasceno ensaiava os alunos para uma marcha que passava diante do governador do estado, do prefeito e de outros medalhões num palanque de potentados. Alguns tocavam os instrumentos, todos de percussão, e o resto marchava. Se um tambor ou um tarol fosse tocado fora de hora, todo o bairro ouvia os gritos ensaiador: "Seu zebu! Seu leitão!". Lembro-me de um dia em que uma menina que marchava fora do alinhamento foi repreendida por Damasceno em elevados decibéis: "Você não tem noção de espaço, não, hein?!" A reação dela foi muito humana: disparou a chorar.
     Uma  vez  nossa  escola -  o Cetepe -  foi campeã do torneio de futebol dos jogos estudantis da cidade. Nosso time, do qual eu fazia parte, jogou bem e errou muito pouco, certamente porque Damasceno era o técnico e sabíamos o que aconteceria depois de um passe errado ou de um pênalti perdido. Me lembro de que, numa ocasião, Sandro, nosso goleiro, tomou um gol normal. Mas Damasceno, ao lado do campo, não viu as coisas assim e gritou-lhe: "Frangueiro! Leitão! Burro!". Nossos colegas, nossos flertes juvenis e mesmo nossos pais estavam em nossa torcida, e Sandro ficou sem saber onde enfiar a cabeça. Tive de ir até ele, ajudá-lo a levantar-se do chão e lhe dizer para não se abater, pois estava jogando bem.
     Quando  algum  pai  ou  mãe  de  aluno reclamava com a diretoria da escola de que aquele professor tratava os alunos com brutalidade, ouviam como justificativa o fato de Damasceno ter formação militar. Por isso tratava todo mundo aos berros. Talvez isso até fosse considerado realmente válido naquele tempo em que o país ainda sofria com os últimos anos da ditadura militar.
     Olhando  para  trás,  me  divirto  com  o  destempero de nosso professor de educação física. Nada mais politicamente incorreto, ainda mais hoje em dia, num tempo em que os alunos são tratados como reis e são muito protegidos pelas escolas. Apesar de seus excessos, Damasceno era boa pessoa e nos ensinou a ser disciplinados na marra, disciplina que transferimos para os cursos dos outros professores e também para vida. Ele mesmo esquecia seus desatinos logo depois de praticá-los e não guardava nenhum rancor dos "zebus", "leitões", "frangueiros" e "burros" a quem ensinava. Quando passei para o ensino médio, mudando de escola e de casa, numa mais o vi.
     Certamente  você  não  tem  nenhum  professor  como ele. Em nossa época, ainda mais numa escola particular, não há condições para isso, o que é certamente melhor, pois todos devem ser tratados com respeito. No entanto, na era do entretenimento, da falta de concentração e do mínimo esforço, às vezes, na condição de professor, me transformo num Damasceno sem insultos e sem gritos. E para você mesmo de vez em quando sou um pai Damasceno sem insultos e sem gritos.

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