segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Uma carta de Kafka em Praga


     Acabo de chegar de Praga, uma cidade de impressionante beleza, muito bem cuidada por seus moradores, com prédios, pontes e monumentos muito bem conservados e muito bem harmonizados na paisagem. Esse é um lugar aonde gostaria de retornar com você um dia.
   Talvez o momento mais marcante desta estadia na República Tcheca tenha sido o encontro com uma carta. Já a mencionei algumas vezes por aqui. Trata-se de uma longuíssima correspondência, com 103 páginas manuscritas, que Franz Kafka escreveu a seu pai entre os dias 10 e 19 de novembro de 1919, quanto tinha 36 anos, motivado pela reação fria dele ao anúncio de seu noivado com Julie Wohryzek. Em sua missiva, o grande escritor denuncia o autoritarismo de seu progenitor, o comerciante Hermann Kafka, expondo uma profunda mágoa contra quem ele se refere como "tirano", "regente", "rei" e "Deus". Para Kafka, a opressão paterna teria arruinado sua autoestima e feito com que ele desenvolvesse uma personalidade frágil e derrotista. Mas o escritor também faz um mea-culpa, apontando seu próprio retraimento e sua falta de iniciativa como fatores que contribuíram para a manutenção do abismo que se abriu entre pai e filho.
   Max Brod, o amigo que salvou a obra de Kafka do esquecimento, conta que ele entregou a carta a sua mãe, para que ela a repassasse a seu pai. No entanto, ela nunca a entregou ao marido, retornando-a para o filho alguns dias depois.
     Li esse texto há vários anos, sendo tocado de modo muito intenso. Desde então, volto a ele de vez em quando. Não tive uma boa relação com meu pai, que foi sempre um homem muito distante, muito egoísta e muito estranho. Se ainda estivesse vivo e eu lhe escrevesse uma carta, ela teria por certo passagens semelhantes à de Kafka. Por isso, estar diante do manuscrito do escritor tcheco no museu a ele dedicado foi para mim algo muito significativo. 
   Sendo agora pai eu mesmo, gostaria de construir uma vida e um relacionamento muito diferentes com meu filho. Apesar de hoje vivermos em dois lados opostos do Atlântico, quero contribuir para que você tenha uma boa autoestima e confiança em si mesmo. Que eu possa protegê-lo dos males do mundo e expressar meu amor também na forma de abraços e de um diálogo em que troquemos experiências, visões de mundo e muitas histórias. E quando um dia você me escrever uma carta, que ela fale com carinho das coisas que vivenciamos juntos, ainda que tenhamos tido pouco tempo para isso, em virtude dos rumos que minha vida vem tomando.

Nenhum comentário: