sexta-feira, 24 de abril de 2015

Montaigne essencial

     Mais  uma  vez  estou  às  voltas  com  a  leitura  de meu filósofo favorito, Michel de Montaigne. Seus "Ensaios" têm sido para mim um livro fundamental, que releio de tempos em tempos. É impressionante como tudo o que ele escreveu há 500 anos continua atualíssimo e como sempre nos identificamos com seu pensamento. O curioso é que ele sempre escreveu sobre si mesmo, refletindo sobre como agiu em situações concretas. Alguns títulos de seus textos, pouco convencionais nas obras de um filósofo, dão uma ideia de como ele explorava as mais diversas dimensões da vida: "Da tristeza", "A força da imaginação", "Da educação das crianças", "Dos canibais", "Da solidão", "Dos odores", "Fiquem para amanhã os negócios", "De como julgar a morte", "Dos polegares", "Da arte de conversar", "Dos coxos", "Da fisionomia"... Gosto da forma como seu pensamento passeia livremente por esses temas, muitas vezes fugindo do assunto e até contradizendo o que disse no começo de suas reflexões, que são sempre sustentadas por um riquíssimo manancial de grandes histórias. Em realidade somos assim, em vez de sermos um modelo de coerência e lógica racional.
     Ontem,  quando  lia  o  ensaio  "Da afeição dos pais pelos filhos", uma das histórias que Montaigne conta para sustentar suas ideias me chamou a atenção: 

     O  falecido  Marechal  de  Monluc, tendo perdido um filho na Ilha da Madeira, jovem fidalgo que muito prometia, contava-me sua tristeza insistindo principalmente sobre o fato de nunca ter tido maior intimidade com ele. Para conservar em relação a ele a gravidade e a distância de que as mais das vezes se reveste a autoridade paterna, privara-se voluntariamente do prazer de apreciar e conhecer melhor o seu filho e também de revelar a profunda afeição que lhe votava e a estima que lhe dedicava por suas qualidades: "Esse pobre rapaz, dizia, nunca me viu senão carrancudo e aparentemente desdenhoso; levou consigo a crença de que eu não o soube amar nem lhe apreciar os méritos. A quem deveria eu, senão a ele, demonstrar a ternura de meu coração? Com ele sem dúvida devia abrir-me para que tivesse alguma alegria e gratidão. Esforcei-me, torturei-me para conservar essa máscara vã de indiferença; isso me fez perder o prazer de sua companhia, bem como de sua afeição, pois nunca foi senão maltratado e por vezes tiranicamente".

     Talvez  essa  história  revolva  intensamente alguma coisa em mim por causa da relação distante e estúpida que meu próprio pai sempre teve comigo. E eu com ele. Hoje que ele está morto, sinto a mesma tristeza do Marechal Monluc por jamais ter podido abraçá-lo, tê-lo como uma pessoa de confiança e dizer-lhe que o amava apesar de tudo, que carrego comigo muito do que ele foi, que hoje vejo traços de seu jeito e de sua personalidade no meu filho.
     Se  nunca  houve  espaço  para  o  afeto  na  relação  que tive com meu pai, tenho buscado - sem que isso seja um plano de ação ou uma rígida disciplina - fazer com que as coisas sejam diferentes entre nós dois, apesar da distância em que vivemos um do outro. Gosto de receber seu abraço e seu beijo em alto volume quando nos encontramos. E de lhe dar os meus. Gosto de nossas conversas sobre o que temos feito, sobre futebol, música e livros. Gosto de abraçá-lo após um gol meu ou seu, de nadarmos juntos, de lutarmos na cama, de comermos juntos...
     Está vendo como Montaigne é essencial?

Nenhum comentário: