sexta-feira, 23 de maio de 2014

D. Deolina e suas benzeções

     Nesta semana sonhei com minha infância, mais precisamente com um episódio de minha infância: as benzeções de D. Deolina. Essa prática situa-se no contexto do sincretismo do catolicismo com as religiões africanas no Brasil. Me recordo de que, quando os meninos de nossa vizinhança tinham problemas de pele, o que era relativamente comum em virtude de andarmos descalços por ruas de terra, nadarmos em córregos não muito limpos e estarmos sempre em contato muito próximo com animais domésticos, nossas mães nos mandavam ir pedir a D. Deolina que nos benzesse. Me lembro de várias ocasiões em que toquei a campainha de sua residência, que ficava quatro ou cinco casas distante da nossa, na rua Passa Tempo. Quando ela aparecia, já velhinha e enrugada, eu dizia, pleno de inocência: "Ô D. Deolina, a minha mãe pediu para a senhora me benzer". Então ela me fazia entrar e benzia o local afetado por perebas e furunculoses com um raminho de arruda e rezas acompanhadas por bocejos. Pelo que me lembro, funcionava, pois em pouco tempo essas erupções desapareciam.
     Se nunca vivi no campo, sou um filho da cultura caipira, pois tanto meu pai quanto minha mãe, que se conheceram em Divinópolis no fim dos anos 1960, nasceram e se criaram em regiões rurais do centro-oeste de Minas. Minha mãe preserva até hoje um rico acervo de histórias da roça envolvendo lendas, mitos, assombrações e acontecimentos estranhos, além de encontros com cobras venenosas e até onças. Se fui para a universidade, escrevi livros, vivi em São Paulo por dezesseis anos e hoje moro em outra metrópole mundialmente reconhecida, nunca perdi minhas raízes. Apesar de nunca ter sido um caipira, tenho o maior respeito por essa cultura, que é muito rica.
     Me lembro agora de uma ocasião, quando você tinha pouco mais de um ano, em que o levei para benzer, pois seu estômago doía com frequência. Isso o fazia acordar frequentemente no meio da noite, não deixando ninguém na casa dormir. A benzedeira, uma velhinha de quase 80 anos, benzeu-o no meu colo e disse que estava sentindo em mim algumas energias negativas. Acabou por me benzer também, emitindo longos bocejos. Parece que a quantidade e a extensão dos bocejos indicam o grau de esforço que a benzedeira tem de fazer para livrar alguém de negras nuvens que pairam sobre seu ser.
     Sou um homem sem fé. Deus, se é que existe, é no mínimo um tremendo omisso. De todo modo, sou aberto a essas manifestações de generosidade e solidariedade por parte de gente boa e simples do povo.

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