quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Pós-caipiras


     Se  já  nasci  na  cidade,  sou  um  filho  da  cultura caipira. Tanto meu pai como minha mãe nasceram e se criaram em zonas rurais, tendo partido para Divinópolis no final dos anos 1950. Embora nunca tenha vivido na roça, quando menino ainda vi os últimos carros de boi, carroças e cavaleiros nas ruas de minha cidade natal. E na casa de meu avô materno, que usou chapéu e fumou cigarro de palha até o fim de sua vida, havia fogão a lenha, ferro a brasa e grandes baús para roupas. Por fim, depois de me tornar pai, ainda pude ver meu menino - encabuladíssimo - vestido de falso caipira nas festas juninas de sua escola em São Paulo.
     Sempre  tive  o  maior  respeito  pela  cultura  caipira, que por  cerca de duzentos anos floresceu no interior dos estados de Minas Gerais, São Paulo, Goiás, Paraná e Mato Grosso do Sul, possuindo linguagem, culinária, moda, arquitetura, tradições, musicalidade, literatura e mitos próprios e muito originais. Hoje ela praticamente deixou de existir, atropelada pela urbanização relâmpago e sem planejamento do Brasil, pela marcha do chamado "progresso". Talvez se possa fixar um marco da morte da cultura caipira: o falecimento da cantora Inezita Barroso no ano passado. Ela era quem mantinha o último bastião de resistência da cultura caipira nos meios de comunicação.
     Falo  nisso  por  que  hoje  estivemos  eu,  você  e minha mãe, no meio da tarde, tomando um café com canela regado a pães de queijo, rosquinhas, broas, pamonha, bolo de milho, queijo e tudo o mais. Houve até mesmo o requinte de canequinhos esmaltados. Como trilha sonora, minha mãe me pediu que colocasse para tocar Sérgio Reis cantando alguns clássicos do cancioneiro caipira: "Chico Mineiro", "Tristeza do jeca", "Chalana", "Rei do gado", "Saudade de minha terra", "Boiadeiro errante", "Cabecinha no ombro", "Caminheiro", "Legado sertanejo", "Mágoa de boiadeiro", "Comitiva Esperança", "Serafim e seus filhos", "Disparada"... Todas contam lindas histórias de um mundo que não existe mais. Enquanto as ouvíamos, minha mãe recontava histórias da roça e de uma era de ouro que tanto minha geração como a sua perdeu. Tal como um Hesíodo contemporâneo, ela acha que estamos hoje numa era de ferro, tempo de angústias e misérias infinitas, pois abrimos a caixa de Pandora e dela saíram os males das drogas, da luxúria, da violência, da incivilidade, da corrupção. Como sabemos, a decadência contemporânea é uma velhíssima tradição ocidental. O próprio Hesíodo está aí, com Os Trabalhos e os Dias, como prova de que essa tradição tem pelo menos 2.800 anos.

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