domingo, 23 de outubro de 2016

Loucos das cidades

     Andando pela cidade, de vez em quando nos deparamos com os loucos que perambulam por aí falando sozinhos, gritando, profetizando, exercendo manias e comportamentos extravagantes. Sempre tive por eles um sentimento de simpatia e respeito, no mínimo por terem uma existência diferente da vida pasteurizada vivida hoje em dia pelo homem-massa. Claro que eles sofrem e em geral vivem em condições muito precárias, mas não têm de engolir tantas porcarias do dia a dia para "ganhar a vida" nem sua respeitabilidade se define por um trabalhinho qualquer.
     Lembro-me, nas ruas de Divinópolis, de Naná, que há muitos anos vagueia pela noite com seu grande copo de cerveja, cantando e dançando, acordando no dia seguinte entre um bando de cachorros e dando-lhes um bom-dia ultraentusiasmado.
     Nos Estados Unidos havia um que estava sempre perto de minha casa, pedindo dinheiro e xingando quem se recusava a dar-lhe algum trocado. Uma vez, num dia frio, passei por ele, que me cumprimentou educadamente e me pediu dinheiro. Como não lhe dei, ao perceber meu sotaque, perguntou de onde eu era. Respondi-lhe: "Do Uzbequistão." Ao que ele reagiu imediatamente: "Fuck Uzbekistan!".
     Não sei o que acontece em Londres que os loucos não são vistos durante o dia, mas à noite eles emergem em massa e tomam conta das ruas. Basta pegar o metrô ou caminhar pela área central que se verão centenas deles por todo lado.
     Meu amigo Doc, em São Paulo, sempre diz que para lidar com um louco é preciso ser mais louco que o louco e antes do louco. Lembro-me de uma ocasião em que andávamos pelas ruas do Pacaembu, se não me engano para ir até o estádio e visitar o Museu do Futebol. Ao descer uma longa escadaria num morro, que dava acesso à parte mais baixa do bairro, vimos que havia um louco no meio do caminho. Ele partia para cima das pessoas por ali transitavam e gritava com elas, como se fosse o dono da escadaria. Os que desciam o morro levavam sempre um tremendo susto. Ao ver aquilo, Doc disse que iria solucionar o problema. Parei e fiquei assistindo ao que ele faria. Meu amigo desceu as escadas como um transeunte normal e, quando se aproximou do louco, partiu para cima dele e gritou antes de qualquer reação do outro, soltando seu vozeirão. Vi, então, uma cena impressionante: o louco se jogou no chão e assumiu posição fetal, passando a balbuciar como um bebê. A partir de então, todos puderam subir ou descer as escadarias do Pacaembu sem serem incomodados. E confirmou-se o diagnóstico: para tratar com louco, é preciso ser mais louco que o louco e antes do louco.
     Erasmo  de  Roterdã  escreveu  um  elogio  da  loucura, ressaltando como ela está em cada um de nós: "O homem é tanto mais feliz quanto mais numerosas são as suas modalidades de loucura... eu não saberia dizer se haverá, em todo o gênero humano, um só indivíduo que seja sempre tão sábio e não tenha também a sua modalidade". E o psiquiatra Simão Bacamarte, o hilariante alienista de Machado de Assis, tranca toda a população da cidade em sua famosa Casa Verde, sob a presunção de que todos fossem loucos, para no fim das contas trancar-se a si mesmo ao perceber que o doido era ele. Esses grandes autores nos convidam a desconfiar de todo excesso de coerência, de todas as personalidades muito encantadoras, de todos os discursos envolventes, de todos os sistemas que se apresentam como solução para tudo. E uma pitada de loucura é excelente tempero de nossas ações. É por isso que, quando o encontro, depois de um abraço e um beijo, costumo lhe dizer, diante do tempo que temos pela frente: "Vamos fazer muitas loucuras neste fim de semana". E você abre o seu sorriso diante das promessas dessas loucuras.

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